Luciano Carlos Cunha[1]
Sumário
- 1. Introdução
- 2. O debate em torno da relação causal entre regulamentação e abolição
- 2.1. Regulamentar a exploração animal poderia gradualmente ajudar a aboli-la?
- 2.2. Se regulamentar ajudar a abolir, devemos investir em regulamentações?
- 3. O debate em torno da relação causal entre regulamentar e diminuir sofrimento
- 3.1. Regulamentar a exploração animal diminui o sofrimento dos animais explorados?
- 3.2. Se regulamentar diminuir o sofrimento, devemos investir em regulamentações?
- 4. Vários pontos adicionais de discussão
- 4.1. Reformas aumentam os custos da exploração?
- 4.2. Reformas facilitam mudanças posteriores?
- 4.3. Reformas facilitam ou dificultam a diminuição do consumo?
- 4.4. Seriam as reformas os melhores passos graduais para a mudança?
- 4.5. A possibilidade de vieses de ambos os lados
- 5. Conclusão
1. Introdução
Existem pessoas que defendem que, desde que a exploração animal seja regulamentada para que os animais não sofram (ou para que sofram menos, dependendo da variação), não há nada de errado com ela, mesmo que os animais sejam mortos.
Existem pelo menos duas boas razões para se rejeitar essa posição. A primeira é que os animais também são prejudicados com a morte, independentemente do sofrimento. A segunda é que ela é especista, pois enxerga os animais como meros recursos para os humanos, violando o princípio da igual consideração e o princípio da imparcialidade.
Entretanto, entre as pessoas que reconhecem que a exploração animal deveria ser abolida, há pelo menos outros dois debates que giram em torno de regulamentar da exploração animal.
- O primeiro debate diz respeito a saber se regulamentá-la poderia ajudar a gradualmente aboli-la e, em caso positivo, se os defensores dos animais deveriam defender tais regulamentações.
- Já o segundo debate diz respeito a saber se regulamentá-la poderia de fato reduzir o sofrimento dos animais explorados (independentemente de ajudar ou não a abolir a exploração) e, em caso positivo, se os defensores deveriam defender tais regulamentações.
A seguir veremos separadamente os principais argumentos em discussão nos dois debates[2].
2. O debate em torno da relação causal entre regulamentação e abolição
Como vimos, no primeiro debate existem duas questões:
(1) Regulamentar a exploração animal poderia ajudar a gradualmente aboli-la?
(2) Se sim, os defensores dos animais deveriam defender tais regulamentações?
Abordaremos na sequência cada uma dessas questões separadamente.
2.1. Regulamentar a exploração animal poderia gradualmente ajudar a aboli-la?
Há dois argumentos principais de quem defende que regulamentar a exploração animal poderia ajudar a gradualmente aboli-la.
O primeiro é o de que, por meio de regulamentações cada vez mais exigentes, poderia ser tornado cada vez mais difícil explorar os animais, e aos poucos isso conduziria à abolição, pois os exploradores veriam que a exploração não tem um bom custo/benefício.
O segundo é o que de, como as regulamentações são centradas na preocupação com o sofrimento dos animais, isso poderia fazer com que o público cada vez mais reconhecesse que os animais importam por si, pelo menos em alguma medida (ou até mesmo em grande medida), o que poderia fazer com que o público viesse aos poucos a apoiar até mesmo a abolição da exploração.
Já o principal argumento de quem defende que regulamentar não ajuda a gradualmente abolir a exploração é o de que regulamentar poderia fazer o consumo aumentar, pois poderia fazer com que os consumidores se sentissem mais confortáveis com tal consumo por pensarem que os animais têm o seu bem-estar garantido. Proponentes dessa posição geralmente argumentam que focar em reformas pode reforçar a noção de que os animais são recursos para usarmos.
2.2. Se regulamentar ajudar a abolir, devemos investir em regulamentações?
Poder-se-ia pensar que, se ficar demonstrado que as regulamentações conduzem gradualmente à abolição, então os defensores dos animais devem investir em regulamentações. Entretanto, há que se investigar se essa é a maneira mais eficiente de se alcançar a abolição. Se for, então certamente que defensores dos animais deveriam investir seus recursos nela. Por outro lado, se houver outra ou outras formas mais eficientes, é aí que deveriam investir os seus recursos.
