E, se humanos fossem mais prejudicados com a morte?

Luciano Carlos Cunha[1]

1. Visões comuns sobre matar e sobre salvar vidas

As duas posições a seguir são comumente defendidas:

Neste texto essas posições serão referidas como “duas posições comuns”.

Frequentemente essas posições são defendidas alegando-se que os animais não humanos são menos prejudicados com a morte do que são os humanos. Em outros textos defendi que humanos não são necessariamente mais prejudicados com a morte do que animais não humanos. Neste texto, entretanto, defenderei que, mesmo que esse fosse o caso, isso ainda seria insuficiente para fundamentar aquelas duas posições.

2. Se um ser for mais prejudicado com a morte do que outro, quais as implicações?

Suponhamos que A seja mais prejudicado se morrer do que B. O que isso implica? Implica apenas que temos razões diretas[2] mais fortes contra matar e para salvar a vida de A.  Isso não implica que não existam razões diretas contra matar e para salvar a vida de B. Nem mesmo implica que essas razões são fracas. Podem ser, inclusive, muitíssimo fortes, apenas levemente menos fortes do que as razões contra matar e para salvar a vida de A.

Assim, o que teria que ser mostrado para justificar as duas posições comuns não é que os animais não humanos são menos prejudicado com a morte do que humanos, e sim, que os animais não humanos quase não são prejudicados com a morte. Argumentei em outros textos que todo ser senciente é passível de ser prejudicado com a morte em alto grau. Isso parece suficiente para haver fortes razões contra matá-los e para salvar suas vidas em situações onde seriam prejudicados com a morte.

3. Se alguém é mais prejudicado se morrer, isso já justifica matar outros para salvá-lo?

Poder-se-ia pensar que, se A é mais prejudicado com a morte do que B, isso justificaria matar B se fazê-lo salvar a vida de A. Entretanto, se olharmos para exemplos envolvendo humanos, fica evidente que isso, por si só, é insuficiente para justificar tal ato. Vejamos:

Os graus com que os diversos humanos são prejudicados com a morte também são altamente variáveis. Alguns já desfrutaram bastante da vida; outros viveram muito pouco. Alguns viveram até o momento uma vida significativa; outros viveram predominantemente sofrimento. Alguns têm uma perspectiva de vida significativa pela frente; já outros tudo o que os aguarda se continuarem vivos é sofrimento extremo. Alguns ainda teriam muito para viver; outros teriam pouco tempo pela frente. Em resumo, o dano da morte também varia muito no caso dos diversos humanos. Entretanto, isso não parece ser suficiente para justificar matar um humano só porque fazê-lo salvaria um humano que seria mais prejudicado com a morte. Se assim fosse seria correto matar idosos ou adultos mais velhos toda vez que isso tornasse possível salvar as vidas de humanos mais jovens.

Poder-se-ia pensar que o que foi dito acima só faz sentido em éticas baseadas em direitos invioláveis, segundo as quais é sempre errado matar um indivíduo para salvar outro(s). Entretanto, quem defende que é correto violar direitos se isso for necessário para alcançar as melhores consequências pode concordar que o mero fato de A ser mais prejudicado com a morte do que B é insuficiente para justificar matar B para salvar A. Vejamos:

Se o que alguém busca são as melhores consequências, e a morte é um dano, teria que ser mostrado que não há nenhuma outra maneira menos danosa de salvar a vida de A do que matar B. Teria também que ser mostrado que o ato de autorizar matar uns para salvar outros no contexto em questão produz as melhores consequências em longo prazo, levando em conta como esse ato influencia as decisões futuras das outras pessoas. É claro, quem busca as melhores consequências também levaria em conta, ao decidir, o fato de que um indivíduo é mais prejudicado com a morte do que outro. Entretanto, não é a única coisa que precisa levar em conta, se sua meta é alcançar as melhores consequências. Portanto, também teria de reconhecer que constatar que um indivíduo é mais prejudicado com a morte do que outro é insuficiente para justificar matar um para salvar outro.

