Luciano Carlos Cunha[1]
Sumário
- 1. Introdução
- 2. O que é carne cultivada
- 3. Potencial de aceitação/rejeição da carne cultivada
- 4. Discutindo as principais objeções à carne cultivada
- 5. A objeção de que não é natural
- 6. A objeção de que envolveria riscos para os consumidores
- 7. A objeção de que ela ainda não é sustentável
- 8. A objeção de que prejudica os humanos mais vulneráveis
- 9. A objeção de que os produtores de carne cultivada não se importam com os animais
- 10. A objeção de que a carne cultivada não resolve todos os problemas
- 11. A objeção de que o impacto da carne cultivada poderá ser menor do que o esperado
- 12. A objeção de que carne cultivada ainda é de origem animal
- 13. A objeção de que a carne cultivada ainda prejudica os animais
- 14. A objeção de que a carne cultivada reforça o especismo
- 15. Vantagens e desvantagens do foco em mudanças na tecnologia alimentar
- 16. Conclusão
1. Introdução
Neste texto veremos primeiramente o que é a tecnologia da carne cultivada para em seguida abordarmos três debates sobre essa tecnologia. O primeiro debate discute as objeções endereçadas por quem defende a carne convencional. O segundo, as objeções endereçadas por defensores dos animais. Por fim, o terceiro discute as vantagens e desvantagens da carne cultivada em comparação a outras estratégias para mudar a situação dos animais.
2. O que é carne cultivada
A carne cultivada é também conhecida como carne celular, carne sintética, carne in vitro, carne limpa, carne artificial ou carne de laboratório. Trata-se da carne obtida a partir da cultura de células animais. As células são geralmente obtidas por biópsia de animais, que são em seguida cultivadas, resultando em estruturas semelhantes aos tecidos musculares encontrados na carne animal[2]. Na etapa final o processo envolve moldagem, tempero e coloração, e o resultado é um produto final com a mesma aparência, sabor e textura da carne convencional[3].
A produção de carne cultivada normalmente utiliza a extração de células de um animal não humano (vivo ou morto) por meio de uma biópsia de tecido[4]. Em seguida as células de interesse são isoladas e colocadas em um biorreator onde são expandidas para criar um maior rendimento de células, sendo depois colocadas em uma estrutura para o seu amadurecimento em uma forma específica[5]. Para expandir as células no biorreator é utilizado um meio de cultura celular com uma solução rica em nutrientes. Em alguns casos essa solução contém soro fetal bovino (FBS), produzido a partir de sangue retirado de um feto de vaca morto. No entanto, a indústria da carne cultivada está mudando do FBS para os soros à base de plantas[6].
As principais células utilizadas são os miócitos do músculo esquelético, os adipócitos (células de gordura) e os fibroblastos (tecido conjuntivo)[7]. As amostras incluem células diferenciadas e células-tronco. Ambos os tipos são células primárias e exibem proliferação limitada uma vez retiradas, diferentemente do que ocorre em linhagens celulares imortalizadas (estas, devido a uma mutação casual ou induzida, evitam os mecanismos naturais da senescência celular e podem manter-se em divisão de forma praticamente indefinida[8]).
As células-tronco embrionárias, por serem pluripotentes. são uma boa opção para o processo de carne cultivada[9]. Mas, como é difícil obtê-las e diferenciá-las de forma eficiente nas linhas celulares desejadas, uma alternativa mais viável são as células-tronco adultas, pois são encontradas em uma variedade de tecidos, embora apresentem capacidade de diferenciação mais limitada[10].
A carne cultivada não se limita à produção de carne bovina. Há já vários trabalhos em relação à carne cultivada de aves[11], porcos[12], peixes[13], crustáceos decápodes como camarões e lagostas[14] e até mesmo para a produção de produtos lácteos[15]. Teoricamente, é possível produzir carne cultivada de qualquer animal, incluindo de humanos[16].
3. Potencial de aceitação/rejeição da carne cultivada
A carne cultivada já está disponível para consumo humano em Singapura, EUA e Israel, e foi aprovada no Reino Unido para alimentação de animais como cães e gatos[17].
A indústria de carne cultivada tem potencial para crescer enormemente. Por exemplo, uma pesquisa revelou que 70% da população do reino unido está disposta a comprar carne cultivada[18]. Outro exemplo é o fato de que empresas de grande porte de carne convencional, como Cargill e Tyson, têm investido pesadamente em carne cultivada[19].
Entretanto, a carne cultivada também enfrenta rejeição. Por exemplo, em Novembro de 2023 a Itália proibiu completamente a carne cultivada, impedindo-a de ser desenvolvida ou vendida no país[20].
4. Discutindo as principais objeções à carne cultivada
A grande vantagem da tecnologia da carne cultivada, em termos de evitar prejudicar os animais, é que ela proporciona um produto praticamente idêntico à carne convencional, só que sem necessitar matar animais nem submetê-los aos extremos de sofrimento que são tipicamente submetidos quando são explorados para fins alimentícios.
Entretanto, a carne cultivada também enfrenta objeções. Nos próximos itens discutiremos algumas das mais frequentes. Nos itens 5 a 8 discutiremos as objeções que não são focadas na preocupação com os animais. Nos itens 9 a 14 discutiremos objeções focadas na preocupação com os animais.
5. A objeção de que não é natural
Uma primeira objeção à carne cultivada acusa-a de não ser natural. Normalmente essa objeção é levantada em defesa da carne convencional. Essa foi, por exemplo, uma das razões centrais para a proibição da carne cultivada na Itália.
Uma primeira resposta possível a essa objeção é manter que a carne cultivada é, sim, natural, pois é feita de células assim como a carne convencional. Além disso, é obtida com o crescimento das células, não envolvendo modificação genética nas mesmas. Entretanto, a isso poderia ser respondido que o que se quer dizer quando se afirma que a carne cultivada não é natural é que ela passa por vários procedimentos até resultar no produto final, e todos esses procedimentos envolvem o uso da tecnologia. Contudo, a isso poderia ser respondido que a carne convencional também passa igualmente por uma série de procedimentos que também envolvem o uso da tecnologia.
Uma segunda maneira de responder é apontar que, mesmo se a carne cultivada não for natural e a carne convencional o for, isso não implica que devamos rejeitar a carne cultivada, nem que a carne convencional esteja justificada. Afinal de contas, assim como o fato de algo ser natural não implica que seja necessariamente bom[21], o fato de algo não ser natural não implica que seja necessariamente ruim. Por exemplo, suponhamos que fosse demonstrado que a carne convencional é natural e que a carne cultivada não é. Se fazer com que no mundo haja menos sofrimento e mortes for mais importante do que obter um produto natural, teremos que nesse caso rejeitar o produto natural.