Por “mais eficiente” pode-se querer dizer várias coisas. Por exemplo, pode-se querer dizer que, com um mesmo recurso, certa estratégia alcança antes a meta almejada. Ou, pode-se querer dizer que certa estratégia alcança a meta almejada (independentemente de quando) gastando menos recursos. Ou ainda, pode-ser querer dizer que certa estratégia faz com que, uma vez alcançada a meta, seja mais difícil revertê-la. Há várias possibilidades.
Assim sendo, alguém poderia defender que, mesmo se as regulamentações conduzirem gradualmente à abolição, usar os mesmos recursos para alcançar mudanças de atitudes (por exemplo, divulgar a visão anti especista), e/ou focar em mudanças tecnológicas (por exemplo, investir em carne cultivada) e/ou em mudanças comportamentais (por exemplo, divulgar o veganismo ou a redução do consumo) poderia ser mais eficiente para alcançar a abolição.
Dessa maneira, o que é crucial para avaliar esse ponto é comparar a estratégia focada em regulamentações com outras possíveis estratégias (e essas outras estratégias entre si) e ver qual (ou quais) delas tem o melhor potencial de eficiência (levando em conta, como vimos, que o conceito de eficiência tem vários aspectos).
Por exemplo, poderia ser defendido que investir os mesmos recursos em divulgar uma mentalidade anti especista contribuiria fortemente para as pessoas pararem de consumir os animais, e que isso diminuiria mais rapidamente a quantidade de animais explorados do que investir tais recursos em mais regulamentações (mesmo se as regulamentações conduzissem gradualmente a uma diminuição da quantidade de animais explorados).
O mesmo poderia ser dito comparando-se as regulamentações com a tecnologia da carne cultivada. Se a tecnologia da carne cultivada vier e se tornar mais barata de ser produzida do que a carne convencional, os próprios exploradores terão interesse em migrar para carne cultivada. Além disso, diferentemente das regulamentações, o investimento em carne cultivada não possui o risco de aumentar o consumo de carne convencional e, por conseguinte, não têm o risco de aumentar a quantidade de animais explorados (na verdade diminuiria consideravelmente esse número).
Também poderia ser defendido que, mesmo que regulamentações ajudassem gradualmente a abolir a exploração, se a mentalidade das pessoas em geral não mudar (e elas não rejeitarem o especismo), provavelmente continuarão a ver os animais como recursos e, então, a abolição seria facilmente revertível depois de alcançada. Assim sendo, poderia ser dito que a estratégia de combater o especismo seria mais eficiente em termos de segurança para que a abolição, uma vez alcançada, não fosse revertida.
Entretanto, no momento não há estudos testando minuciosamente o grau de eficiência de cada estratégia nesses ou em outros aspectos. A questão da eficiência no ativismo mal começou a ser discutida. Portanto, há necessidade de mais estudos comparando a eficiência de cada estratégia. Isso não quer dizer, entretanto, que devemos confiar cegamente em tais estudos, quando vierem a existir. Seja lá o que um estudo defenda em sua conclusão, é sempre importante avaliar sua metodologia pois, por exemplo, os pesquisadores podem estar enviesados dependendo da estratégia de ativismo que eles mesmos preferirem.
Outro ponto importante é que, diante da incerteza sobre o grau de eficiência de cada estratégia, é importante compensar a negligência. Isto é, quanto menos uma estratégia foi tentada até então, ou quanto menos pessoas já trabalham nela, maior o potencial de fazermos uma maior diferença positiva se investirmos nela. O investimento (em termos de recursos e do número de pessoas) na estratégia de regulamentar a exploração tem sido aparentemente muito maior ao longo dos anos[3] do que o investimento em outras estratégias, como a educação anti especista, a difusão do veganismo e da redução do consumo e o investimento no desenvolvimento de carne cultivada. Assim, parece que, diante da incerteza, há razões para se investir mais nessas outras estratégias do que em regulamentações.
3. O debate em torno da relação causal entre regulamentar e diminuir sofrimento
No segundo debate também existem duas questões equivalentes:
(1) Regulamentar a exploração animal diminui o sofrimento dos animais explorados?
