Somos moralmente responsáveis apenas por práticas humanas?

Luciano Carlos Cunha[1]

Os animais que vivem na natureza são prejudicados não apenas por práticas humanas. Também são prejudicados em alto grau por processos naturais como fome, sede, doenças, desastres naturais etc.[2] Por conta disso, existe uma proposta de pesquisar maneiras de minimizar e prevenir esses danos[3].

Algumas pessoas se posicionam contrariamente a tal proposta, alegando que somos moralmente responsáveis apenas por danos que decorrem de práticas humanas[4]. De acordo com essa visão, se a humanidade decidir não destinar recurso algum para pesquisar maneiras de reduzir o sofrimento dos animais selvagens que decorre de processos naturais, nada é feito de errado. A seguir veremos algumas críticas a essa posição[5].

Uma primeira crítica aponta que, mesmo que não existisse a obrigação de ajudar esses animais, isso não mostra que seria errado fazê-lo. Portanto, mesmo quem nega que haja essa obrigação ainda teria que afirmar que é algo bom que seja feito, pois poderia reduzir quantidades enormes de sofrimento. Portanto, negar a obrigação de ajudar não implica que os animais selvagens não devam ser ajudados, pois negar uma obrigação é muito diferente de defender uma proibição.

Uma segunda crítica é que, mesmo que fôssemos moralmente responsáveis apenas por práticas humanas, há muitas práticas humanas que criam as condições nas quais os processos naturais prejudicam os animais[6]. Portanto, mesmo segundo o critério que a objeção adota, haveria obrigação de ajudar os animais em todos esses casos (e não são poucos).

Por fim, a terceira crítica questiona: “por que seríamos moralmente responsáveis apenas por práticas humanas?”. Por exemplo, poderia ser dito, em vez disso, que somos moralmente responsáveis toda vez que temos um papel decisivo em influenciar o desenrolar os acontecimentos.

Imagine, por exemplo, que ocorrem duas situações simultâneas que resultam em vítimas humanas. Na primeira, em decorrência de práticas humanas, ocorre um incêndio. Na segunda, em decorrência de um fenômeno natural que não tem qualquer relação com práticas humanas, ocorre um incêndio. Imagine que o governo dispõe de recursos para socorrer as vítimas de ambos os casos (e que usar esses recursos para salvá-las não comprometerá nada de importância maior). Suponha, entretanto, que seja negada ajuda às vítimas do segundo caso, e que seja alegado que não há nada de errado com isso, pois os danos em questão não foram causados por práticas humanas. Se discordamos dessa decisão, então, rejeitamos a tese de que somos moralmente responsáveis apenas por práticas humanas.

A seguir, discutiremos algumas tentativas adicionais de defender que somos moralmente responsáveis apenas por práticas humanas.

“Mas, nós não causamos esses danos”

De acordo com certa visão, para sermos moralmente responsáveis por uma situação, temos de ter sido a causa dessa situação[7]. Segundo essa visão, é errado, por exemplo, consumir os animais (pois isso causa suas mortes) mas não há nada de errado se a humanidade decidir não destinar recurso algum para ajudar os animais selvagens que são vítimas de processos naturais (como fome, sede, doenças etc.), pois nesse caso os humanos não causaram a situação que os prejudica (ela já existia muito antes do surgimento da humanidade). Entretanto, o contraexemplo a seguir desafia a ideia de que, para sermos moralmente responsáveis por uma decisão, é necessário que a tenhamos causado a situação[8].

Imagine que uma árvore está a despencar naturalmente e atingirá mortalmente Maria. Felizmente, Ana está presenciando a cena e tudo o que precisa fazer para salvar a vida de Maria é avisá-la de que a árvore está prestes a cair, para que ela possa desviar a tempo. Imagine, entretanto, que Ana decide não avisá-la, e em decorrência disso, Maria morre. Em sua defesa, Ana diz que não foi moralmente responsável pela morte de Maria, pois não foi ela quem causou a queda da árvore: “Foi a árvore quem causou a morte dela, não eu!”, ela afirma. Se pensamos que Ana fez algo de errado ao não avisar a vítima, então não aceitamos que, para sermos moralmente responsáveis por uma situação, precisamos ter causado essa situação.

No caso em questão, Ana não causou o processo que terminou na morte, mas sua decisão foi crucial para que a morte ocorresse. Mas, o mesmo acontece no caso dos animais na natureza que são vítimas de processos naturais e é possível ajudar. Se é possível ajudá-los, então a decisão sobre ajudar ou não ajudar é crucial para determinar se eles vão morrer ou não em decorrência dos processos naturais, mesmo que os humanos não tenham causado a situação que os prejudica. Isso parece apontar para a conclusão de que a humanidade faz algo de errado se não destina recursos para pesquisar como ajudar os animais que vivem na natureza.

“Mas, esses danos existiriam mesmo que não existíssemos”

Por vezes é defendido não há nenhuma obrigação de a humanidade destinar recursos para ajudar os animais que são vítimas de processos naturais porque tais danos existiriam mesmo que nós nunca tivéssemos existido.