Assim, se o fato de A ser menos prejudicado com a morte do que B é insuficiente para justificar matar A até mesmo se isso salvar a vida de B, muito menos seria suficiente para justificar matar A para fins totalmente desnecessários, como consumi-lo.

Isso tudo não quer dizer necessariamente que seja sempre errado matar, nem que seja sempre errado deixar de salvar uma vida. Significa apenas que o fato de A ser mais prejudicado com a morte do que B é insuficiente para fundamentar que é correto matar B ou que não temos obrigação de salvar a vida de B.

4. Razões para salvar vidas, dano da morte, e número de vítimas

Imaginemos para efeito de argumentação que ficasse provado que os humanos são mais prejudicados com a morte do que os animais não humanos. Isso implicaria que devemos necessariamente priorizar problemas cujas vítimas são humanas? Não, pois um fator importante não está a ser considerado: o número de indivíduos que poderíamos salvar. Vejamos:

Concedamos ainda mais. Imaginemos que cada humano fosse prejudicado com a morte 100 vezes mais do que cada animal não humano. Mesmo isso ainda seria insuficiente para concluir que sempre temos razões mais fortes para salvar humanos. Por exemplo, se a escolha fosse entre, ou salvar um humano, ou salvar 101 animais não humanos, nesse caso a balança já penderia para salvar os animais não humanos.

Seja lá o quão mais alguém dissesse que os humanos são prejudicados com a morte, sempre haveria uma quantia de animais não humanos a partir da qual teríamos que priorizar salvar animais não humanos. Assim sendo, mesmo que os animais não humanos fossem menos prejudicados com a morte do que os humanos, isso também seria insuficiente para fundamentar a conclusão de que devemos investir mais recursos em salvar vidas humanas.

Poderia ser objetado que devemos salvar aqueles que são mais prejudicados com a morte, não importando o quão mais indivíduos poderíamos salvar de outra maneira. Isso evitaria a implicação acima, mas a um alto preço, pois isso seria admitir que defender que os humanos são mais prejudicados com a morte é insuficiente para justificar priorizar humanos (pois necessitaria do postulado adicional de que o número de vítimas salvas não importa). Isso não significa que esse postulado adicional está necessariamente errado. Entretanto, é um postulado altamente controverso, que precisaria ser justificado. Além disso, parece haver fortes razões para rejeitá-lo. Aqui você pode ver essas razões.

5. Conclusões

Frequentemente é assumido que, se os humanos forem mais prejudicados com a morte do que os animais não humanos, então é correto matar animais não humanos, e que não deveríamos usar recursos para salvar as vidas de animais não humanos.

Entretanto, vimos que, mesmo se humanos fossem mais prejudicados com a morte do que animais não humanos, isso não implicaria que não há razões contra matar e para salvar as vidas de animais não humanos, e nem que essas razões são fracas.

Além disso, como vimos, mesmo que os animais não humanos fossem menos prejudicados com a morte do que os humanos, dependendo da quantidade de animais não humanos que conseguiríamos salvar com certa quantia de recurso, ainda poderia haver razões para priorizar salvá-los.

Importante: no presente texto assumimos apenas para efeito de argumentação que os humanos seriam mais prejudicados com a morte do que os animais não humanos. O objetivo aqui foi apenas mostrar que, mesmo se esse fosse o caso, não haveria as implicações que normalmente são supostas. Entretanto, no mundo real não parece haver base para fundamentar a alegação de que humanos são necessariamente mais prejudicados com a morte do que animais não humanos[3]. Se é assim, então as razões contra matar e para salvar as vidas de animais não humanos em situações onde eles seriam prejudicados com a morte são ainda mais fortes do que as descritas no presente texto.


Notas

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Poderiam haver razões indiretas para salvar B, mesmo que ele fosse menos prejudicado com a morte do que A se, por exemplo, salvar B garantisse que salvaríamos as vidas de outros indivíduos, e que isso não aconteceria (ou aconteceria em menor grau) se optássemos por salvar A.

[3] Para uma argumentação mais detalhada em defesa disso, ver CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022, p. 61-92)