(2) Se sim, os defensores dos animais deveriam defender tais regulamentações?
Abordaremos na sequência cada uma dessas questões separadamente.
3.1. Regulamentar a exploração animal diminui o sofrimento dos animais explorados?
O principal argumento a favor da ideia de que regulamentar ajuda a diminuir o sofrimento dos animais explorados é o de que regulamentações possuem força de lei e, então, os exploradores são obrigados legalmente a segui-las, o que, teoricamente, torna provável que os animais sejam beneficiados.
Do outro lado, um argumento contrário é o de que é possível que na prática a aplicação e fiscalização dessas regulamentações seja algo muito difícil de ser feito. Isso ocorre porque, perante à lei, os animais estão na categoria de itens de propriedade de seus exploradores[4]. Portanto, toda vez que houver um conflito entre cumprir certas regulamentações que favoreçam os animais e o interesse do proprietário em maximizar o lucro com seus itens de propriedade, é quase certo que a lei favorecerá o proprietário, pois itens de propriedade não podem ter direitos (e os exploradores têm o direito de explorar seus itens de propriedade)[5].
Além disso, mesmo que a lei obrigue o explorador a seguir uma regulamentação, é extremamente difícil fiscalizar se a regulamentação está sendo cumprida, ainda mais levando-se em conta a gigantesca demanda por produtos de origem animal. Por exemplo, a lei já exige o atordoamento de um animal antes de ser morto mas, como as filas nos abatedouros precisam se mover em uma velocidade altíssima devido à alta demanda, é bastante comum que os animais não sejam completamente atordoados e, então, sejam esquartejados, fatiados, tenham a pele arrancada ou sejam fervidos enquanto ainda estão plenamente conscientes[6].
Para ilustrar a dificuldade de aplicação e fiscalização, vejamos um exemplo com o caso dos crustáceos decápodes. Um relatório oficial do governo do Reino Unido publicado em novembro de 2021 recomendou que todos os moluscos cefalópodes e crustáceos decápodes sejam reconhecidos como seres sencientes e, portanto, sejam protegidos pelas leis de bem-estar animal do Reino Unido.
Dois anos depois que o relatório oficial foi publicado, a Crustacean Compassion fez uma pesquisa visando descobrir como a recomendação do relatório oficial estava sendo aplicada, tomando como base a lei The Welfare at Time of Killing (England) Regulations 2015 (conhecida como WATOK), que diz que um animal não pode ser morto de uma forma que cause dor, agonia ou sofrimento evitáveis e que qualquer pessoa que mate um animal deve ter o conhecimento e as habilidades necessárias para fazê-lo.
A pesquisa foi enviada a departamentos de todos os 32 distritos de Londres. O resultado foi que 25 distritos não responderam, e entre os que responderam, muitos não reconheciam que tinham responsabilidade de aplicação desta lei. Além disso, os distritos de Kensington e Chelsea alegaram que os decápodes não estão cobertos pelas leis de bem-estar animal, o que não é verdade. O único distrito atualizado em relação ao relatório, Hammersmith e Fulham, tem apenas oito funcionários na Equipe de Segurança Alimentar, e reconheceu que sua Carta de Bem-Estar Animal “precisa de revisão subsequente”, pois ainda não incluía os decápodes. Na época da pesquisa já havia passado dois anos da publicação do relatório do governo.
Além disso, apesar de o WATOK prescrever que “qualquer pessoa que mate um animal deve ter o conhecimento e as habilidades necessárias para fazê-lo”, a compra de crustáceos decápodes vivos para matar em casa é ainda permitida em Londres. O relatório da Crustacean Compassion observa que é altamente improvável que o consumidor que compra um caranguejo ou uma lagosta vivos em um dos mercados de Londres consiga matá-los em casa de uma forma que não cause sofrimento, especialmente quando pode demorar entre 4 a 8 minutos para uma lagosta morrer ao ser fervida viva, que é a prática comum de matá-las.