Entretanto, o que parece ser relevante para saber se somos moralmente responsáveis por uma escolha não é o que ocorreria se não existíssemos, mas, uma vez que existimos, o que ocorrerá de acordo com o que decidirmos[9]. Se um resultado está em nossas mãos, isso parece nos tornar responsáveis por ele.

Por exemplo, imaginemos que em um hospital um médico afirme que não tem obrigação de atender vítimas de doenças causadas naturalmente, pois estas existiriam mesmo que ele não existisse. Se pensamos que o médico está a agir mal, então não aceitamos a ideia de que não somos moralmente responsáveis por danos naturais.

“Mas, não temos a intenção de produzir esses danos”

Por vezes é defendido que a humanidade não tem nenhuma obrigação de destinar recursos para ajudar os animais vítimas dos processos naturais porque nesse caso, diferentemente do caso da exploração animal, não temos a intenção[10] de produzir o dano (podemos simplesmente ter a intenção de fazer qualquer outra coisa e não se preocupar com isso).

A principal crítica a essa visão é que ela desconsidera totalmente o impacto de nossas decisões sobre os que serão afetados por elas para determinar se temos ou não uma obrigação. Por exemplo, os motoristas que dirigem acima do limite de velocidade têm a intenção apenas de chegar mais rápido, e não, de atropelar. Entretanto, isso não faz com que deixem de ter a obrigação de não atropelar[11].

Considere outro exemplo. Alguém que vê uma criança se afogar em uma banheira e não a socorre pode não ter a intenção de matá-la (pode simplesmente ter a intenção de fazer outra coisa e não se preocupar com isso), mas parece que faz algo muitíssimo errado ao não socorrê-la[12]. Se é assim, então não é necessário que tenhamos a intenção de produzir um dano para que tenhamos a obrigação de evitá-lo.

Assim, o fato de não termos a intenção de produzir a terrível situação na qual se encontram os animais na natureza não mostra que a humanidade não faz nada de errado se decide não destinar recursos para ajudá-los.

“Mas, não temos uma relação de proximidade com esses animais”

Por vezes é defendido que a humanidade não tem nenhuma obrigação de destinar recursos para ajudar os animais que vivem na natureza porque não temos uma relação de proximidade com eles.

Um primeiro ponto importante a se reparar quanto a essa visão, é que ela não poderia formar uma diferença relevante em relação aos animais que são vítimas de práticas humanas. Por exemplo, também não temos uma relação de proximidade com os animais que são mortos nos abatedouros, mas isso não parece fazer com que deixemos de ter obrigação de não prejudicá-los, pois nossa decisão à distância afeta-os diretamente.

Entretanto, o mesmo acontece em relação aos animais que estão na natureza. Em muitos casos, já é possível ajudá-los[13]. Em outros, é sempre possível para a humanidade investir recursos em pesquisar sobre como ajudá-los[14]. A decisão por fazê-lo ou deixar isso de lado determina diretamente à distância o destino deles.

Não é opcional escolher a quem ajudar?

Há pessoas que reconhecem um dever de ajudar quem necessita, mas defendem que, como é impossível ajudar a todos os que precisam, é moralmente opcional escolher a quem ajudar e, portanto, a humanidade não tem nenhuma obrigação de destinar recursos para ajudar os animais que estão na natureza.

Um problema com essa visão é que também é impossível evitar de prejudicar a todos, mas disso não se segue que é moralmente opcional escolher quem evitar prejudicar: normalmente reconhecemos que devemos priorizar evitar o prejuízo maior.

Analogamente, o fato de que é impossível ajudar a todos deveria nos levar a concluir que devemos priorizar os problemas mais graves (e, sobretudo, aqueles problemas mais graves com os quais quase ninguém se preocupa), e não, que tanto faz escolher quem ajudar. Como a situação dos animais na natureza é muito grave, e pouquíssimas pessoas estão se preocupando com isso, há fortes razões para a humanidade investir recursos em pesquisar formas de ajudá-los.

A proposta de ajudar os animais selvagens é exigente demais?

Por vezes é alegado que a proposta de ajudar os animais selvagens é exigente demais[15] e que, por isso, ninguém faz nada de errado se não dá atenção ao que ela propõe.

Uma primeira crítica possível a essa objeção é dizer que, dada a quantidade gigantesca de sofrimento no mundo, se uma proposta exige bastante que as pessoas se empenhem em diminuir esse sofrimento, isso é uma virtude dessa proposta, não um defeito. Mesmo se o fato de as pessoas terem de se empenhar muito em ajudar fosse um dano, seria ainda um dano muitíssimo menor do que aquele que as vítimas teriam caso não fosse feita essa exigência.