Nesse ponto algumas pessoas poderiam alegar que obter um produto natural é mais importante do que evitar sofrimento e mortes. Entretanto, muito provavelmente essa posição é especista ou, no mínimo, egoísta. Por exemplo, se humanos estivessem sendo criados e mortos para a obtenção de sua carne, e nós mesmos tivéssemos que passar por esse destino, ninguém objetaria à carne cultivada alegando que ela não é natural. Isso mostra que a posição que defende que obter um produto natural é mais importante do que evitar sofrimento e mortes não passa no teste da imparcialidade[22] e, portanto, não pode ser justa.
6. A objeção de que envolveria riscos para os consumidores
Outra objeção afirma que o problema com a carne celular é que ela poderia ter efeitos negativos não previstos sobre quem a consumiria. Por exemplo, Wrenn (2024, p.8) afirma que a proteína animal é tóxica para os humanos e que a normalização da carne in vitro agravará graves crises de saúde pública relacionadas com a alimentação, prejudicando desproporcionalmente as comunidades humanas vulneráveis que carecem de recursos e de infraestruturas para lidar com elas[23]. A autora (2024, p.8) conclui que “veganos não deveriam promover produtos tóxicos, especialmente quando alternativas mais saudáveis e mais acessíveis estão disponíveis”, em referência à alimentação de origem vegetal.
Há pelo menos duas respostas possíveis a essa objeção, discutidas a seguir.
A primeira resposta envolve observar que a carne cultivada se propõe a ser uma alternativa à carne convencional, e não ao consumo de vegetais. Assim, para se avaliar a alegação de que sua normalização agravará graves crises de saúde pública o que tem de ser comparado não é um cenário onde um número x de pessoas consome carne cultivada com um cenário onde tais pessoas se alimentam somente de vegetais, e sim, com um cenário onde consumiriam carne convencional no lugar da carne cultivada.
A carne cultivada não é menos insegura para a saúde dos consumidores do que a carne convencional. Na verdade, é muito mais segura, pois como nas instalações de carne cultivada há um alto grau de controle sobre o ambiente, as chances de contaminação com patógenos como a salmonela e a E. coli são bastante limitadas[24]. Embora seja sempre possível que a carne cultivada seja contaminada de outras formas (assim como ocorre com qualquer alimento, incluindo vegetais), esse risco é muitas vezes menor do que ocorre no caso da carne convencional[25].
Além disso, como a produção de carne cultivada não armazena animais vivos e os padrões de higiene são elevados, ela poderia contribuir muito para reduzir a frequência de surtos de doenças zoonóticas[26] e também reduzir a resistência a antibióticos[27]. Se não for controlada, a resistência aos antibióticos corre o risco de fazer com que infecções simples sejam novamente fatais[28]. O principal impulsionador da resistência a antibióticos é a pecuária, devido à enorme quantidade de antibióticos administrados rotineiramente aos animais explorados[29]. Embora a carne cultivada também utilize antibióticos para diminuir o risco de contaminação, as pesquisas na área sugerem que no futuro os antibióticos não serão mais utilizados rotineiramente na produção de carne cultivada[30].
Já a segunda resposta aponta que, mesmo que a carne cultivada fosse mais insegura para os consumidores do que a carne convencional, o risco que os consumidores correriam nem de longe se comparam aos danos que os animais padecem quando são explorados.
Por exemplo, a carne convencional resulta em uma quantidade gigantesca de mortes de animais, e resulta que a maioria deles tenha vidas repletas de sofrimento. Além disso, esse dano é certeiro (e não meramente um risco), e os animais são forçados a tal destino. Do outro lado, mesmo que todas as pessoas que consumissem carne cultivada tivessem algum tipo de dano, o número de vítimas ainda seria muitíssimo menor do que o número de vítimas da exploração animal, e o dano por vítima ainda seria muitíssimo menor do que o dano sobre cada animal explorado (pelo menos, em comparação ao sofrimento a que são submetidos os animais explorados na pecuária industrial). Além disso, no caso dos consumidores, esse seria um risco (e, não, um dano certeiro, como ocorre para os animais), e um risco que escolheriam correr por conta própria, uma vez que não são obrigados a consumi-la (podem, por exemplo, se alimentar apenas à base de vegetais), diferentemente do que ocorre com os animais.
Em resumo, o fato de uma prática envolver um risco, ou mesmo um prejuízo real para os humanos, não implica que tenhamos razões conclusivas para rejeitá-la. Teria de ser pesado de maneira não tendenciosa os riscos e os danos para todos os afetados (incluindo os animais não humanos) em cada um dos cursos de ação disponíveis. Vimos acima que a carne cultivada provavelmente é mais segura do que a carne convencional. Mas, mesmo que ela fosse menos segura, uma vez que levamos em conta os danos sobre cada uma das partes afetadas (humanos e não humanos), comparando-se a carne convencional e a carne cultivada, a balança ainda penderia a favor da carne cultivada.
7. A objeção de que ela ainda não é sustentável
Outra objeção acusa a carne cultivada de não ser uma tecnologia sustentável, pois gastaria muito mais recursos para produzir o equivalente em alimentos em comparação à produção de alimentos vegetais. Discutiremos a seguir três possíveis respostas a essa objeção.
A primeira resposta aponta que, como a carne cultivada é uma tecnologia muito recente, é provável que, se forem investidos mais recursos nela, com o tempo ela se torne cada vez mais barata de ser produzida, talvez até o ponto de no futuro vir a gastar menos recursos para produzir o equivalente de alimento mesmo se comparada à produção de alimentos vegetais. É incerto se isso aconteceria de fato. Mas, é algo que só poderíamos saber se fosse investida a mesma quantidade de recursos em ambas as formas de produção de alimento durante o mesmo período de tempo.
Já a segunda resposta aponta que a carne cultivada visa ser uma alternativa à carne convencional (e não, uma alternativa à alimentação à base de vegetais) e que, ainda que faça sentido dizer que o cultivo de vegetais é mais sustentável do que a carne cultivada, não faz sentido dizer que a carne convencional é mais sustentável do que a carne cultivada..
Por exemplo, em comparação à carne convencional as instalações de carne cultivada requerem muito menos terra e água e são responsáveis por menos emissões de gases com efeito de estufa[31], requerendo de 64% a 90% menos terra e causando 20% a 94% por cento menos poluição do ar[32].
Por fim, a terceira resposta aponta que, para saber se devemos investir em uma tecnologia x ou y, é insuficiente saber qual das duas é mais sustentável: o que é necessário saber é qual delas é melhor levando em conta todos os seres sencientes afetados. Assim, mesmo que a carne cultivada fosse menos sustentável do que a carne convencional, o fato de a carne cultivada evitar a morte e sofrimento de trilhões de indivíduos mostraria que ela ainda seria preferível à carne convencional, mesmo que fosse menos sustentável.
8. A objeção de que prejudica os humanos mais vulneráveis
Outra objeção à carne cultivada é a alegação de que ela prejudica os humanos menos favorecidos por conta do potencial que a tecnologia têm para ser aproveitada para gerar lucro em sociedades capitalistas.
