Luciano Carlos Cunha[1]
- Para se rejeitar o especismo, é necessário aderir a uma teoria ética específica?
- A rejeição do especismo é compatível com várias visões de ética
- Um exemplo com três teorias éticas diferentes
Para se rejeitar o especismo, é necessário aderir a uma teoria ética específica?
Um equívoco comum é pensar que, para se rejeitar o especismo, é necessário aceitar uma visão específica da ética, como o utilitarismo. Assim, opositores do respeito pelos animais não humanos por vezes tentam argumentar contra o utilitarismo, com o objetivo de concluir que o especismo está justificado.
A rejeição do especismo é compatível com várias visões de ética
Entretanto, para se reconhecer que as defesas do especismo têm problemas, não é necessário assumir uma teoria específica da ética. Além disso, o princípio da igual consideração é compatível com qualquer visão de ética não tendenciosa[2]. Isso é assim porque trata-se de um princípio formal. Isto é, ele próprio não prescreve qual é a ação correta (isso é feito pelos vários princípios normativos substanciais de cada teoria ética). O que o princípio da igual consideração diz é que, seja lá qual princípio substancial adotemos para determinar qual é a ação correta, não há justificativa para sermos tendenciosos em sua aplicação.
Como veremos a seguir, o utilitarismo certamente precisa dar igual consideração a todos os seres sencientes e, portanto, precisa rejeitar o especismo. Entretanto, a consideração moral de todos os seres sencientes e a rejeição do especismo foi defendida a partir das mais variadas teorias da ética normativa[3]. A seguir, veremos um exemplo com três teorias éticas distintas.
Um exemplo com três teorias éticas diferentes
Imaginemos que resgatamos dois animais, e que há duas maneiras nas quais é possível abrigá-los. Na primeira, um dos animais se encontrará em uma condição bem melhor do que o outro, ainda que ambos fiquem em uma condição positiva. Na segunda, o primeiro animal não estará tão bem quanto se encontraria na primeira opção, mas o segundo se encontrará melhor do que se encontraria na primeira opção.
Essas opções estão esquematizadas na tabela a seguir, onde S1 e S2 são as possíveis situações para os indivíduos A e B, e os números representam os seus níveis de bem-estar.
Situação | Indivíduo A | Indivíduo B | Total agregado | Nível Mínimo | Desigualdade |
S1 | +20 | +10 | +30 | +10 | -10 |
S2 | +14 | +15 | +29 | +14 | -1 |
Agora, peguemos como exemplo três visões de ética que aceitam a igual consideração, mas que possuem metas distintas: o utilitarismo, o maximin e o igualitarismo.
Utilitaristas diriam que S1 é melhor, pois seu objetivo é maximizar o total agregado. Já proponentes do maximin diriam que S2 é melhor, pois seu objetivo é que o nível mínimo de bem-estar seja o mais alto possível. Igualitaristas, por sua vez, também concordariam que S2 é melhor, mas porque nela o nível de desigualdade é menor.
Então, em que sentido todas essas visões de ética aceitam a igual consideração? No seguinte sentido: se os indivíduos trocassem de lugar, manteriam a mesma decisão. A tabela a seguir exemplifica essa troca:
Situação | Indivíduo A | Indivíduo B | Total agregado | Nível Mínimo | Desigualdade |
S1 | +10 | +20 | +30 | +10 | -10 |
S2 | +15 | +14 | +29 | +14 | -1 |
Nesse caso, utilitaristas continuariam mantendo que devemos escolher S1, e proponentes do maximin e igualitaristas continuariam mantendo que devemos escolher S2.
Se alguém se recusa a defender a mesma decisão caso os indivíduos troquem de lugar (por exemplo, por ser especista e desejar sempre priorizar A ou B), então já não alcançará a meta que a teoria ética em questão visa alcançar. Assim, qualquer visão de ética não tendenciosa dá igual consideração a todos os seres sencientes. Portanto, é falso que, para se rejeitar o especismo, é necessário assumir uma teoria ética específica.
Que qualquer teoria ética plausível precisa rejeitar o especismo (e, por consequência, defender a abolição das práticas especistas, como a exploração animal) é algo que vem sendo cada vez mais reconhecido. Por exemplo, em 04 de outubro de 2022 foi assinada a Declaração de Montreal Sobre a Exploração Animal. Mais de 500 especialistas em ética e filosofia política de mais de 40 países a assinaram, e declararam o seguinte:
“…Raramente concordamos uns com os outros. Concordamos, no entanto, com a necessidade de uma profunda transformação em nossas relações com os outros animais. Condenamos as práticas que envolvem tratar os animais como objetos ou mercadorias”.
REFERÊNCIAS
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NOTAS
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Sobre a compatibilidade do princípio da igual consideração com várias teorias éticas, ver Cunha (2022b).
[3] Podemos citar, por exemplo: utilitarismo (SINGER, 2002 [1979]; MATHENY, 2006); teorias de direitos (REGAN, 1983; FRANCIONE, 2000); igualitarismo (GOMPERTZ, 1997[1824]; FARIA, 2014; HORTA, 2016), prioritarismo (HOLTUG, 2007); suficientismo (CRISP, 2003); ética focada no sofrimento (VINDING, 2020); consequencialismo negativo (PEARCE, 2017); ética do cuidado (ADAMS; DONOVAN, 1996); abordagem das capacidades (NUSSBAUM, 2006); ética das virtudes (ROLLIN, 1981; DOMBROWSKI 1985; NOBIS 2002; HURSTHOUSE 2006; ABBATE 2014); kantianismo (FRANKLIN, 2005; KORSGAARD, 2005); neokantianismo (PLUHAR, 1995) e o contratualismo rawlsiano (VANDEVEER, 1979; ROWLANDS, 1998). Já outros autores (CLARK, 1977; SAPONTZIS, 1987) defenderam os animais combinando várias perspectivas da ética. Para um resumo de como várias dessas teorias abordam a questão, ver Ética Animal (2015f) e Cunha (2022b).