Já a segunda crítica observa que a proposta de ajudar os animais selvagens não é exigente como pode parecer à primeira vista. Isso porque o trabalho de pesquisa sobre como ajudar os animais na natureza e os programas práticos para ajudá-los seriam conduzidos por profissionais das áreas relacionadas, e não pelas pessoas comuns. Os profissionais dessas áreas, por sua vez, continuariam a fazer o seu trabalho normalmente, com a diferença que dessa vez a meta não seria antropocêntrica ou ambientalista, mas, centrada na preocupação com os próprios animais. As outras pessoas, por sua vez, poderiam reivindicar que os programas que hoje prejudicam os animais selvagens sejam substituídos por programas que os ajudem, e também divulgar a importância dessa questão, o que não é uma grande exigência.

Se temos uma  preocupação genuína com as  vítimas, o que concluiremos?

Vários são os motivos alegados para defender que a humanidade não tem nenhuma obrigação de destinar recursos para ajudar os animais selvagens que são vítimas de processos naturais: “não somos a causa desses danos”, “esses danos existiriam mesmo que a humanidade nunca tivesse existido”, “não temos a intenção de causar esses danos”, “não temos uma relação de proximidade com esses animais” etc.

Há uma crítica geral que pode ser feita a todas essas visões: todas elas focam em aspectos relacionados aos indivíduos que irão decidir, deixando em segundo plano a preocupação com aqueles indivíduos que poderíamos prejudicar ou beneficiar. Se nos preocuparmos verdadeiramente com os animais afetados por nossas decisões, há duas implicações importantes:

A primeira, é que não limitaremos nossa preocupação a danos decorrentes de práticas humanas, pois os animais são também prejudicados (em alto grau, como vimos) pelos processos naturais.

A segunda é que rejeitaremos também a concepção que afirma que as razões para ajudar os animais vítimas dos processos naturais existem, mas que são mais fracas do que as razões para ajudar os animais vítimas de práticas humanas. Se nossa preocupação for verdadeiramente com os animais, determinaremos a força das razões para ajudá-los a partir do quanto eles seriam prejudicados se não fossem ajudados, e não com base em saber se o dano é natural ou causado por práticas humanas. Isso significa que temos razões mais fortes para priorizar prevenir o dano maior, independentemente de sua origem ser antropogênica ou natural.

REFERÊNCIAS

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BOVENKERK, B.; STAFLEU, F.; TRAMPER, R.; VORSTENBOSCH, J.; BROM, F. W. A. To act or not to act? Sheltering animals from the wild: A pluralistic account of a conflict between animal and environmental ethics. Ethics, Place and Environment, v. 6, p. 13-26, 2003.

CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022a.

CUNHA, L. C. Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente. Curitiba: Appris, 2021.

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ÉTICA ANIMAL. Ajudando os animais na natureza. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 23 out. 2016b.

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HILLS, A. Utilitarianism, Contractualism and Demandingness. Philosophical Quarterly, [s.l.], v. 60, n. 239, p. 225-242, 2010.

HORTA, O. Debunking the Idyllic View of Natural Processes: Population Dynamics and Suffering in the Wild. Télos, v. 17, p. 73-88, 2010b.

RACHELS, J. Can Ethics Provide Answers? And Other Essays in Moral Philosophy. Boston: Rowan e Littlefield, 1997.

RACHELS, J. Killing and Letting Die. In: BECKER C.; BECKER, L. (orgs.). Encyclopedia of Ethics. 2a ed. New York: Routledge, 2001, p. 947-50, 2001.

RACHELS, J. The End of Life: Euthanasia and Morality. Oxford: Oxford University Press, 1987.

SINGER, P. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002 [1979].

WOOLLARD, F; HOWARD-SNYDER, F. Doing vs. Allowing Harm. In: Zalta, E. N. (org.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2021 Edition).


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Sobre a situação típica dos animais que se encontram na natureza, ver Ética Animal (2016a) Animal Ethics (2020) e Horta (2010b).

[3] Para os fundamentos dessa proposta, ver Cunha (2022a) e Animal Ethics (2020).

[4] Ver, por exemplo, Bovenkerk et al. (2003, p. 24-5).

[5] Para críticas mais detalhadas, ver Cunha (2021, p. 121-125, 179-183; 2022a, p. 191-227).

[6] Sobre isso, ver Cunha (2022a, p. 236-243).

[7]Para uma discussão sobre esse argumento, ver Rachels (1987, p. 114-5).

[8] Para uma discussão sobre esse tópico, ver Rachels (1987, p. 106-150; 1997, p. 63-79; 2001), Singer (2002[1979], p. 211-223, 233-240) e Woollard e Howard-Snyder (2021).

[9] Sobre isso, ver Singer (2004[1979], p. 236).

[10] O requerimento da intenção é discutido em Singer (2004[1979], p. 219-21; 236-8).

[11] Esse exemplo pode ser encontrado em Singer (2004[1979], p. 238).

[12] Esse exemplo pode ser encontrado em Rachels (1997, p. 65-66, 76-78).

[13] Ver Ética Animal (2016b); Animal Ethics (2021, p. 60-85) e Cunha (2022a, p. 280-4).

[14] Ver Ética Animal (2019b); Faria e Horta (2020) e Animal Ethics (2021, p. 136-182).

[15] Ver, por exemplo, Hills (2010).