Por exemplo, Wrenn (2024, p.8) se opõe à carne cultivada afirmando que “o esforço para globalizar dietas ricas em proteína animal está enraizado no colonialismo, no racismo e no classismo” e defende (em referência à alimentação a base de vegetais) que “alternativas mais saudáveis e mais acessíveis estão disponíveis e já existiam antes do capitalismo ocidental começar a privatizar a terra e minar a produção alimentar tradicional em todo o mundo”[33]. A autora conclui que, por causa disso, “a carne in vitro pode ser palatável para os capitalistas de risco, mas é pouco provável que crie mudanças sociais significativas para os animais não humanos”[34].
Uma primeira resposta possível a essa objeção é apontar que os capitalistas vão almejar maximizar os seus lucros de qualquer maneira, e que então é preferível que façam isso utilizando carne cultivada do que carne convencional, pois isso diminuiria em muito a quantidade de sofrimento e de mortes causadas aos animais. Portanto, não é verdade que a carne cultivada não criaria mudanças significativas para os animais não humanos. Na verdade, as mudanças provavelmente seriam muitíssimo significativas.
Isso também mostra que é falso que a carne cultivada aumentaria a desigualdade resultante no capitalismo (pois as empresas almejariam maximizar os lucros de qualquer maneira, seja com carne cultivada, com carne convencional ou com a produção de vegetais). A diferença seria que a carne cultivada resultaria em um mundo com menos sofrimento e mortes totais em comparação a um mundo com carne convencional.
Uma segunda resposta é apontar que, mesmo que a carne convencional aumentasse a desigualdade resultante no capitalismo, disso não se segue que haveria razões conclusivas para a rejeitarmos. Teria de ser levado em conta o fato de ela ter o potencial de diminuir consideravelmente a quantidade total de sofrimento e de mortes de animais não humanos. Colocando-se na balança os danos e benefícios para todos os afetados, ela ainda teria um saldo muito mais positivo do que a carne convencional, mesmo se aumentasse a desigualdade entre humanos.
Uma objeção a essa resposta seria dizer que, então, o que devemos defender é a alimentação a base de vegetais, pois envolveria ainda menos sofrimento e mortes do que a carne cultivada. Novamente, a isso se poderia responder de duas maneiras. Vejamos:
A primeira é apontar que, se a carne cultivada vier a se desenvolver, talvez no futuro ela envolva menos sofrimento e mortes de animais até mesmo do que o cultivo de vegetais, pois a produção de vegetais também causa sofrimento e mortes a uma grande quantidade de animais de pequeno porte que vivem nas plantações (com o uso de pesticidas, com os métodos de colheita etc.).
A segunda resposta é apontar que é muito pouco provável que os exploradores de animais aceitariam mudar para a produção de vegetais, mas é bastante provável que mudariam para carne cultivada caso ela vier a ser mais lucrativa do que a carne convencional. Assim, se uma campanha contra a carne cultivada obtiver sucesso, o resultado não seria os exploradores dos animais mudando para a produção de vegetais, e sim, mantendo a produção de carne convencional. Portanto, não há razão para defensores dos animais serem contra a carne cultivada, mesmo que acreditem que há outras opções melhores do que ela.
9. A objeção de que os produtores de carne cultivada não se importam com os animais
Algumas pessoas opõem-se à carne cultivada alegando que ela é produzida por grandes empresas que são movidas pelo lucro e não se importam com os animais[35].
Uma primeira resposta possível a essa objeção é apontar que as pessoas que são proprietárias empresas de carne cultivada, que trabalham em tais empresas ou que são seus investidores em sua vasta maioria são veganas ou vegetarianas[36].
Uma segunda resposta é apontar que saber se as empresas de carne cultivada se preocupam em ajudar os animais é irrelevante: o que é relevante é o impacto sobre os animais[37]. Por exemplo, Bryant (2024, p. 10) defende que deveríamos preferir a empresa que não se preocupa com os animais, mas reduz os danos aos animais, do que a empresa que se preocupa com os animais, mas não tem a capacidade de fazer algo a respeito[38].
10. A objeção de que a carne cultivada não resolve todos os problemas
Por vezes a carne cultivada é rejeitada apontando-se que ela “não é uma panaceia para os horrores do uso e exploração animal”[39], pois “não beneficiará os animais criados para produção de laticínios, ovos, lã. couro, experimentação ou entretenimento”[40].
Uma primeira resposta possível a essa objeção é apontar que, se a tecnologia da carne cultivada vier a ser desenvolvida, ela poderá vir sim a substituir também esses outros produtos ou práticas que atualmente usam animais. Por exemplo, como vimos, já há empresas de produtos lácteos que usam a tecnologia da carne cultivada[41].
Uma segunda resposta é apontar que o que precisa ser avaliado não é se a carne cultivada resolve todos os problemas dos animais, mas se ela é eficiente em resolver o problema a que se propõe a resolver. Afinal de contas, outras iniciativas que beneficiam os animais, como métodos substitutivos ao uso de animais na ciência, a adoção de animais abandonados e as tentativas de proibir práticas específicas de exploração não são rejeitadas porque não resolvem os problemas de todos os animais. Se o fato de uma forma de ativismo não abarcar todos os problemas que afetam os animais fizesse com que devêssemos rejeitá-la, então teria de ser rejeitado também o veganismo ou qualquer outra forma de ativismo focada nos animais explorados, pois não abordam a questão dos animais que sofrem na natureza em decorrência dos processos naturais[42] nem os problemas relacionados ao futuro[43] por exemplo.
11. A objeção de que o impacto da carne cultivada poderá ser menor do que o esperado
Outra objeção à carne cultivada aponta que atualmente não há certeza sobre se ela poderá um dia crescer a tal ponto de substituir largamente a carne convencional e realmente fazer com que muito menos animais sejam utilizados no sistema alimentar[44].
É verdade que não há essa certeza. Contudo, isso é insuficiente para concluirmos que não vale a pena investir em tal tecnologia. O que teria de ser avaliado é se o benefício em potencial compensa o investimento, e se há ou não alguma outra forma mais promissora de investimento em termos de beneficiar os animais na qual o mesmo recurso poderia ser investido. Apontar que não há certeza sobre se algum dia ela poderá vir a substituir largamente a carne convencional não responde a essas questões, até porque se isso realmente virá a acontecer ou não é algo que depende do quanto for investido na carne cultivada, em comparação ao investimento na carne convencional.
Além disso, já vem crescendo o investimento que as grandes empresas de carne convencional fazem na carne cultivada. Assim, se os defensores dos animais fizerem ativismo contra a carne cultivada, o máximo que podem conseguir com isso é que essas empresas invistam em carne convencional o recurso que poderiam investir em carne cultivada, e o resultado será, então, que a carne cultivada não virá a substituir a carne convencional.
