O que decidiríamos sob condições de imparcialidade?

Luciano Carlos Cunha[1]

O teste da imparcialidade

Como saber se uma decisão é justa ou injusta? Uma visão amplamente aceita é a de que, para uma decisão ser justa, precisa ser imparcial. Por imparcialidade, o que se quer dizer não é permanecer neutro e não tomar nenhuma decisão. O que se quer dizer é tomar um decisão não tendenciosa.

Mas, como saber quando uma decisão foi tomada de maneira imparcial? Um método bastante utilizado consiste em imaginar o que decidiríamos se não soubéssemos que posição ocuparíamos entre os afetados por ela. Nesse caso, temos de nos imaginar sinceramente no lugar de cada um dos afetados pela decisão. Outro método similar consiste em imaginar o que decidiríamos se tivéssemos que viver as vidas de cada um dos afetados por nossa decisão.

Um método centrado na imparcialidade foi amplamente utilizado na obra Uma Teoria da Justiça, de John Rawls[2] e influenciou muitos outros trabalhos posteriores. O método consiste em imaginar agentes autointeressados que já existem enquanto seres racionais, mas que não nasceram ainda no mundo em que viverão. Essa é a chamada posição original. Nela, precisam decidir que princípios morais e políticos vigorarão nesse mundo futuro. Entretanto, precisam decidir por trás de um véu da ignorância, onde não sabem que características terão depois de nascerem. Não saberão sua raça, gênero, nacionalidade, se nascerão em famílias ricas ou pobres, se nascerão saudáveis ou com alguma doença, que talentos ou dificuldades terão etc. A ideia é a de que, sob condições de imparcialidade, não seriam toleradas discriminações com base nesses fatores.

O teste da imparcialidade é aplicável às nossas decisões que afetam os animais?

Rawls acreditava que o experimento do véu da ignorância não era aplicável às nossas decisões que afetam os animais não humanos[3]. Isso porque ele acreditava que, para alguém ser protegido por princípios de justiça, precisa possuir um senso de justiça (pois isso é necessário para decidir na posição original). Entretanto, esse raciocínio só faria sentido se, para alguém ser injustiçado, fosse necessário ter um senso de justiça. Mas, considere o seguinte exemplo: imagine que um bebê recebe menos comida do que os outros bebês em um berçário por conta da cor da sua pele. O fato de o bebê não ter um senso de justiça não faz com que o tratamento que recebeu deixe de ser injusto. A injustiça ocorreu porque o seu bem-estar recebeu um peso menor com base em um fator arbitrário (a cor da pele), e isso é injusto independentemente de a vítima ter ou não senso de justiça. É claro que, para alguém ser responsabilizado caso cometa uma injustiça, precisa ter um senso de justiça. Mas, não é necessário ter um senso de justiça para sofrer uma injustiça. Assim, a falta de um senso de justiça nos animais não faz com que deixe de ser injusta a desconsideração que tipicamente recebem.

Peter Carruthers é outro autor que defendeu que não temos razões para evitar prejudicar os animais[4]. Ele argumentou que, se os agentes estão raciocinando com base no véu da ignorância, então podem presumir que serão humanos, pois os animais não são capazes disso. Uma resposta a isso é observar, como fez Donald VanDeVeer[5], que os agentes na posição original também sabem que são capazes de entender e argumentar sobre princípios morais e políticos muito complexos, mas isso não quer dizer que na posição original possam presumir que manteriam esse altíssimo nível de racionalidade pois, se pudessem, ficariam tentados a favorecer tendenciosamente os indivíduos mais racionais. Entretanto, se por trás do véus não podem assumir que serão altamente racionais, então também não parece fazer sentido manter que podem saber a que espécie pertenceriam.

Mark Rowlands[6] observou que um dos objetivos do véu da ignorância é descartar as vantagens e desvantagens não merecidas, que são resultado da sorte, como as características naturais com as quais se nasce. Segundo o próprio Rawls, é por isso que o véu da ignorância exclui o conhecimento das próprias propriedades naturais que alguém teria. Entretanto, observa Rowlands, o pertencimento a uma espécie, como todas as outras propriedades naturais, é um resultado não merecido da loteria natural e, portanto, os benefícios e prejuízos que dela resultam também não são merecidos. Por isso, defende Rowlands, o conhecimento sobre a qual espécie pertenceremos deve ser excluído na posição original.

