Nunca conseguiremos ajudar todos. Não é inútil tentar ajudar?

Luciano Carlos Cunha[1]

A quantidade de animais na natureza é gigantesca. De acordo com algumas estimativas, há algo entre 1 e 10 quintilhões de indivíduos sencientes em um dado momento na natureza[2]. Para termos uma ideia desse número, se fizermos uma analogia com o período de um ano e compararmos com a população humana, esta última representaria no máximo 0,25 segundos do ano.

A vasta maioria dos animais que nascem na natureza são altamente prejudicados de muitas maneiras pelos processos naturais[3]. Para cada animal que consegue sobreviver e ter uma vida predominantemente positiva, literalmente milhares ou mesmo milhões deles nascem apenas para experimentar uma vida repleta de sofrimento e para morrer prematuramente e de modo extremamente doloroso[4]. Por essa razão, existe uma proposta de se pesquisar maneiras de prevenir a quantidade de sofrimento e de mortes dos animais selvagens[5].

Por vezes é defendido que é inútil ajudar os animais na natureza, pois, dada a quantidade astronômica de vítimas, nunca conseguiremos ajudar todos os animais que precisam. Entretanto, essa objeção pode ser facilmente respondida apontando que a impossibilidade de ajudar a todos que precisam não impede nem torna inútil ajudar naqueles casos em que conseguimos. Para os animais que poderíamos ajudar, a nossa ajuda faria toda diferença.

Objeções desse tipo jamais seriam levadas a sério no contexto humano. Imagine, por exemplo, um médico se recusando a salvar sua vida alegando que fazê-lo seria inútil porque é impossível ajudar todas as pessoas que precisam. É apenas por conta da predominância do especismo que objeções desse tipo surgem quando os animais não humanos são as vítimas.

Não deveríamos priorizar problemas que poderíamos resolver uma parte maior?

Existe outra objeção à proposta de ajudar os animais selvagens que diz que, mesmo que consigamos ajudar os animais na natureza em uma enorme quantidade de casos, fazê-lo não seria uma maneira eficiente de utilizar nossos recursos, pois, dada a quantidade astronômica de vítimas, mesmo que ajudássemos muitos deles, isso ainda representaria uma fração pequena do total. De acordo com essa objeção deveríamos focar apenas nos animais explorados, pois a porcentagem do problema que conseguiríamos resolver seria maior.

O principal problema com essa objeção é que ela comete o erro de medir a eficiência no uso dos recursos com base na porcentagem, e não com base na quantidade real de vítimas que conseguiríamos ajudar. Vejamos um exemplo para ilustrar esse ponto.

Imaginemos que com uma mesma quantia de recursos conseguimos, ou ajudar 90% dos animais do problema A, ou ajudar em igual medida 0,1% dos animais do problema B (que estão todos em uma situação igualmente ruim à dos animais do problema A).

Se nos guiarmos pela proporção, escolheremos ajudar 90% do problema A. Mas, suponhamos que o problema A tenha um trilhão de animais, e o problema B tenha um quatrilhão. 90% de um trilhão são 900 bilhões. 0,1% de um quatrilhão é um trilhão. Se escolhermos resolver 0,1% do problema B, estaremos ajudando 100 bilhões de animais a mais, com a mesma quantia de recursos.

Portanto, para se medir a eficiência no uso de recursos para ajudar, o que importa é a quantidade real de benefício que conseguiríamos produzir, e não, quantos casos similares ainda restam para serem resolvidos.

REFERÊNCIAS

ANIMAL ETHICS. Introduction to wild animal suffering: A guide to the issues. Oakland: Animal Ethics, 2020.

CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022a.

ÉTICA ANIMAL. A situação dos animais na natureza. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 23 out. 2016a.

ÉTICA ANIMAL. Ajudando os animais na natureza. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 23 out. 2016b.

ÉTICA ANIMAL. Biologia do bem-estar. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 8 jul. 2019b.

ÉTICA ANIMAL. Dinâmica de populações e o sofrimento dos animais. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 27 out. 2015b.

FARIA, C.; HORTA, O. Welfare biology. In: FISCHER, B. (org.). The routledge handbook Of animal ethics. New York/London: Routledge – Taylor & Francis group, 2020, p. 455-66.

HORTA, O. Debunking the Idyllic View of Natural Processes: Population Dynamics and Suffering in the Wild. Télos, v. 17, p. 73-88, 2010b.

NATIONAL MUSEUM OF NATURAL HISTORY & SMITHSONIAN INSTITUTION. Numbers of insects (species and individuals). Encyclopedia Smithsonian, 2008.

SORYL, A. A.; MOORE, A. J.; SEDDON, P. J.; KING, M. R. The Case for Welfare Biology. Journal of Agricultural and Environmental Ethics, v. 34, n. 7, 2021.

TOMASIK, B. How Many Animals are There? Essays on Reducing Suffering, 07 ago. 2019a.


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Ver National Museum of Natural History & Smithsonian Institution (2008) e Tomasik (2019a).

[3] Sobre a situação típica dos animais que se encontram na natureza, ver Ética Animal (2016a) Animal Ethics (2020) e Horta (2010b).

[4] Sobre isso, ver Horta (2010b) e Ética Animal (2015b).

[5] Para os fundamentos dessa proposta, ver Cunha (2022a) e Animal Ethics (2020). Sobre o campo científico que informaria essa proposta, ver Ética Animal (2019b), Faria e Horta (2020) e Soryl et. al. (2021).