Vieses que contribuem para a negligência dos problemas com mais vítimas

Luciano Carlos Cunha[1]

Sumário:

1. Introdução

Um viés cognitivo é diferente de uma falácia. Uma falácia é um raciocínio errado que tem a aparência de estar correto. Já vieses são as tendências psicológicas que conduzem sistematicamente a raciocínios errados.

Vimos em outro texto que os problemas que afetam as maiores quantidades de vítimas são amplamente negligenciados. Há várias tendências que contribuem para a negligência desses problemas importantes. Uma das principais é o antropocentrismo, que faz com que os problemas que afetam os animais não humanos recebam pouca importância.

Entretanto, mesmo defensores dos animais e autores da área de ética animal tendem a negligenciar os problemas que afetam as maiores quantidades de seres sencientes. Neste texto abordaremos alguns vieses que contribuem para essa negligência.

2. A negligência dos problemas que possuem mais vítimas

Os três problemas a seguir são altamente negligenciados:

  • Os riscos de sofrimento de magnitude astronômica em longo prazo (conhecidos como riscos-s) são também amplamente negligenciados.  Essa questão é, dentre todas, a que afetaria a maior quantidade de seres, tanto por conta da extensão do futuro, quanto porque a população de seres sencientes poderia ser maior em cada momento.

Em resumo, os problemas que afetam as maiores quantidades de indivíduos são, curiosamente, os mais negligenciados.

Como veremos a seguir, uma parte da explicação para essa negligência reside:

(1) Nos tipos de seres que são as vítimas nessas situações;

(2) No próprio fato de essas situações afetam as maiores quantidades de vítimas.

3. Vieses relacionados aos tipos de vítimas

Em relação aos tipos de vítimas, um fator crucial é que nos dois primeiros problemas nenhuma delas é humana, e no terceiro problema a esmagadora maioria não é. Assim, o especismo antropocêntrico tem uma influência fundamental na negligência dessas questões.

Entretanto, como vimos, mesmo ativistas da causa animal costumam negligenciar quase que totalmente esses problemas. Há pelo menos três tendências que contribuem fortemente para isso. Uma delas é o tamanhismo[2], que discrimina contra animais de tamanho pequeno. Outra é o inteligentismo, que discrimina contra animais considerados pouco inteligentes. Outra, por sua vez, é a lacuna de empatia[3], que discrimina contra seres que despertam menos empatia em nós.

No caso de invertebrados (como insetos e crustáceos) e peixes, esses vieses contribuem em conjunto para que sua situação seja negligenciada, pois são animais normalmente de pequeno porte, vistos como pouco inteligentes, e que geralmente não despertam em nós empatia como acontece no caso dos mamíferos, por exemplo. Esses animais são a esmagadora maioria não apenas dentre os explorados, mas também a esmagadora maioria na natureza.

Já no caso dos riscos-s, também a vasta maioria dos seres sencientes que seriam afetados não seriam humanos, e nem os animais nos quais a maioria dos ativistas foca. Em se tratando de animais, é provável que sejam também invertebrados. Entretanto, talvez a uma boa parte dos seres afetados não venham a ser animais, e sim, seres sencientes não orgânicos[4], caso a senciência não orgânica seja possível e esses seres cheguem a existir.

Assim, além de todas as tendências que já mencionamos, outro fator que pode influenciar (pelo menos no que diz respeito à negligência de problemas que afetariam possíveis seres sencientes digitais) é o carbonismo, que é a discriminação contra quem não é orgânico. Assim como o antropocentrismo é uma forma de especismo contra quem não é humano, o carbonismo é uma forma de substratismo contra quem não é orgânico.

A negligência em relação ao que acontece com esses seres (sejam animais não humanos, sejam possíveis seres futuros digitais) está fortemente conectada ao fato de não despertarem empatia em nós. Isso parece mostrar que, ao contrário da crença comum de que “a ética é uma questão de empatia”, o maior risco são exatamente os diversos contextos onde, por questão de limitação das nossas próprias estruturas cerebrais, nossa empatia não chega ou é arbirtrária.

Isso mostra um maior alcance que os princípios éticos têm, em comparação à empatia. Considere princípios como o da igual consideração e o da imparcialidade. Esses princípios precreverão dar igual peso a níveis de prejuízos e benefícios de magnitude similar, e dar mais peso a prejuízos e benefícios maiores, em comparação aos menores –— independentemente de se sentimos empatia ou não pelos afetados, e do grau de empatia que sentimos. Assim, praticar aplicar princípios não tendenciosos parece ser essencial, tanto para alcançar onde nossa empatia não chega, quanto para limitar a arbitrariedade de nossa empatia.