12. A objeção de que carne cultivada ainda é de origem animal
Alguns defensores dos animais objetam à carne cultivada na base de que, por ser um produto com células animais, não é um produto vegano.
Uma resposta a essa objeção é apontar que o conceito de veganismo diz respeito a evitar de prejudicar os animais e, sendo assim, o que importa é saber o impacto que a carne cultivada terá sobre os animais. Por exemplo, suponhamos que a carne celular não prejudicasse os animais sob aspecto algum. Nesse caso, dada a definição de veganismo como a prática de evitar prejudicar os animais, a carne celular seria vegana (mesmo que fosse com células animais).
Entretanto, poderia ser objetado que o adjetivo vegano não pode ser aplicado a um alimento de origem animal, mesmo que não prejudicasse os animais de modo algum. Contudo, nesse caso poderia ser respondido que então saber se o alimento é ou não vegano não importa para saber se devemos apoiá-lo ou rejeitá-lo: importa é saber o seu impacto sobre os animais.
Assim sendo, parece crucial saber se a carne cultivada prejudica de algum modo os animais e, em caso positivo, se esse prejuízo é suficiente para que devamos rejeitá-la, ou se o seu benefício potencial para os animais poderia compensar esse prejuízo. É o que discutiremos a seguir.
13. A objeção de que a carne cultivada ainda prejudica os animais
Uma das principais objeções de defensores dos animais à carne cultivada é o fato de que, pelo menos no momento atual, ela requer retirar células de animais e, portanto, alguns animais teriam que ser mantidos como fonte de células[45].
Além disso, também é apontado que na maior parte da literatura existente sobre o tema, seja em publicações acadêmicas ou em sites de empresas de carne cultivada, não é descrito o que acontece com os animais durante o procedimento de extração de células nem o que acontece com o animal após a biópsia[46]. Alguns autores alegam que, presumivelmente, eles têm o mesmo destino que a maioria dos outros animais de criação, isto é, são mortos[47]. Entretanto, há empresas que afirmam que os animais que usam não são mortos[48].
Um defensor da carne cultivada poderia responder apontando que, mesmo que isso seja um dano para esses animais, nem de longe se compara ao dano do qual padeceriam com a carne convencional, onde além de serem mortos provavelmente teriam uma vida repleta de sofrimento intenso. Continuaria sendo verdade que a carne cultivada poderia reduzir radicalmente o número de animais que sofrem e morrem na pecuária[49].
A isso, o opositor da carne cultivada poderia responder que deveríamos rejeitar tanto a carne convencional quanto a carne cultivada porque ambas usam os animais enquanto recursos. Segundo essa resposta, o que deveríamos fazer é defender apenas o veganismo. Por exemplo, a política da Vegan Society sobre carne cultivada atesta o seguinte:
“Tal como está atualmente, o processo de carne cultivada não é suficiente para o apoiarmos. […] Já existe uma infinidade de alternativas de carne vegana que não derivam de carnes cultivadas ou cultivadas em laboratório[50].
Em resumo, o que os proponentes desse argumento querem dizer é que mostrar que a carne cultivada é melhor do que a carne convencional é insuficiente para justificá-la, pois há uma opção ainda melhor: o veganismo.
A isso o defensor da carne cultivada poderia responder de duas maneiras. A primeira seria apontar que no momento atual é necessário usar animais para obtenção das células, mas talvez no futuro algum procedimento permita obter células indefinidamente, como o uso de linhagens celulares imortalizadas ou a clonagem, por exemplo.
A segunda resposta aponta que não há uma possibilidade realista de se convencer os exploradores de animais a mudarem para a produção de alimentos de origem vegetal (pois a demanda por carne continuaria), mas há uma possibilidade realista de, se a tecnologia da carne cultivada vier a lhes ser mais lucrativa, mudarem para a carne cultivada.
Assim sendo, o defensor da carne cultivada poderia apontar que, se alguém causará um mal, obviamente que é preferível que cause um mal menor. Como nesse caso a carne convencional causaria um mal esmagadoramente maior, é importante defender a carne cultivada. Assim, o defensor da carne cultivada poderia acusar os seus opositores de não saberem lidar com trade-offs (perdas e ganhos). O resultado de alguém se recusar a defender a carne cultivada apontando que ela ainda causaria algum dano aos animais provavelmente seria os animais continuarem sendo explorados das piores formas possíveis, uma vez que os exploradores dos animais tem uma probabilidade baixíssima de aderir ao veganismo mas uma boa probabilidade de aderirem à produção de carne cultivada se esta lhes vier a ser mais lucrativa.
Nesse ponto alguns opositores da carne cultivada argumentam que não têm responsabilidade alguma sobre o que irá acontecer, pois isso dependerá das decisões dos exploradores, não das suas. Entretanto, se podemos influenciar a decisão de alguém parece que somos pelo menos parcialmente responsáveis pelo que ocorrerá, quer decidamos influenciar, quer decidamos não influenciar. Por exemplo, imaginemos que, por ele mesmo, um explorador de animais não aderirá nem à carne cultivada nem ao veganismo. Imaginemos, contudo, que a probabilidade de o convencermos a parar de usar animais é muito baixa, mas de o convencermos a aderir à carne cultivada é alta. Se decidirmos não influenciá-lo a aderir à carne cultivada, nesse caso é muito alta a probabilidade de ele continuar a explorar os animais tanto quanto já explora. Esse resultado parece ser, pelo menos em parte, nossa responsabilidade, pois temos aí um papel crucial no desenrolar dos resultados.
Entretanto, o opositor da carne cultivada poderia apontar que, na vida real, não estamos em posição de influenciar cada explorador de animais como o exemplo sugere. Contudo, o defensor da carne cultivada poderia responder que é o próprio fato de a tecnologia estar ou não disponível, e o quão econômica for, aquilo que será o fator decisivo de influência, pois se a carne cultivada se tornar mais barata do que a convencional, os próprios exploradores vão preferir usá-la, e que podemos ter um papel nesse processo, defendendo a importância de se desenvolver a carne cultivada.
A isso o opositor da carne cultivada poderia responder que, se os próprios exploradores já vão aderi-la caso ela venha a se tornar mais barata de ser produzida do que a carne convencional, então não há necessidade de os defensores dos animais a apoiarem. Contudo, o defensor da carne cultivada poderia responder que, se o fato de os defensores dos animais apoiarem a carne cultivada ajudar a acelerar o seu desenvolvimento, barateamento e implantação, então parece que devem fazê-lo, se o seu objetivo for realmente beneficiar os animais.
Por outro lado, se os opositores da carne cultivada obtém sucesso, o máximo que conseguiriam com isso é fazer com que os exploradores dos animais não usem (ou usem menos) recursos na carne cultivada. Entretanto, os exploradores provavelmente não usariam esses recursos para criar produtos veganos, e sim, para explorar animais para fazer carne convencional.