Considerando imparcialmente nossas decisões que afetam os animais não humanos

Se aplicarmos o teste da imparcialidade às nossas decisões que afetam os animais não humanos, temos de imaginar o que decidiríamos se não soubéssemos se nasceríamos como humanos ou como animais não humanos. A seguir estão alguns exemplos da aplicação desse teste em vários contextos:

Exploração animal

Ao que parece, sob tais condições, certamente consideraríamos a exploração animal altamente injusta. Nenhum de nós consideraria justo ser obrigado a morrer e a passar por todo o sofrimento que ela causa para que outros indivíduos pudessem desfrutar dos benefícios que dela resultam. Isso parece sugerir que quem considera a exploração animal justa só o faz porque sabe que não vai ser vítima dela. Mas, se é assim, então ela não é justa, pois não passa no teste da imparcialidade.

Especismo

Não é apenas a exploração animal que seria considerada injusta sob condições de imparcialidade, mas o especismo em geral. Por exemplo, suponhamos que tivéssemos que decidir se é ou não justo dar uma consideração maior aos humanos, mas sem saber se nasceríamos como humanos ou como animais não humanos. Sob tais condições, parece que veríamos como altamente arbitrário dar uma consideração maior aos humanos.

Isto é, parece que o especismo não passa no teste da imparcialidade, e que só é defendido porque os humanos sabem que não serão suas vítimas e colherão seus benefícios. Se a imparcialidade é um componente essencial da justiça, então o especismo é injusto. Isso parece mostrar que os animais não humanos são injustiçados não apenas quando são explorados, mas também, por exemplo, em situações onde não recebem a ajuda de que precisam e na pouca importância dada à causa animal. Veremos algo sobre isso a seguir.

Sofrimento dos animais selvagens

Os animais que vivem na natureza são prejudicados em uma base diária por conta de fatores como fome, sede, doenças, desastres naturais, condições meteorológicas hostis, lesões físicas, conflitos etc.[7] Além disso, taxas de mortalidade prematuras altíssimas decorrem da estratégia reprodutiva predominante, que consiste em ter milhares ou mesmo milhões de filhotes por ninhada (em populações estáveis sobrevivem em média apenas dois por ninhada)[8]. Uma vez que esse tipo de situação ocorre independentemente de ação humana (já era assim desde muito antes do aparecimento da espécie humana), a visão padrão é a de que devemos “deixar a natureza seguir o seu curso” e não ajudá-los. Entretanto, parece que, sob condições de imparcialidade, defenderíamos exatamente o oposto, isto é, que recursos deveriam ser destinados para prevenir/minimizar essa quantidade gigantesca de sofrimento e de mortes.

Importância da causa animal

Uma pergunta comumente feita aos defensores dos animais é: “por que se preocupar com os animais enquanto há humanos precisando de ajuda?”. Uma visão comum é a de que, mesmo que os animais estejam normalmente em uma situação muito pior, mesmo que a quantidade total de vítimas não humanas seja gigantescamente maior, e mesmo que haja uma quantidade muito maior de pessoas já investindo em ajudar humanos, deveríamos, ainda assim, priorizar os humanos.

Entretanto, jamais diríamos isso se não soubéssemos a espécie das vítimas em cada um dos casos. Além disso, lembre-se que, por trás do véu da ignorância, temos iguais chances de nascer como qualquer um dos seres sencientes existentes no mundo. De acordo com algumas estimativas, há em torno de 1 a 10 quintilhões de animais não humanos no mundo em um dado momento[9]. Há 8 bilhões de humanos. Se fizermos uma analogia com o período de um ano, a população humana representaria no máximo 0,25 segundos do ano. Isso significa que, uma vez levantado o véu, você provavelmente descobriria que é um animal não humano. Isso mostra que, sob condições de imparcialidade, reprovaríamos a negligência atual em relação à causa animal. Pelo contrário, defenderíamos  darmos a ela uma alta prioridade[10].

