A abordagem total e a abordagem suficiente

Luciano Carlos Cunha[1]

Sumário:

1. Introdução

Se nossa meta é um mundo melhor para todos os seres sencientes, então é importante fazer com que essa meta seja aceita pelo maior número possível de pessoas. Este texto apresentará duas possíveis abordagens em termos de divulgar o que defendemos: a abordagem total e a abordagem suficiente, bem como apresentará algumas das vantagens e desvantagens de cada uma delas. Ao final, será defendido que é mais promissor combinar os dois tipos de abordagens, pelo menos em grande parte dos contextos. Serão também apresentados vários exemplos de contextos particulares nos quais é possível aplicá-las.

2. Leques de compatibilidade: abertos e fechados

O que chamarei de leque de compatibilidade diz respeito à quantidade de ideias adicionais que precisam ser aceitas para se aceitar determinada ideia. As diferentes ideias possuem um leque de compatibilidade mais aberto ou mais fechado. Quanto maior a quantidade de ideias adicionais necessárias, mais fechado será o leque; quanto menor, mais aberto (pois então a ideia pode ser aceita seja lá o que pensemos sobre várias outras questões, o que possibilita que um número muito maior e mais diversificado de pessoas a aceite).

É importante identificar qual a amplitude do leque de compatibilidade de uma ideia, pois se pensarmos que uma ideia possui um leque mais fechado e na verdade ela possui um leque mais aberto, perderemos a oportunidade de fazer com que muito mais pessoas a aceitem.

Considere o exemplo a seguir:

Suponhamos que queremos defender a ideia A, e acreditamos que, para aceitá-la, seja necessário aceitar também a ideia B. Nós passamos então a defender B, para fazer as pessoas aceitarem A. Imaginemos que, ao fazer isso, convencemos o público de que, para se aceitar A, tem-se que aceitar B. Contudo, imagine que, embora consigamos convencer algumas pessoas a aceitarem A, outras pessoas não a aceitam justamente porque não aceitam B. Porém, imagine que depois descubramos que, para se aceitar A, não era necessário aceitar B. Então, parece que poderíamos ter convencido muito mais pessoas a aceitarem A se não tivéssemos defendido B.

Assim, se para as pessoas aceitarem uma ideia A, não for necessário que concordem em relação a outras ideias B, C, D, E etc., então é melhor enfatizar que, seja lá o que pensem de B C, D, E etc., ainda podem aceitar A.

Enfatizar que, mesmo que haja discordância sobre outras coisas, ainda poderia haver concordância em relação ao que estamos propondo tem pelo menos duas vantagens. A primeira, evidente, é que ela aumenta a probabilidade de um número muito maior de pessoas aceitar o que estamos propondo. A segunda é que ela tende a diminuir a polarização, pois enfatiza que, apesar das muitas divergências, pode haver algumas metas em comum.

3. Exemplos de visões compatíveis com múltiplas visões em ética e política

Para se aceitar as metas a seguir, não é necessário adotar uma visão específica, seja em termos de teoria ética, seja em termos de vertente política:

Assim, em vez de defender que devemos adotar uma visão específica em ética ou política e que uma implicação dessa visão é aceitar aquelas metas, temos mais chances de que as pessoas aceitem essas metas se defendermos que elas deveriam ser aceitas por todos, independentemente de qual visão em ética ou política considerarem mais plausíveis. Defender posições específicas pode passar uma impressão errada de que, para se aceitar tais metas, é necessário aceitar tais visões específicas (e, então, o resultado ser quem não aceita tais visões rejeitar essas metas).

4. A abordagem total e a abordagem suficiente

Acima demos exemplos de metas que podem ser aceitas em sua totalidade por diversas posições. Entretanto, em outras vezes, dependendo do que alguém pense sobre outras questões, aceitará determinada meta apenas parcialmente.