O opositor da carne cultivada poderia negar que suas ações tenham alguma influência nas decisões dos exploradores. A isso poderia ser respondido, primeiro, que se o movimento contra a carne cultivada crescer poderia haver uma pressão social contra tal tecnologia (a exemplo do que ocorreu na Itália) e o resultado, novamente, seria prejudicial para os animais. Em segundo lugar, poderia ser respondido que, se o opositor da carne cultivada acreditasse que suas ações não têm influência alguma, então não faria ativismo contra carne cultivada.
Ademais, o defensor da carne cultivada poderia argumentar que, se ela no futuro for suficientemente desenvolvida, talvez venha a causar menos danos aos animais até mesmo do que a produção de alimentos de origem vegetal. Por exemplo, nas plantações uma quantidade muito grande de animais de pequeno porte morre como resultado dos métodos de cultivo e de colheita. Esse problema não existe (ou, existiria em muito menor medida) no caso da carne cultivada, pois esta seria desenvolvida em ambientes controlados. Assim, mesmo que se viesse a usar animais para obter as células, isso ainda teria um efeito negativo bem menor do que aquele decorrente da produção de vegetais. Além disso, como já dito, pode ser que no futuro venha a ser desnecessário usar animais para retirar as células para produzir carne cultivada.
Nesse ponto opositores da carne cultivada por vezes argumentam que, mesmo se o cultivo de vegetais prejudicar mais os animais do que a carne cultivada, o cultivo de vegetais ainda é preferível, porque nesse caso o dano é colateral, e no caso da carne cultivada o dano é instrumental (isto é, é um meio para o fim).
Novamente, aqui há duas respostas possíveis. A primeira é apontar que não está claro que os danos para os animais decorrente do cultivo de vegetais são colaterais. Por exemplo, também poderia ser dito que as mortes de animais decorrente do uso de pesticidas é um dano instrumental, pois o uso de pesticidas é um meio para o fim do cultivo de vegetais. Em resumo, a distinção entre dano colateral e instrumental é, no mínimo, nebulosa.
Entretanto, suponhamos que fosse provado que tais danos são colaterais. A segunda resposta, mais importante, aponta que saber se o dano é colateral ou instrumental é uma preocupação centrada nos agentes, e não uma preocupação com os afetados pela decisão. Em outras palavras, se o que nos importa é realmente evitar ao máximo prejudicar os animais, então nos basearemos em averiguar qual curso de ação resulta em mais benefícios e em menos danos para estes, e não, em saber se o dano é colateral ou instrumental (pois, para os animais afetados, isso não faz a menor diferença). Assim, o defensor da carne cultivada poderia apontar que os ativistas que repudiam danos instrumentais mas não se importam em evitar danos colaterais (nesse caso, maiores do que os danos instrumentais) estão preocupados em se sentirem puros, e não, realmente preocupados com os animais.
14. A objeção de que a carne cultivada reforça o especismo
Uma objeção por vezes levantada contra a carne cultivada é a acusação de que ela reforça o especismo e pode, por isso, ser contraproducente em termos de mudar a situação dos animais.
Por exemplo, Wrenn (2024, p. 8) defende que “é importante reconhecer a violência simbólica que a carne cultivada sustenta”[51]. Ela compara a carne cultivada a incentivar supremacistas brancos a divertirem-se com simulações de escravidão geradas por inteligência artificial ou incentivar adolescentes a terem prazer em videogames de tiroteios em escolas como uma alternativa à violência real[52]. Ela argumenta que, assim como esses atos simbólicos de violência podem ter consequências negativas para humanos, a carne cultivada pode alimentar ainda mais a normalidade do especismo e do consumo de carne e ter consequências negativas para os animais[53].
Segundo a autora a carne cultivada se tornará a próxima “carne feliz”, onde os produtores empregarão táticas semelhantes às que empregam atualmente para bloquear o conhecimento público de como os animais são prejudicados durante a produção[54].
Ela defende que, por outro lado, os produtos vegetais que imitam de forma convincente o sabor e a textura da carne animal não ameaçam reforçar o especismo na mesma medida que a carne cultivada poderia reforçar, pois nesse caso os consumidores estão cientes de que esses análogos são de origem vegetal[55].
Críticas desse tipo apontam corretamente que a carne cultivada não está isenta de ter risco de causar danos (aliás, nenhuma prática está). Entretanto, isso por si só é insuficiente para se concluir que devemos rejeitá-la. O que teria de ser comparado são os prováveis danos/benefícios resultantes em um cenário onde os recursos seriam investidos em carne cultivada com outros cenários onde esses recursos seriam investidos em outras coisas (além de tentar imaginar onde provavelmente tais recursos seriam investidos se não fossem investidos em carne cultivada).
É possível que, se os mesmos recursos fossem investidos em divulgação antiespecista, os resultados para os animais fossem melhores do que se fossem investidos em carne cultivada (ainda que isso seja também bastante incerto). Entretanto, é preciso levar em conta que, ainda que investidores veganos teriam uma probabilidade de investir em divulgação antiespecista se não investissem em carne cultivada, a probabilidade de os exploradores de animais que investem em carne cultivada fazerem isso é baixíssima, talvez nula. Assim sendo, devemos incentivar que pelo menos os exploradores de animais invistam em carne cultivada pois, de outro modo, investiriam tais recursos em explorar os animais. Isso não quer dizer que a carne cultivada está isenta de causar danos aos animais. Quer dizer apenas que o cenário que provavelmente ocorreria em sua ausência teria uma quantidade gigantescamente maior de danos, além de não ter os benefícios que ela causaria.
Os danos e benefícios que provavelmente resultariam precisam ser pesados levando-se em conta o estado atual do mundo. Por exemplo, no momento atual onde a escravidão humana e assassinatos em escolas não são o padrão do dia-a-dia, pode ser que incentivar a criação de simulações virtuais de escravidão e assassinatos em escolas tenha potencial de causar mais danos do que benefícios. Entretanto, em um cenário onde a escravidão humana e assassinatos em escolas fossem a norma do dia-a-dia, se a criação de simulações virtuais dessas práticas fosse diminuir consideravelmente suas ocorrências reais, então fazê-lo teria saldo positivo, mesmo que tivesse também potencial de causar alguns danos.
Além disso, também é possível questionar a tese de que a carne cultivada reforçaria o especismo. Por exemplo, Bryant (2024, p. 9) argumenta que é provável que a carne cultivada na verdade contribua para diminuir o especismo, porque as atitudes especistas causam e também são causadas pelo consumo de animais, uma vez que as defesas do especismo são muitas vezes motivadas pelo desejo de continuar comendo carne[56]. Assim, se as pessoas param de comer os animais, poderia ser mais fácil que aceitem rejeitar o especismo.