Em resposta a esse problema, por vezes é dito que, mesmo assim, a regulamentação ajudaria a prevenir o sofrimento dos animais porque, mesmo que haja essa dificuldade de fiscalização, o fato de haver uma lei exigindo certos procedimentos permite que a empresa seja processada por seu descumprimento. Isso realmente pode ser um ponto favorável a quem almeja defender os animais. Entretanto, essa resposta parece reconhecer que não há necessariamente uma relação causal entre, de um lado, uma regulamentação ser aprovada e, de outro, o sofrimento dos animais ser, de fato, diminuído.
Além disso, é importante levar em conta que, no contexto das leis que regulamentam a exploração animal, termos como “tratamento cruel”, “sofrimento desnecessário” e “tratamento desumano” normalmente são definidos de maneira muito diferente de como são usados na linguagem comum[7].
Por exemplo, geralmente nessas regulamentações, para um tratamento ser considerado cruel, há que haver comprovação de que o agente sentiu prazer em causar sofrimento (pois crueldade é um estado mental)[8]. Entretanto, os exploradores dos animais podem simplesmente alegar que não estavam sentindo prazer com as práticas que causam sofrimento, e sim, que seu único objetivo era maximizar o lucro com sua propriedade ou fazer uma pesquisa científica por exemplo. Assim, ao contrário do que o público normalmente pensa, nessas leis “cruel” não é algo definido a partir das consequências para a vítima, e sim, a partir do estado mental do agente. Como o estado mental de alguém é algo muito difícil de ser provado, leis que proíbem crueldade dificilmente acarretam, na prática, em alguma punição[9].
Poder-se-ia pensar que o mesmo não ocorre com o termo “tratamento desumano” e que este é, então, definido a partir do dano para a vítima. Entretanto, nas leis que regulamentam a exploração animal, “tratamento desumano” é normalmente definido como qualquer tratamento que não é prática comum dos humanos naquela área[10]. Então, qualquer procedimento que cause dor extrema não será considerado tratamento desumano desde que seja prática comum dos exploradores naquela área. Assim, normalmente essas leis proíbem apenas casos muito incomuns de danos sobre os animais[11].
O mesmo ocorre com a expressão “sofrimento desnecessário”, que é normalmente definido nessas regulamentações como aquele sofrimento que não é necessário para o proprietário alcançar o fim a que almeja[12]. Assim, se o proprietário mostrar que o sofrimento que sua prática causou foi necessário para alcançar o fim que almeja (por exemplo, maximizar os lucros com sua produção), a lei considerará como sofrimento necessário, mesmo que cause sofrimento extremo e mesmo que a atividade em si não seja de modo algum necessária[13].
3.2. Se regulamentar diminuir o sofrimento, devemos investir em regulamentações?
No item anterior vimos que há razões para se ter dúvidas razoáveis sobre se regulamentações, uma vez aprovadas, realmente resultam em uma diminuição do sofrimento dos animais explorados. Entretanto, suponhamos para efeito de argumentação que elas, de fato, diminuam consideravelmente o sofrimento dos animais explorados. Poder-se-ia pensar que isso implica automaticamente que, então, se nosso objetivo é beneficiar os animais, necessariamente devemos investir em regulamentações. Entretanto, há outros fatores para considerarmos.
O primeiro fator é o mesmo já mencionado antes: há que se investigar se há ou não outras estratégias mais eficientes em termos de beneficiar os animais. Se houver, então devemos investir nessas outras estratégias. Se não houver, então devemos investir em regulamentações. Por exemplo, poderia ser dito que tentar regulamentar poderia envolver um alto custo em termos de recursos (tempo, dinheiro, pessoas etc.) que poderiam ser utilizados de outra forma mais eficiente.
O segundo fator é a possibilidade do seguinte: suponhamos que as regulamentações diminuam o sofrimento dos animais explorados, mas que façam o público se sentir mais confortável em consumir os animais e isso implique em um aumento na demanda por produtos de origem animal. Se a regulamentação tiver a implicação de aumentar o número de animais explorados por aumentar o consumo, já é então incerto se o seu saldo total é mais positivo do que não tentar regulamentar. Isso é algo que, para ser avaliado, teria de ser pesado o valor de diminuir o sofrimento dos animais que seriam explorados versus o desvalor de fazer nascer mais indivíduos no sistema de exploração. Essa é uma questão que é crucialmente sobre comensurabilidade em teoria do valor. Portanto, não é uma questão que poderia ser resolvida com pesquisas científicas.