Ao argumentar a favor de uma ideia, normalmente entendemos a situação em termos de, ou aceitá-la ou rejeitá-la totalmente. Porém, existe a possibilidade de alguém aceitá-la parcialmente. É claro, se defendemos determinada ideia, pensaremos que o melhor é que as outras pessoas a aceitem totalmente. Entretanto, pode valer muito a pena enfatizar que determinados argumentos que por vezes são endereçados para se rejeitar a ideia que estamos propondo não implicam rejeitá-la de fato, mas em aceitá-la parcialmente. Ao enfatizar isso, aumentamos as chances de mesmo quem discorda de sua aceitação completa ainda aceitá-la pelo menos em alguma medida.

Nesse sentido, podemos distinguir duas abordagens:

Abordagem total: defender o que acreditamos ser a melhor decisão

Abordagem suficiente: enfatizar que mesmo quem discorda da nossa posição pode aceitá-la parcialmente ou aceitar algumas de suas implicações

Importante: essas não são estratégias mutuamente excludentes. De fato, no final do texto será defendido que temos mais chances de melhores resultados se combinarmos ambas, focando mais em uma ou em outra dependendo da questão e do contexto.

A seguir estão vários exemplos dessas abordagens quanto a vários tópicos:

TópicoAbordagem totalRiscos envolvidosAbordagem suficiente
Critério de consideração moralDefender que os seres a quem devemos considerar são os seres sencientes, e apenas os seres sencientes.Quem acha que devemos consideração a entidades não sencientes pode achar que está justificado a desconsiderar os seres sencientes.Enfatizar que, mesmo quem defende considerar entidades não sencientes, deve reconhecer que ser senciente deveria ser suficiente para ser considerado, e que ainda existem razões para priorizar os seres sencientes frente a entidades não sencientes, sejam estas totalidades ou organismos vivos.
Teoria éticaDefender uma teoria ética específica que consideramos mais plausível, e mostrar que ela implica rejeitar o especismo.Quem não aceita tal teoria específica pode achar que não precisa rejeitar o especismo.Enfatizar que, para se aceitar os argumentos para se rejeitar o especismo, não é necessária a adoção de uma teoria ética específica.
Vertente políticaDefender uma vertente política específica, e mostrar que os ideais dela são realizados somente se rejeitarmos o especismo.Quem é de qualquer outra vertente política pode achar que não precisa rejeitar o especismo.Enfatizar que o especismo deve ser rejeitado, independentemente de qual vertente política alguém prefira.
VeganismoDefender o veganismo.Dado o grau de especismo vigente, muitas pessoas podem achar o padrão exigente demais e não mudar em nada o seu consumo.Enfatizar que, mesmo quem não se tornou vegano ainda pode diminuir o consumo e fazer outras coisas para ajudar os animais.
EspecismoRejeitar o especismo e defender que devemos dar igual consideração a todos os seres sencientes.Dado o grau de especismo vigente, muitas pessoas podem não concordar com isso e, então, acharem que não precisam dar consideração alguma aos animais não humanos.Enfatizar que, mesmo que os humanos merecessem maior consideração, isso não implicaria que os animais não merecem consideração alguma, e nem que merecem pouca consideração.
Especismo e priorização de causasDefender que a igual consideração implica priorizar a situação dos seres sencientes não humanos (dada a quantidade de vítimas, grau de negligência etc.).As pessoas especistas, por discordarem da igual consideração, acharem que não precisam dar grande atenção à situação dos animais não humanos.Enfatizar que, mesmo que alguém dê peso maior aos humanos, dada a quantidade de vítimas, ainda teria que priorizar a situação dos animais não humanos. Ajuda enfatizar também que, mesmo que alguém priorize os problemas humanos, deve ainda considerar muito importante fazer algo pelos animais não humanos.
Magnitude do dano da morteDefender que pertencer à espécie humana ou possuir maiores capacidades cognitivas  não implica necessariamente ser prejudicado com a morte em maior grau.As pessoas que discordam disso acharem que os animais são pouco prejudicados com a morte.Lembrar que, do fato de um indivíduo ser prejudicado com a morte em maior grau do que outro, não se segue que o indivíduo que é menos prejudicado é pouco prejudicado com a morte.
Dano da morteDefender que os animais não humanos são prejudicados com a morte.Quem achar que eles não são prejudicados com a morte achar que está justificado explorar os animais ou não ajudá-los quando vítimas de processos naturais.Mostrar que, na vasta maioria dos casos, para sermos contra sua exploração e ser a favor de ajudá-los na natureza, basta reconhecermos que são prejudicados com o sofrimento.
Bem-estar dos seres sencientesDefender uma posição específica em teoria do bem-estar. (Por exemplo, defender que tudo o que importa, em termos de bem-estar dos seres sencientes, é o sofrimento e o prazer — isto é, defender uma teoria experiencialista do bem-estar).Pessoas que acreditam que outras coisas importam em si para o bem-estar (satisfação de preferências, conhecimento, relações etc.) pensarem que o sofrimento e o prazer não importam.Enfatizar que acreditar que outras coisas para além do sofrimento e prazer importam para o bem-estar não implica que o sofrimento e o prazer não importem.