15. Vantagens e desvantagens do foco em mudanças na tecnologia alimentar
Há uma grande polarização entre ativistas da causa animal em relação à carne cultivada. Há tanto ativistas que a repudiam fortemente quanto ativistas que veem nela a solução definitiva para os problemas que afetam os animais não humanos. A polarização faz com que as pessoas tendam a ver as coisas em termos de “zero ou um”, o que é algo completamente distante da realidade. Buscando evitar isso, a seguir tentaremos listar tanto algumas vantagens quanto algumas desvantagens de se focar em carne cultivada em comparação a outras estratégias de ativismo para beneficiar os animais. Isso proporcionará uma imagem mais realista da situação.
O debate sobre o foco em carne cultivada é um exemplo de um debate mais geral sobre estratégias com foco em mudanças tecnológicas versus estratégias com foco em mudança social[57]. Assim, várias das coisas que forem ditas aqui sobre o caso específico da carne cultivada vale para outras tecnologias também.
Importante: nesse e em outros debates similares o que está em discussão não é necessariamente “devemos focar nessa ou naquela estratégia?” (apesar de essa ser também uma possibilidade). Outra possibilidade é: o quanto devemos focar nessa ou naquela estratégia? Outras questões adicionais são: (1) é melhor que todas as pessoas tenham o mesmo grau de foco em determinadas estratégias ou é melhor que pessoas diferentes foquem em estratégias diferentes? (2) É melhor uma mesma pessoa ter o mesmo grau de foco em certas estratégias o tempo todo, ou é melhor variar o grau desse foco, e de que isso depende? Não discutiremos essas questões aqui por motivos de espaço, mas é importante lembrar que elas são questões importantes se nossa meta é sermos eficientes no ativismo.
Independentemente das respostas para essas questões, é sempre possível tentar listar as vantagens e desvantagens de cada estratégia, seus alcances e suas limitações. É o que tentaremos fazer a seguir com a questão da carne cultivada.
Na lista a seguir, embora alguns pontos sejam claramente alcances e outros claramente limitações, há outros que são alcances/limitações no momento atual mas podem deixar de sê-lo no futuro, ou que são alcances/limitações dependendo de se o foco na carne cultivada vem ou não acompanhado de outras estratégias de ativismo. Por essa razão, cada ponto da lista a seguir não está classificado como alcance ou como limitação.
Pontos para levarmos em conta na hora de avaliarmos o grau de foco na carne cultivada:
(1) Quanto maior o consumo de carne cultivada em comparação à carne convencional, mais animais são poupados de sofrimento e de serem mortos.
(2) A carne cultivada tem potencial de produzir mudanças comportamentais em agentes que são indiferentes ao destino dos animais. Isto é, a carne cultivada pode fazer com que mesmo pessoas que não se importam com os animais parem de consumi-los
(3) Se desenvolvida, a tecnologia da carne cultivada pode vir a substituir em larga escala também ovos, leite e produtos derivados, beneficiando um número ainda maior de animais.
(4) Talvez a tecnologia da carne cultivada ou tecnologias similares possam no futuro virem a ser usadas também como método substitutivo para experimentação animal e como substituição para xenotransplantes. Por exemplo, tecnologias próximas são a engenharia de tecidos e a medicina regenerativa, ambas desenvolvidas a partir de células humanas[58].
(5) Se a carne cultivada vier a ser mais lucrativa para os exploradores, eles próprios vão querer abandonar o uso de animais.
(6) Para a carne cultivada de fato substituir o uso de animais em larga escala não basta que dê vantagens aos exploradores: precisa dar vantagens também ao público. Isso porque não necessariamente o público será receptivo à carne cultivada. Por exemplo, algumas pessoas podem levantar a bandeira “isso não é natural!” ou espalharem boatos dizendo que ela é perigosa e assim por diante. Entretanto, se o público ver vantagens na carne cultivada, a probabilidade de aceitação é muito maior. Um exemplo de vantagem para o público seria ela se tornar mais barata e/ou mais saborosa do que a carne convencional.
Podemos traçar um paralelo com a substituição gradual da tração animal com o surgimento do automóvel. Um dos fatores-chave para tal substituição foi o fato de o automóvel oferecer muitas vantagens ao público em comparação às carroças (velocidade, conforto, proteção etc.).
(7) Como a aderência à carne cultivada, por si só, não muda a mentalidade das pessoas em relação ao especismo, não previne retrocessos em relação ao que é feito aos animais. Por exemplo, se as pessoas continuarem especistas, e no futuro surgir alguma forma mais lucrativa de explorar os animais, provavelmente voltariam a explorar os animais. Assim, o ativismo focado em tecnologias substitutivas ao uso de animais não é substituto para o ativismo anti-especista. Aliás, precisa de tal ativismo para que não haja retrocessos.
Entretanto, por outro lado a adesão à carne cultivada pode vir a facilitar a mudança social em termos de rejeição do especismo. Muitas pessoas defendem o especismo não porque acreditam que ele esteja correto, mas simplesmente porque gostam do sabor dos produtos de origem animal. Assim, se no futuro as pessoas não tiverem que abandonar esse sabor devido a já estarem consumindo carne cultivada, pode ser mais fácil aceitarem uma visão de mundo anti-especista. Portanto, a aderência à carne cultivada pode ter também o potencial de facilitar a rejeição do especismo.
(8) Atualmente o foco do ativismo centrado em carne cultivada tem sido quase que exclusivamente diminuir a quantidade de animais explorados. Entretanto, a tecnologia parece ter potencial também para ser aplicada para diminuir o sofrimento e as mortes que os animais padecem em decorrência de processos naturais[59]. Por incrível que possa parecer à primeira vista, a quantidade de animais que sofre e morre em decorrência de tais processos (fome, sede, doenças, desastres naturais, conflitos entre animais etc.) é gigantescamente maior do que a quantidade de animais explorados. A tecnologia da carne cultivada poderia ser usada, por exemplo, para diminuir a incidência de casos de predação[60]. Assim como já há carne cultivada disponível para cães e gatos em certos locais, ela poderia vir a estar disponível no futuro para animais selvagens, e isso poderia ser aplicado tanto para o caso daqueles predadores que estão sob controle humano (por exemplo, em santuários), quanto para os que estão na natureza.
16. Conclusão
Acima vimos de que consiste a tecnologia da carne cultivada e abordamos três debates em torno dela.
O primeiro debate abordou as objeções à carne cultivada que não são centradas na preocupação com os animais. Vimos que todas essas objeções padecem de especismo e não passariam no teste da imparcialidade.