4. Vários pontos adicionais de discussão
Além dos pontos que discutimos nos itens anteriores, há vários pontos adicionais de discussão que são importantes para respondermos as questões que abordamos até o momento. Nos próximos itens veremos os principais argumentos em discussão em relação a esses pontos adicionais.
4.1. Reformas aumentam os custos da exploração?
Defensores das reformas argumentam que estas aumentam os custos para os produtores, o que provavelmente enfraquece a indústria e, por tabela, diminui o consumo de produtos de origem animal, uma vez que os preços destes tendem a subir[14]. Nesse mesmo sentido, é argumentado que, se a reforma aumentasse os lucros, a indústria as adotaria sem pressão dos ativistas[15].
Entretanto, a isso poderia ser respondido que, se os exploradores aceitam as reformas, embora isso inicialmente possa aumentar os custos, também é possível que ao longo do tempo aumente os lucros, por conta do aumento do consumo por conta de selos como “carne feliz” e similares, o que tenderia a aumentar a imagem positiva da empresa em relação ao público, embora os animais continuassem a sofrer imensamente.
Outra possível resposta é apontar que, se a resistência dos exploradores é um problema para se conseguir efetivar as reformas, então é mais eficiente os ativistas investirem em apoiar o desenvolvimento, barateamento e implementação da carne cultivada, pois, se esta vier a se tornar mais barata de ser produzida do que a carne convencional, não enfrentaria a mesma resistência que os exploradores têm em relação às reformas (na verdade, eles mesmos buscariam implementá-la, pois seria mais lucrativa).
4.2. Reformas facilitam mudanças posteriores?
Um argumento por vezes endereçado para defender que reformas não facilitam mudanças posteriores é apontar que as empresas poderão se tornar mais resistentes a novas reformas depois de terem já implementado algumas, especialmente se as reformas já implementadas melhorarem significativamente a sua imagem e lhes custarem pouco.
Uma resposta a esse argumento é apontar que em vários países em 2015 e 2016 as reformas se sucederam rapidamente. Por exemplo, logo após a transição de políticas sem gaiolas foram aceitos compromissos para acabar com a prática de matar pintos[16].
Um contra-argumento a essa constatação é apontar que ela aplica-se mais fortemente à facilitação de novas reformas do que à redução do número de animais explorados.
Outra preocupação em relação a reformas dificultarem mudanças posteriores é que a indústria de exploração animal pode influenciar e neutralizar as organizações de defesa animal por conta das parcerias que os ativistas constroem com a indústria, especialmente se houver investimento financeiro ou doações da indústria para as organizações de defesa animal[17].
4.3. Reformas facilitam ou dificultam a diminuição do consumo?
Um argumento a favor de que reformas facilitam a diminuição do consumo é o de que, quando ocorre uma reforma, as pessoas veem que a sua cultura inclui alguma preocupação com os animais, e então isso poderia influencia-las a incorporarem essa preocupação e se sentirem mais indignadas quando descobrirem que os animais ainda sofrem tremendamente, mesmo com as regulamentações do chamado tratamento humanitário[18].
Um argumento no sentido oposto é o de que as reformas podem tornar as pessoas mais propensas a consumirem mais produtos de origem animal e a defenderem a exploração animal, apontando que “agora os animais vivem vidas boas”. Por exemplo, em uma pesquisa de 2017, 75% dos adultos norte-americanos disseram que os produtos de origem animal que compram vêm de animais tratados humanamente, apesar de mais de 99% dos animais explorados nos EUA serem criados em fazendas industriais[19].
Por vezes esse argumento é respondido apontando-se que países que tiveram mais reformas na exploração tendem também a ter taxas mais altas de aderência ao vegetarianismo[20]. Entretanto, a isso poderia ser respondido que isso não mostra que são as reformas que facilitam a diminuição do consumo. Pode muito bem ocorrer o contrário (nesses países haver mais reformas porque neles já havia mais pessoas preocupadas com os animais explorados para consumo) ou pode ser que a diminuição do consumo seja influenciada por outras variáveis, que não as reformas.