4. A quantidade de vítimas e o desaparecimento da compaixão

Vimos que, ironicamente, os problemas que afetam as maiores quantidades de vítimas são também os mais negligenciados. Curiosamente, o próprio fato de envolverem quantidades enormes de vítimas pode ser uma das razões pelas quais tais problemas são negligenciados. Vejamos a seguir alguns vieses que podem estar na base dessa negligência:

4.1. Desaparecimento da compaixão e efeito da vítima identificável

Em relação a situações que envolvem quantidades gigantescas de vítimas, as pessoas tendem a não sentir a empatia que sentem quando veem casos individuais de sofrimento. Esse viés é conhecido como desaparecimento da compaixão. É por essa razão que campanhas que focam em casos individuais costumam chamar muito mais atenção do que campanhas que focam em situações com um número gigantesco de vítimas.

O viés do desaparecimento da compaixão pode ser explicado a partir do efeito da vítima identificável é a tendência de sentirmos maior empatia e um desejo de ajudar em situações em que as tragédias sobre um pequeno número de vítimas identificáveis ​​do que para com um grande número de vítimas anônimas.

Isso tem também a ver com o fato de que, quando se menciona que trilhões de animais são mortos na exploração anualmente, que há quintilhões de animais na natureza sofrendo em um dado momento, ou que o futuro em longo prazo conterá “zilhões” de seres sencientes, a tendência é de as pessoas pensarem em números, e não em muitos indivíduos sofrendo[5].

4.2. Negligência do escopo

Outro viés que pode influenciar na mesma direção é a negligência do escopo, também conhecido como insensibilidade ao alcance. Esse viés consiste em, ao compararmos duas quantidades, não percebermos a diferença de tamanho entre elas. Isso acontece principalmente quando as quantidades comparadas são muito grandes. Esse viés pode fazer-nos pensar, por exemplo, que 80 bilhões (a quantidade de mamíferos e aves morta para consumo[6]) é apenas um pouco menor do que 3 trilhões (a quantidade de peixes morta para consumo[7]) ou do que 25 trilhões (a quantidade de camarões morta para consumo[8]) quando na verdade corresponde a apenas 2,6% de 3 trilhões e a 0,32% de 25 trilhões.

Esses viés pode fazer-nos pensar também que a quantidade de animais na natureza é apenas levemente maior do que a quantidade de animais explorados, e assim por diante (na verdade, se fôssemos comparar essas quantidades com o período de um ano, os animais fora da natureza corresponderiam a no máximo 14 segundos).

Para estatísticas sobre a quantidade de animais em cada situação, clique aqui.

4.3. Viés de proporção

O viés de proporção nos inclina a pensar, por exemplo, que é melhor usar certo recurso para ajudar 10 vítimas de um problema com 100 vítimas (pois são 10%) do que usar o mesmo recurso para ajudar 100 vítimas de um problema com 2000 vítimas (pois são 5%). Nesse caso, a pessoa ajudaria 10 vezes menos vítimas achando que estaria ajudando o dobro.

Como as três situações que mencionamos envolvem quantidades gigantescas de vítimas, o viés de proporção pode inclinar as pessoas a acharem que não vale a pena tratar desses problemas. Por exemplo, poderiam pensar que, mesmo consigamos beneficiar uma quantidade muito maior de indivíduos se focarmos nesses problemas, não deveríamos fazê-los porque estes ainda representariam uma fração pequena do total desses problemas.

5. Efeito e adesão

Outra razão central pela qual esses problemas continuam a serem negligenciados provavelmente é o próprio fato de já serem amplamente negligenciados. Isso ocorre por conta do Efeito adesão, que é a tendência de termos certos atitudes porque muitas outras pessoas também as têm. Como a maior parte dos ativistas e autores da ética animal ainda negligencia essas questões, temos a tendência de fazer o mesmo, sobretudo se admiramos esses ativistas e autores.

6. Como lidar com isso?

Como planejar nossas estratégias de ativismo, levando em conta que estamos sujeitos (nós e o público) a vieses? Qual a melhor maneira de lidar com isso?

Uma estratégia possível é tentar “usar” os vieses do público como uma ponte para tentar fazer com que deem importância às questões que os próprios vieses influenciam a não darem. Por exemplo, vimos que, quanto maior a quantidade de vítimas, menos as pessoas tendem a se importar com um problema, pois tendem a pensar em números, e não em indivíduos. Uma estratégia possível seria pegar relatos de casos individuais de sofrimento (pois tendem a comover o público) e enfatizar que esses casos individuais não são exceções, mas exemplos de um cenário muito maior onde esse caso individual é repetido inúmeras vezes.

Por exemplo, podemos começar contando uma história individual de sofrimento de um animal cujas pessoas normalmente sentem empatia e, em seguida explicar que, se não tivéssemos começado com um relato assim, provavelmente menos pessoas dariam ouvidos ao que temos a dizer. Isso pode ser uma porta para, em seguida, explicarmos o que são vieses e sobre as razões para tentar evitá-los.

Essa é, com certeza, uma abordagem possível. Há que se verificar, contudo, se, ao usarmos um viés, não estamos também reforçando-o.