Priorização quanto ao futuroDefender que devemos priorizar o futuro em longo prazo e priorizar evitar riscos-s.Quem discorda disso achar que não precisa se preocupar com o futuro em longo prazo e com riscos-s.Enfatizar que mesmo quem tem outras prioridades ainda tem razões para pensar que o futuro em longo prazo e evitar riscos-s são coisas muito importantes.
Intervenções que afetam os animais selvagens: metas centradas na senciência versus metas ambientalistasDefender que, ao tomar decisões que afetam os animais selvagens, devemos acatar uma visão unicamente centrada na senciência (e rejeitar metas ambientalistas), e que isso implica ajudar os animais na naturezaAs pessoas que adotam valores ambientalsitas pensarem que estão justificadas a serem contra ajudar os animais selvagensLembrar que defender que entidades não sencientes são moralmente consideráveis não mostra que os seres sencientes não o são, e que ainda podemos ter razões para priorizar os seres sencientes, mesmo que tivéssemos que considerar entidades não sencientes. Pode-se mostrar também que muitos programas para ajudar os animais selvagens não conflitam com as metas ambientalistas (alguns até ajudariam a realizá-las).
Foco na situação dos animais na natureza vítimas de processos naturais (em comparação aos animais explorados)Defender focar na situação dos animais na natureza vítimas dos processos naturais, em vez de nos animais explorados  (dada a quantidade de vítimas, grau de negligência, tratabilidade etc.)As pessoas que focam nos animais explorados pensarem que estão justificadas a desconsiderar a situação dos animais selvagensEnfatizar que mesmo quem tem outros focos ainda deveria dedicar pelo menos uma parte do seu ativismo a falar da questão do sofrimento dos animais selvagens
Responsabilidade moral por danos Naturais e danos antropogênicosDefender que temos tanta responsabilidade moral por danos naturais quanto temos por danos antropogênicos.As pessoas que acreditam que são mais responsáveis por danos antropogênicos acharem que não temos dever de fazer nada quanto a danos naturaisEnfatizar que defender que somos moralmente responsáveis em maior grau por uma coisa não implica defender que não o sejamos por outra (pode-se defender, por exemplo, que o sejamos em alto grau, ainda que em grau menor).
Ajuda a animais selvagens e veganismo      Defender que devemos ser veganos  e também ser favoráveis a ajudar os animais na natureza.Quem não é vegano achar que só pode ser a favor de ajudar os animais selvagens se algum dia se tornar veganoEnfatizar que, se pudermos fazer algo para ajudar, devemos fazê-lo, independentemente de se estamos ou não a fazer outras coisas para ajudar.
Estratégias de ativismoDefender enfaticamente determinadas estratégias de ativismo que acreditamos ser as melhores.Ativistas que preferem outras estratégias acharem que não são possíveis compromissos mútuos conoscoEnfatizar que podemos concordar com determinadas estratégias mesmo que discordemos em outras. Também ajuda enfatizar que, apesar da divergência estratégica, a meta é comum.
Consideração pelos seres sencientes e outras questões filosóficasDefender a consideração pelos seres sencientes e também se pronunciar abertamente sobre várias outras questões filosóficas (éticas, políticas, metafísicas, epistemológicas etc.)O leque de discordância em todas essas questões é muito grande. Isso pode fazer (especialmente se defendemos visões controversas em outros tópicos) as pessoas não aceitarem nossa defesa da consideração pelos seres sencientes.Enfatizar que a consideração pelos seres sencientes pode ser aceita independentemente do que alguém pensa sobre outras questões filosóficas. Outra opção é não tomar partido sobre essas outras questões (especialmente se forem altamente controversas).
Critérios para a senciência e natureza da consciênciaDefender uma posição específica em filosofia da mente quanto a qual é a natureza da consciência e defender que ela implica reconhecer que seres com um sistema nervoso centralizado são sencientes.As pessoas que não aceitam essa posição específica em filosofia da mente pensarem que estão justificadas a negar que seres que possuem um sistema nervoso centralizado são sencientesDefender que devemos reconhecer que há uma correlação entre estados cerebrais e estados mentais, seja lá o que pensemos sobre o que é a consciência (por exemplo, independentemente de se pensamos que estados cerebrais causam os estados mentais, ou que os mentais causam os cerebrais, ou que há correlação mas uma não causa a outra, ou que são dois aspectos da mesma coisa etc.)
Implicações controversas do que defendemosExpor abertamente que aquilo que defendemos tem algumas implicações controversas, e defender que o senso comum é que está erradoAs pessoas não aceitarem nossa proposta se perceberem que ela tem essas implicações controversasEnfatizar que, mesmo que alguém discorde do que fazer quanto aos casos controversos, isso não implica rejeitar a proposta como um todo. Por exemplo, alguém rejeitar intervenções em conflitos entre animais não implica rejeitar vacinações, tratamento de doenças, ajuda em desastres etc. Outra opção é esconder a implicação controversa mas, se o público percebe por si próprio a implicação, poderá achar que somos desonestos.