Outro argumento em defesa das reformas aponta que a cobertura midiática das reformas tende a focar mais nos problemas que ainda permanecem e nos progressos que virão do que em como as coisas estão melhores agora ou que o consumo é menos preocupante[21]. Entretanto, poderia ser respondido que isso não necessariamente causa uma diminuição do consumo. Por exemplo, durante o período que antecedeu a votação de uma reforma na Califórnia em 2008, não houve diminuição no consumo de ovos associada ao aumento da cobertura na mídia, embora a procura por ovos de galinhas exploradas fora de gaiolas tendesse a aumentar e a procura por ovos de galinhas confinadas em gaiolas tendesse a diminuir[22].
Outro argumento em defesa de que as reformas facilitam a redução do consumo é o de que estudos descobriram que os entrevistados que leram sobre reformas focadas no bem-estar dos animais eram mais propensos a dizer que reduziriam o seu consumo de produtos de origem animal do que um grupo de controle que leu sobre mudanças políticas não relacionadas aos animais[23].
4.4. Seriam as reformas os melhores passos graduais para a mudança?
Frequentemente as reformas são defendidas com base na alegação de que elas oferecem passos graduais rumo à abolição. Por vezes proponentes das reformas acusam seus opositores de terem a ilusão de que a abolição será alcançada da noite para o dia[24].
Entretanto, a isso os opositores das reformas poderiam responder que sabem muito bem que a abolição não será alcançada da noite para o dia, mas que os melhores passos graduais para alcançar a abolição não são as reformas, e sim, outras estratégias (como a difusão de uma visão anti especista, o incentivo à carne cultivada, o veganismo, a redução do consumo etc.)
Assim, há duas questões em discussão aqui. A primeira é: reformas oferecem passos graduais rumo à abolição? A segunda é: mesmo se oferecerem, haverá outros passos graduais mais eficientes?
Em defesa de que reformas oferecem passos graduais rumo à abolição por vezes são citados paralelos com a luta pelo fim da escravidão humana. Por exemplo, o movimento britânico anti escravidão primeiro almejou abolir o comércio transatlântico de escravos (pois era mais fácil de se conseguir do que a abolição total), e quando conseguiram, focaram em eliminar a escravidão nas Índias Ocidentais e assim por diante[25].
Em resposta a essas paralelos poderia ser respondido que talvez o sucesso do movimento contra a escravidão tenha dependido de campanhas que são muito diferentes daquilo que é defendido pelos proponentes de reformas na exploração animal. Por exemplo, é possível que em relação ao sucesso do movimento contra a escravidão tenha sido crucial o fato de os defensores deixarem claro que cada ação era um passo em direção à abolição, algo que geralmente não ocorre nas campanhas de reformas na exploração animal[26].
Também poderia ser apontado que, no caso dos paralelos citados em relação ao movimento contra a escravidão, os passos graduais rumo à abolição foram abolições de práticas de escravidão específicas, e não, regulamentações nas práticas existentes. Por exemplo, eliminar o comércio de escravos em certas regiões é um passo em direção à abolição, mas uma lei que regulamentasse o número de chicotadas permitidas nos escravos não seria.
Outro argumento por vezes endereçado para defender que as reformas facilitam a abolição aponta que, se a indústria se opõe às reformas, o público poderá chegar a concordar que a única maneira de resolver o problema é por meio da abolição[27]. Entretanto, uma resposta a esse argumento é apontar que isso só acontecerá se houver uma boa parcela do público se preocupando seriamente com os animais, o que mostra que as reformas, por si só, não conduzem à abolição (pois, para existir um movimento pela abolição é necessário um aumento da consideração pelos animais não humanos na sociedade).
4.5. A possibilidade de vieses de ambos os lados
Proponentes das reformas por vezes argumentam que alguns ativistas podem estar enviesados ao pensarem que reformas facilitam a aceitação da exploração, devido ao desejo de que as mudanças ocorram rapidamente e a consequente frustração devido à lentidão das mudanças[28]. Outro argumento que poderia ser endereçado nesse mesmo sentido seria apontar que o reconhecimento de que a exploração animal é injusta e deveria ser abolida poderia compelir as pessoas a afirmarem que as reformas não são eficazes para aboli-la (fariam isso para evitar o desconforto que surgiria de admitirem que reformas na exploração poderiam ser algo bom). Por fim, proponentes das reformas costumam citar que há um acordo majoritário entre os pesquisadores do movimento do altruísmo eficaz de que as regulamentações mais dificultam do que facilitam a exploração animal[29].