Já o segundo debate abordou as objeções à carne cultivada que são endereçadas por defensores dos animais. Vimos que, apesar de no momento atual a carne cultivada ainda envolver o uso de animais como fonte de células, talvez isso seja desnecessário no futuro. Vimos também que, mesmo que a carne cultivada ainda cause algum dano aos animais, se os exploradores de animais não investissem em carne cultivada muito provavelmente investiriam tal recurso em práticas que resultam em muito mais danos aos animais (e a um número muito maior de animais). Além disso, vimos que também é possível que no futuro a produção de carne cultivada venha a causar menos danos aos animais até mesmo do que a produção de vegetais (por conta das mortes de animais nos procedimentos de plantio e colheita). Portanto, defensores dos animais devem ser favoráveis à carne cultivada.
Por fim, o terceiro debate listou alguns pontos importantes para levarmos em conta na hora de avaliarmos o quanto ativistas da causa animal deveriam focar em carne cultivada versus focar em outros tipos de estratégia. Vimos que o ativismo focado em mudanças tecnológicas (como é o caso da carne cultivada) não substitui o ativismo educacional anti-especista, mas que, se for combinado com este, oferece boas oportunidades de mudanças positivas sem retrocessos para os animais.
Além disso, vimos também que, apesar de no momento atual o uso da tecnologia da carne cultivada tenha como foco diminuir a exploração animal, ela tem potencial para no futuro ser usada também para diminuir os danos que os animais padecem em decorrência de processos naturais, sobretudo em relação a casos de predação. É, portanto, uma tecnologia bastante promissora em termos de reduzir o sofrimento e as mortes dos animais, seja os explorados por humanos, seja os que estão fora do controle humano.
REFERÊNCIAS
ALECCIA, O. UNGAR, L. US approves chicken made from cultivated cells, the nation’s first ‘lab-grown’ meat. Appnews, 21 jul. 2023.
ANOMALY, J., BROWNING, H., FLEISCHMAN, D., VEIT, W. Flesh without blood: The public health benefits of lab-grown meat. Journal of Bioethical Inquiry, v. 21, n. 1, p. 167-175, 2024.
ANTHIS, J. R. Summary of Evidence for Foundational Questions in Effective Animal Advocacy. Sentience Institute, 13 ago. 2020.
BAUMANN, T. Avoiding the worst final: how to prevent a moral cathastrophe. Center for Reducing Suffering, 2022.
BOGLIOTTI, Y. S.; WU, J., VILARINO, M.; OKAMURA, D.; SOTO, D. A.; ZHONG, C.; SAKURAI, M.; SAMPAIO, R. V.; SUZUKI, K.; BELMONTE, J. C. I.; ROSS, P. J. Efficient derivation of stable primed pluripotent embryonic stem cells from bovine blastocysts. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, v. 115, n. 9, p. 2090-2095, 2018.
BLUU SEAFOODS High Tech Seafood. BLUU Seafoods, 22 jul. 2024.
BOMKAMP C.; MCNAMARA E. Cultivating a future where antibiotics still work. The Good Food Institute, 21 out. 2022.
BONNARDEL, Y. Contra o apartheid das espécies. Les cahiers antispécistes, v. 14, 1996.
BRYANT, C. B. Opinion Piece. In: Cultured meat. The Vegan Society Research Briefing v. 2, p. 9-11, 2024.
CHRIKI S., ELLIES-OURY M.P.; HOCQUETTE J.F. Is “cultured meat” a viable alternative to slaughtering animals and a good comprise between animal welfare and human expectations? Anim Front, v. 12, n. 1, p. 35-42, 2022.
CHRIKI S.; HOCQUETTE J.F. The myth of cultured meat: a review. Frontiers in nutrition, v. 7, n. 7, 2020.
COELHO, G. H. F. Implicações éticas do transplante de órgãos entre animais não-humanos e humanos: uma avaliação crítica do xenotransplante. Dissertação: Mestrado em Filosofia. Universidade Federal de Uberlândia, dez. 2023.
COWEN, T. Policing nature. Environmental Ethics, v. 25, p. 169-182, 2003.
CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022a.
FINK, C. The Predation Argument. Between the Species, v. 13. n. 5, p. 1-15, 2005.
GOOD MEAT GOOD Meat Receives Approval to Commercialize Serum-Free Media: Technical and regulatory milestone will lead to production efficiencies, Good Meat, 18 Jan. 2023.
GURSEL I.V., STURME M., HUGENHOLTZ J.; BRUINS M. Review and analysis of studies on sustainability of cultured meat. Wageningen Food & Biobased Research n. 2248, 2022.
HORTA, O. Disvalue in Nature and Intervention. Pensata Animal, [s.l.], n. 34, 2010c.
HUNTLEY, A. MCLAREN, L.F. Cultured meat. The Vegan Society Research Briefing v. 2, 2024.
JAIRATH, G.; MAL, G.; GOPINATH, D.; SINGH, B. A holistic approach to access the viability of cultured meat: a review. Trends in Food Science & Technology, v. 110, p. 700-710. 2021.
JONES H. Lab-grown meat set to be sold in UK pet food. BBC, 17 jul. 2024.
KIRBY P. Italy bans lab-grown meat in nod to farmers. BBC, 17 nov. 2023
LETTI, L. A. J.; KARP, S. G.; MOLENTO, C. F. M.; COLONIA, B. S. O.; BOSCHERO, R. A.; SOCCOL, V. T.; HERRMANN, L. W.; PENHA, R. O.; WOICIECHOWSKI, A. L.; SOCCOL, C. R. Cultivated meat: recent technological developments, current market and future challenges. Biori, v. 5., n. 1, p. e2021001, 2021.
MCMAHAN, J. The Moral Problem of Predation. In: CHIGNELL, A.; CUNEO, T.; HALTEMAN, M. C. (org.). Philosophy Comes to Dinner: Arguments About the Ethics of Eating. London: Routledge, 2015. p. 268-294.
MILBURN J. The Expert Series (2): How should vegans respond to in vitro meat? The Vegan Society, 1 fev. 2019.
MILL, J. S. On Nature. In: __________. Nature, The Utility of Religion and Theism. London: Rationalist Press Association, 1904, p. 07-33.
MORRISON, O. Behind the ‘world’s first 100% cultivated pork steak’. Food Navigator, 05 fev. 2023.
NG, S.; KURISAWA, M. Integrating biomaterials and food biopolymers for cultured meat production. Acta Biomaterialia, v. 124, p. 108-129, 2021.
PEARCE, D. Projeto para um mundo sem crueldade: reprogramar os predadores. The Abolitionist Project, [s.l.], 2009.
PIERSON, D. The first lab-grown meat for sale could come from this Singapore startup that’s re-creating shrimp. Los Angeles Times, 08 out. 2020.
NATURE COMMUNICATIONS. A conversation about cultivated meat. Nature Communications v. 14, n. 8331, 2023.
REMILK. Our Science. Remilk, 20 nov. 2024.
ROWLANDS, M. Animal rights: Moral, theory and practice. 2. ed. New York: Palgrave Macmillan, 2009 [1998].