Por exemplo, há o risco também de que mostrar o caso individual contribua para que as pessoas continuem a negligenciar a situação geral. Isso ocorre por conta do viés da negligência da taxa base: quando recebemos informações sobre casos específicos e também informações gerais estatísticas e objetivas (a taxa base), tendemos a atribuir maior valor às informações específicas e muitas vezes ignoramos completamente as informações gerais.

Entretanto, há também outra abordagem que parece essencial e não têm esse risco: informar ao público da existência desses e outros vieses (e tentar lembrar constantemente que nós também podemos estar o tempo todo sendo influenciados por vieses). Há estudos que mostram que, em relação a certos vieses, o próprio fato de alguém perceber sua existência já motiva alguém a tentar diminuir sua influência[9]. Infelizmente, há outros estudos que mostram que, em relação a outros vieses, isso não acontece[10]. Entretanto, independentemente disso, nos casos em que é possível tentar superar um viés, é necessário alguém se dar conta de que ele existe. Assim sendo, é sempre positivo informar que tais vieses estão nos influenciando sem que percebamos.

7. Quem tentará e quem não tentará corrigir a influência de vieses?

As pessoas que querem fazer um raciocínio honesto certamente vão querer corrigir e evitar vieses. Se conseguirão ou não nesse ou naquele caso, e em que medida, é uma questão que depende de vários fatores, incluindo do quanto as pessoas praticam para diminuir a influência do viés.

Entretanto, é preciso levar em conta o seguinte problema: muitas pessoas não têm o desejo de fazer um raciocínio honesto. Essas pessoas não vão querer se livrar dos vieses, especialmente daqueles vieses que as beneficiam e prejudicam os outros.

Esse fato poderia desanimar as pessoas que pretendem serem eficientes em diminuir o sofrimento no mundo. Poderiam pensar que, então, essa é uma causa perdida, pois nunca conseguiremos convencer uma boa parte das pessoas. Entretanto, há um erro com esse raciocínio, que é a ideia de que, para que consigamos diminuir o sofrimento no mundo, é necessário convencer uma maioria das pessoas. Isso não é assim, pois cada pessoa adicional trabalhando eficazmente para diminuir um pouco o sofrimento no mundo já faz com que o mundo contenha menos sofrimento do que teria de outra forma, mesmo que a vasta maioria das outras pessoas continuem a não se importar em diminuir o sofrimento no mundo.

Assim sendo, é um desperdício de tempo e energia tentar convencer pessoas que não tem a mínima intenção de fazer um raciocínio honesto. O que é importante fazer é ter como público alvo aquelas pessoas que querem fazer um raciocínio honesto (especialmente aquelas que já querem diminuir o sofrimento no mundo) e tentar mostrá-las que é importante ter não apenas o desejo de melhorar o mundo, mas também o conhecimento adequado e o poder para fazê-lo. 

REFERÊNCIAS

CAVIOLA, L.; FAULMÜLLER, N.; EVERETT, J. A. C.; SAVULESCU, J.; KAHANE, G. The evaluability bias in charitable giving: Saving administration costs or saving lives? Judgment and Decision Making, v. 9, p. 303-315, 2014.

CUNHA, L. C. Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente. Curitiba: Appris, 2021.

FISHCOUNT. Numbers of farmed fish slaughtered each year. Fishcount: Reducing suffering in fisheries, 2019.

KAHNEMAN, D. Thinking, fast and slow. New York: Farrar, Straus & Giroux, 2011.

MIRALLES, A.; RAYMOND M.; LECOINTRE, G. Empathy and compassion toward other species decrease with evolutionary divergence time. Scientific Reports v. 9, n. 19555, 2019.

MORTON, D. B. Sizeism. In: BEKOFF, M.; MEANEY, C. (orgs.) Encyclopedia of animal rights and animal welfare, p. 318, 1998.

OUR WORLD IN DATA. Number of animals slaughtered for meat, World, 1961 to 2018. Our world in data, [s.l.], 2018.

SANDERS, B. Global Animal Slaughter Statistics And Charts. Faunalytics, 10 out. 2018.

TOMASIK, B. Why digital sentience is relevant to animal activists. Animal Charity Evaluators. 03 fev. 2015.

WALDHORN, D. AUTRIC, E. Shrimp: The animals most commonly used and killed for food production. Rethink Priorities, 11 ago. 2023.

VINDING. Ten Biases Against Prioritizing Wild-Animal Suffering. Magnus Vinding


Notas:

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Sobre tamanhismo, ver Morton (1998).

[3] Sobre isso, ver Miralles, Raymand e Lecointre (2019).

[4] Sobre essa possibilidade, ver Tomasik (2015).

[5] Para uma discussão mais detalhada sobre como esse viés influencia o ativismo, ver Cunha (2021, p. 199-200).

[6] Ver Our World in Data (2018) e Sanders (2018).

[7] Ver Fishcount (2019).

[8] Ver Waldhorn e Autric (2023).

[9] Caviola et al. 2014).

[10] Kahneman (2011).


 A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.