Não é absurdo intervir em conflitos entre animais?

Luciano Carlos Cunha[1]

Os animais que vivem na natureza são prejudicados não apenas por práticas humanas. São também altamente prejudicados por processos naturais[2], como desnutrição, fome e sede, doenças, lesões físicas, estresse psicológico, eventos meteorológicos hostis e desastres naturais. Outro fator que contribui enormemente para que haja uma maximização da quantidade de animais que nasce apenas para sofrer e morrer prematuramente é o fato de que a maioria das espécies de animais possui ninhadas gigantescas, com milhares ou mesmo milhões de filhotes dependendo da espécie, sendo que, em populações estáveis, a média de sobreviventes é apenas dois filhotes de cada ninhada[3]. Por todas essas razões, existe uma proposta de se pesquisar maneiras de ajudar esses animais[4], prevenindo e minimizando o seu sofrimento e suas mortes prematuras.

Na natureza os animais rotineiramente se envolvem em conflitos com animais de outras espécies[5], como nos casos de predação e de parasitismo, e com animais da mesma espécie[6], como em disputas por alimentos e território, e também em conflitos sexuais[7]. Por vezes, é afirmado que a proposta de ajudar os animais selvagens é absurda por implicar em intervir em tais conflitos[8].

Existem duas variações dessa objeção. A primeira diz que intervir nesses conflitos é errado porque poderia resultar em algo ainda pior do que não fazer nada. Por exemplo, é comumente apontado que, evitando casos de predação, as presas poderiam se reproduzir ainda mais, e o resultado ser ainda mais sofrimento e mortes do que se não fosse feito nada (por exemplo, por meio de um aumento da quantidade de mortes por inanição devido ao aumento na quantidade de nascimentos).

Um problema com essa primeira variação é que aquilo que é defendido pela proposta de ajudar é pesquisar maneiras de fazer com que o resultado ao longo do tempo seja melhor do que se não fosse feito nada. Portanto, tal proposta não diria para intervir em casos onde fazê-lo teria resultados ainda piores do que não fazer nada. Certamente que intervenções mal planejadas poderiam ter resultados ainda piores do que não fazer nada. Mas isso não mostra que intervenções bem planejadas teriam resultados piores do que não fazer nada.

Já a segunda variação da objeção defende que, mesmo que não fazer nada resulte em mais sofrimento e mortes ao longo do tempo, o correto é não intervir. Por exemplo, por vezes é dito que o fato de os predadores e parasitas terem necessidade de atacar outros organismos para sobreviver torna errado intervir.

Rejeitaremos essa variação se rejeitarmos que uma ação possa ser correta e ter resultados ainda piores do que outras opções disponíveis. Além disso, poderia ser apontado que essa variação é especista, pois quando as vítimas são humanas, os predadores e parasitas também têm necessidade de atacar para sobreviver, mas não é dito que isso torna errado socorrer as vítimas.

Intervenções em larga escala na predação são amplamente praticadas há muitas décadas[9]. Essas intervenções tem como objetivo proteger humanos ou os animais domesticados que os humanos pretendem explorar. Em outras vezes visam realizar metas ambientalistas, como preservar espécies raras de animais ou plantas. Isso sugere que comumente são adotados dois pesos e duas medidas: se a intervenção tem uma meta antropocêntrica ou ambientalista, é aceita sem ter que provar que terá melhores resultados; se a intervenção é centrada na preocupação com o bem dos animais, é rejeitada mesmo que tenha melhores resultados. Isso é resultado da predominância do especismo.

Por vezes é defendido que os conflitos entre os animais não geram um problema ético porque os animais mesmos não são responsabilizáveis[10]. Mas, já vimos em outro texto os problemas com esse tipo de visão: assim como acontece quando os humanos são vítimas de processos naturais, temos razões para tentar ajudar as vítimas porque o sofrimento é negativo, e é negativo independentemente de ter se originado ou não de um agente responsabilizável[11].

Em outras vezes é defendido que intervir seria tomar partido e que, portanto, violaria a imparcialidade. Entretanto, esse argumento confunde neutralidade com imparcialidade. O que a imparcialidade exige é não favorecer ou desfavorecer tendenciosamente. Por exemplo, a imparcialidade implica que níveis de prejuízos e benefícios de magnitude similar recebam o mesmo peso. Isso não implica que, se fizermos isso, concluiremos que não devemos intervir na situação. Por exemplo, se alguém levou em conta todos os animais afetados, sejam predadores ou presas, e deu igual peso ao bem de cada um, e concluiu que o correto é intervir porque desse modo haverá menos sofrimento e mortes prematuras ao longo do tempo, não está a ser tendencioso. Pelo contrário: está a fazer exatamente o que faria se não soubesse quem são os afetados (portanto, cumprindo a exigência de imparcialidade). Por outro lado, defender que é correto intervir apenas se as vítimas forem humanas é especista e, portanto, viola a imparcialidade.

Isso tudo não significa necessariamente que, dado o estágio atual do conhecimento, intervir em tais conflitos seria o melhor a se fazer para prevenir os danos que os animais padecem na natureza. Entretanto, parece mostrar que intervir em tais conflitos não é errado em si.

REFERÊNCIAS

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CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022a.

DYCKN, V. A.; HENDRICHS, J.; ROBINSON, A. S. (org.). Sterile insect technique. Dordrecht: Springer, 2005.

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ÉTICA ANIMAL. Antagonismo na natureza: conflitos interespecíficos. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 26 out. 2016.

ÉTICA ANIMAL. Antagonismos na natureza: conflitos intraespecíficos. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 28 fev. 2020b.

ÉTICA ANIMAL. Antagonismos na natureza: conflito sexual. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 28 fev. 2020a.

ÉTICA ANIMAL. Dinâmica de populações e o sofrimento dos animais. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 27 out. 2015b.

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PARKER, A.; MEHTA, K. Sterile insect technique: A model for dose optimization for improved sterile insect quality. Florida Entomologist, v. 90, p. 88-95, 2007.

PEARCE, D. Projeto para um mundo sem crueldade: reprogramar os predadores. The Abolitionist Project, [s.l.], 2009.

SAPONTZIS, S. F. Morals, Reason and Animals. Philadelphia: Temple University Press, 1987.

SAPONTZIS, S. F. Predation. Ethics and Animals, v. 5, p. 27-38, 1984.

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NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Sobre a situação típica dos animais que se encontram na natureza, ver Ética Animal (2016a) Animal Ethics (2020) e Horta (2010b).

[3] Sobre isso, ver Horta (2010b) e Ética Animal (2015b).

[4] Para os fundamentos da proposta de ajudá-los, ver Cunha (2022a). Animal Ethics (2020).

[5] Ver Ética Animal (2016).

[6] Ver Ética Animal (2020b).

[7] Ver Ética Animal (2020a).

[8] Para uma análise detalhada dessa objeção, ver Sapontzis (1984) e Cunha (2022a, p. 156-172).

[9] Ver Dyckn, Hendrichs e Robinson (2005); Parker e Mehta (2007) e Alphey et. al. (2010).

[10] Ver, por exemplo, Taylor (1986, p. 178).

[11] Para análises da questão da predação enquanto problema ético, ver Bonnardel (1996); Cowen (2003); Fink (2005); Horta (2010c); McMahan (2010a, 2010b, 2015); Pearce (2009); Sapontzis (1984, 1987) e Torres Aldave (2015).