SINKE, P., SWARTZ, E., SANCTORUM, H.; GIESEN, C. V. D; ODEGARD, I. Ex-ante life cycle assessment of commercial-scale cultivated meat production in 2030. The International Journal of Life Cycle Assessmentv, v. 28, p. 234–254, 2023.
STAROSTINETSKAYA A. This Cultured Meat Startup Just Raised a Record $347 Million with Help from Tyson. VegNews, 22, dez. 2021.
SWARTZ, E. New studies show cultivated meat can have massive environmental benefits and be costcompetitive by 2030. The Good Food Institute, 9 mar. 2021.
SWARTZ, E.; BOMKAMP, C. The Science of Cultivated Meat. The Good Food Institute, 27 jan. 2021.
SZEJDA, K.; BRYANT, C.J.; URBANOVICH, T. US and UK Consumer Adoption of Cultivated Meat: A Segmentation Study. Foods, v. 10, n. 5, 1050, 2021.
TSUI, S. Lab-grown seafood explained. Earth.org. 11 out. 2023.
TSURUWAKA, Y., SHIMADA, E. Reprocessing seafood waste: challenge to develop aquatic clean meat from fish cells. Npj Science of Food v. 6, n. 7, 2022.
WARNER, R. D. Review: Analysis of the process and drivers for cellular meat production. Animal, v. 13, n. 12, p. 3041-3058, 2019.
WIRED BRAND LAB. Inside the Science of Cell-Cultured Shrimp: How Singapore became a global center of cell-based meat, Wired. 22 fev. 2022.
WRENN C.L. If You Care about Animals, InVitro Meat is Not the Answer. Corey Lee Wrenn, Ph.D. Sociologist and Social Justice Activist, 30 mai. 2016.
WRENN, C. L. Opinion Piece. In: Cultured meat. The Vegan Society Research Briefing v. 2, p. 8, 2024.
ZHANG, G.; ZHAO, X.; LI, X.; DU, G.; ZHOU, J.; CHEN, J. Challenges and possibilities for bio-manufacturing cultured meat. Trends in Food Science & Technology, v. 97, p. 443-450, 2020.
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Letti et al. (2021).
[3] Warner (2019); Zhang et al.(2020); Letti et al. (2021); Jairath et al. (2021); Huntley; McLaren (2024, p. 3).
[4] Huntley; McLaren (2024, p. 3).
[5] Huntley; McLaren (2024, p. 3).
[6] Swartz; Bomkamp (2021); GOOD Meat (2023); Huntley; McLaren (2024, p. 3).
[7] Letti et al. (2021); Warner (2019).
[8] Letti et al. (2021); Ng; Kurisawa, 2021.
[9] Bogliotti et al. (2018); Letti et al. (2021).
[10] Bogliotti et al. (2018); Letti et al. (2021).
[11] Aleccia, Ungar (2023).
[12] Morrison (2023).
[13] Tsuruwaka, Shimada (2022), Tsui (2023).
[14] Wired Brand Lab (2022); BLUU Seafoods (2023); Nature Communications (2023).
[15] Remilk (2024).
[16] Huntley; McLaren (2024, p. 3).
[17] Jones (2024); Huntley; MecLaren (2024, p. 2);
[18] Szejda et al. (2021); Huntley; McLaren (2024, p. 5).
[19] Starostinetskaya (2021); Huntley; McLaren (2024, p. 6).
[20] Kirby (2023); Huntley; McLaren (2024, p. 5);
[21] Sobre isso, ver Mill (1904).
[22] Sobre o teste da imparcialidade, ver Rowlands (2009 [1998], p. 118-175).
[23] Wrenn (2024, p. 8).
[24] Chriki; Hocquette (2020); Huntley; McLaren (2024, p. 7).
[25] Chriki; Hocquette (2020); Huntley; McLaren (2024, p. 7).
[26] Huntley; McLaren (2024, p. 7).
[27] Bomkamp; McNamara (2022); Anomaly et al. (2023); Huntley; McLaren (2024, p. 6).
[28] Huntley; McLaren (2024, p. 7).
[29] Huntley; McLaren (2024, p. 7).
[30] Bomkamp; McNamara (2022); Huntley; McLaren (2024, p. 7).
[31] Swartz (2021); Chriki et al. (2022); Gursel et al. (2022); Sinke et al. (2023); Huntley; McLaren (2024, p. 6, 7).
[32] Swartz (2021); Chriki et al. (2022); Gursel et al. (2022); Huntley; McLaren (2024, p. 6, 7).
[33] Wrenn (2024, p. 8).
[34] Wrenn (2024, p. 8).
[35] Ver por exemplo Wrenn (2024, p. 8).
[36] Bryant (2024, p. 10) cita como exemplo investidores como Jeremy Coller e Jim Mellon, a Stray Dog Capital, Sentient Ventures e New Crop Capital e os CEO de muitas das maiores empresas de carne cultivada, como Uma Valeti da UPSIDE Foods e Josh Tetrick da Eat Just.
[37] Bryant (2024, p. 10).
[38] Bryant (2024, p. 10).
[39] Huntley; McLaren (2024, p. 6).
[40] Wrenn (2016; 2024, p.8); Huntley; McLaren (2024, p. 6).
[41] Remilk (2024).
[42] Para um tratamento detalhado dessa questão, ver Cunha (2022a).
[43] Para um tratamento detalhado dessa questão, ver Baumann (2022).
[44] Huntley; McLaren (2024, p. 6).
[45] Chriki; Hocquette (2020); Huntley; McLaren (2024, p. 6).
[46] Huntley; McLaren (2024, p. 6).
[47] Huntley; McLaren (2024, p. 6).
[48] Ver, por exemplo, Remilk (2024).
[49] Milburn (2019); Chriki; Hocquette (2020); Huntley; McLaren (2024, p. 6).
[50] Huntley; McLaren (2024, p. 6).
[51] Wrenn (2024, p. 8).
[52] Wrenn (2024, p. 8).
[53] Wrenn (2024, p. 8).
[54] Wrenn (2024, p. 8).
[55] Wrenn (2024, p. 8).
[56] Bryant (2024, p. 9).
[57] Ver Anthis (2020).
[58] Segundo Coelho (2024, p. 36-8) a engenharia de tecidos consiste no desenvolvimento e manipulação de moléculas, células, tecidos ou órgãos crescidos em laboratório, in vitro, enquanto a medicina regenerativa se refere às ferramentas empregadas para auxiliar o corpo a regenerar um tecido ou órgão in vivo no paciente. No entanto, ambas são consideradas complementares e muitas vezes são abreviadas em uma única sigla “TERM” (Tissue Engineering e Regenerative Medicine).
[59] Para um exame detalhado dessa questão, ver Cunha (2022a).
[60] Para análises da questão da predação enquanto problema ético, ver Bonnardel (1996); Cowen (2003); Cunha (2022, p. 156-172); Fink (2005); Horta (2010c); McMahan (2015); Pearce (2009) e Sapontzis (1984).
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.