5. Conclusão: graus de foco em uma ou outra estratégia

Como vimos acima, não temos que necessariamente optarmos por uma ou outra estratégia (ainda que isso também seja possível). Pode-se, por exemplo, argumentar com o foco no total e enfatizar que, mesmo quem não concorda ainda poderia aceitar parcialmente o que foi defendido.

Mesmo se optemos por um foco maior no que for suficiente, isso não significa que argumentar a favor da meta total não seja importante. Por exemplo, certamente que um mundo onde muitas pessoas são antiespecistas têm consequências muito diferentes de um mundo onde muitas pessoas apenas consideram os animais não humanos, mas em menor grau. Assim, a abordagem total também é muito importante (pelo menos em boa parte dos contextos listados acima).

A decisão por um foco maior na abordagem total ou na suficiente depende de sabermos o que realizaria de modo mais eficiente nossas metas. Por exemplo, elas seriam melhor realizadas se

um número maior de pessoas as aceitarem parcialmente ou se um número menor de pessoas as aceitarem por completo? A resposta para isso dependerá, no caso de cada meta: (1) do número de pessoas que a aceitaria totalmente versus o número de pessoas que a aceitaria parcialmente e (2) do quão mais para realizar a meta cada pessoa que a aceita totalmente faria, em comparação a quem a aceita parcialmente.

Independentemente das respostas para essas difíceis questões, parece que argumentar apenas a favor do ideal, sem enfatizar o suficiente envolve riscos altos. Por outro lado, falar apenas do suficiente é não ousar discutir as questões controversas. Começar o quanto antes a discutir essas questões pode fazer a diferença em longo prazo, por tornar o público menos avesso a pensar sobre elas. Assim, combinar a estratégia total com a suficiente parece ser uma boa ideia, pelo menos em boa parte dos contextos listados acima.


[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.