Importância do futuro

O método da imparcialidade também permite avaliar o que devemos às gerações futuras de seres sencientes. Por exemplo, podemos imaginar que, por trás do véu da ignorância, também não saberemos em que época viveremos. Se fizermos isso, perceberemos que a probabilidade de nascermos exatamente na época em que realmente existimos é mínima (haja vista que temos iguais chances de nascer em qualquer outra época do futuro). Ao que parece, sob tais condições, defenderíamos que o que devemos fazer é adotar estratégias que tenham uma alta probabilidade de fazer com que a história do mundo daqui para frente não seja repleta de sofrimento[11].

Normalmente, as pessoas (incluindo ativistas da causa animal), quando refletem sobre como devem decidir, levam em conta apenas o impacto de suas decisões sobre os seres que já existem agora, ou que existirão em um futuro próximo. Tópicos relacionados ao futuro distante tem sido amplamente negligenciados. Entretanto, assim como o surgimento da pecuária industrial permitiu causar sofrimento e morte a uma quantidade gigantesca de animais, é possível que surjam novas tecnologias com um potencial de causar um sofrimento muitas ordens de magnitude maior dali para frente. Por essa razão, de uma perspectiva imparcial, concluiremos dar uma grande importância a prevenir sofrimento no futuro.

Conclusão

Esses foram apenas alguns exemplos de aplicações do método da imparcialidade às nossas decisões que afetam os animais não humanos. Entretanto, é importante lembrar que é um método que permite pensarmos e avaliarmos questões com as quais nunca havíamos nos deparado antes. Trata-se, portanto, de uma ferramenta bastante abrangente.

REFERÊNCIAS

CARRUTHERS, P. Against the moral standing of animals. University of Maryland, 2011.

CUNHA, L. C. Especismo e priorização de causas. In: ROSARIO, M. C.; PEREIRA, F. S.; AZEVEDO, M. A. O. Anais do Simpósio Ética Animal em Ação. São José dos Campos: Entrementes Editorial, 2023, p. 33-45

CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022a.

ÉTICA ANIMAL. A importância do futuro. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 24 out. 2018.

ÉTICA ANIMAL. Contratualismo. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 24 dez. 2015g.

ÉTICA ANIMAL. Justiça plena: o que o véu da ignorância nos mostra sobre uma sociedade justa. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 31 dez. 2016f.

ÉTICA ANIMAL. O argumento da imparcialidade. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 24 dez. 2015h.    

HARSANYI, J. Cardinal welfare, individualistic ethics, and interpersonal compa- risons of utility. Journal of Political Economy, v. 63, p. 309-321, 1955.

HORTA, O. Debunking the Idyllic View of Natural Processes: Population Dynamics and Suffering in the Wild. Télos, v. 17, p. 73-88, 2010b.

NATIONAL MUSEUM OF NATURAL HISTORY & SMITHSONIAN INSTITUTION. Numbers of insects (species and individuals). Encyclopedia Smithsonian, 2008.

RAWLS, J. A Theory of Justice. Revised Edition. Harvard: Harvard University Press, 1999 [1971].

ROWLANDS, M. Animal Rights: A Philosophical Defense. London: MacMillan Press, 1998.

ROWLANDS, M. Animal rights: Moral, theory and practice. 2. ed. New York: Palgrave Macmillan, 2009 [1998].

RYDER, R. D. Animal revolution: Changing attitudes towards speciesism, Oxford: Basil Blackwell, 2000. p. 217.

TOMASIK, B. How Many Animals are There? Essays on Reducing Suffering, 07 ago. 2019a.

VANDEVEER, D. Of beasts, persons and the original position. The Monist, v. 62, p. 368-377, 1979.


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Ver Rawls (1999 [1971]). Entretanto, tal método já estava presente muitos anos antes no trabalho de John Harsanyi (1955). Mais detalhes sobre esse método em Ética Animal (2015g, 2015h, 2016f).

[3] Rawls (1999 [1971], p. 448).

[4] Carruthers (2011).

[5] VanDeVeer (1979). Uma posição similar é mantida por Ryder (2000, p. 217).

[6]  Rowlands (2009 [1998], p. 118-175).

[7] Uma discussão detalhada das implicações éticas dessa situação pode ser encontrada em Cunha (2022a).

[8] Para uma análise detalhada sobre isso, ver Horta (2010b).

[9] Ver National museum of natural history & smithsonian institution (2008) e Tomasik (2019a).

[10] Uma análise dessa questão pode ser encontrada em Cunha (2023).

[11] Sobre isso, ver Ética Animal (2018).