Entretanto, há também vieses que podem influenciar as pessoas a terem uma posição pró-reformas. Por exemplo, devido ao viés de compromisso os pesquisadores que estiveram envolvidos durante muito tempo apoiando reformas podem enxergá-las como mais positivas do que realmente são (embora o viés de compromisso possa afetar também a visão oposta, caso alguém já tenha investido bastante em uma posição contrária a reformas). Além disso, por conta do viés do efeito adesão, o fato de a maioria dos pesquisadores serem pró-reforma pode inclinar outros pesquisadores a serem a favor das mesmas, sem necessariamente avaliarem minuciosamente a eficácia das reformas. Outra possibilidade é o desejo de se ver um impacto mais imediato e mensurável (algo que é possível com as reformas) induzir alguém a acreditar que as reformas são mais eficientes do que realmente são.
Enfim, é possível que vários vieses influenciem a percepção de ambos os lados. É importante termos isso em mente ao avaliarmos não somente essa questão das reformas, mas ao avaliarmos estratégias de ativismo em geral.
Por exemplo, o raciocínio motivado nos induz a tentar confirmar as crenças que já tínhamos antes, em vez de tentar descobrir a verdade, produzindo então um viés de confirmação, que consiste em reparar nas (ou dar maior peso às) informações que confirmam nossa crença inicial e em não reparar nas (ou dar menor peso às) que mostram que ela é equivocada. Outro efeito do raciocínio motivado e do viés de confirmação é o fato de as pessoas avaliarem de modo muito menos rigoroso os argumentos que confirmam suas crenças iniciais.
Relacionado a isso tudo está a heurística escolha-a-melhor. Quando empregamos essa heurística, em vez de considerar todas as razões pelas quais poderíamos escolher uma alternativa em vez de outra, escolhemos uma razão qualquer e baseamos a nossa decisão exclusivamente nela. Um exemplo clássico é a tendência de se pensar que apontar um único efeito negativo de uma estratégia com a qual não se simpatiza inicialmente é suficiente para mostrar que não devemos adotá-la. Analogamente, outro exemplo é a tendência de se pensar que apontar um único efeito positivo de uma estratégia com a qual se simpatiza inicialmente é suficiente para mostrar que devemos adotá-la. Ambas as atitudes são tendenciosas, uma vez que não se está a computar todos os prováveis efeitos positivas e negativos de cada estratégia.
5. Conclusão
Há quatro principais questões no debate sobre reformas na exploração animal: (1) Elas contribuem rumo à abolição? (2) Se contribuírem, defensores dos animais deveriam investir em reformas? (3) Elas realmente diminuem o sofrimento dos animais explorados? (4) Se diminuírem, defensores dos animais deveriam investir em reformas?
Vimos que em relação às questões 1 e 3 há uma grande controvérsia. Além disso, as questões 1 e 3 dependem crucialmente de se há ou não outras estratégias com maior potencial de eficiência do que as reformas. Vimos que uma dificuldade em relação a isso é que não há dados muito precisos sobre a eficiência de outras estratégias, uma vez que muito menos recursos foram até o momento investidos nelas. Exemplos dessas outras estratégias são a educação anti especista, o investimento em carne cultivada e campanhas incentivando o veganismo e/ou a redução do consumo. Essa é, então, uma razão para se investir mais em tais estratégias do que em reformas, haja vista que já há muito mais recursos investidos em reformas e um número muito maior de ativistas investindo nelas. Assim, nosso impacto marginal será maior se focarmos mais nessas outras estratégias.
Vimos também que há várias dificuldades em relação às reformas, como o risco de aumento do consumo (e, portanto, do número de animais explorados), a resistência oferecida pelos exploradores e a dificuldade de implementação e fiscalização, mesmo quando reformas são aprovadas. Há pelo menos outra estratégia que evitaria esses problemas: investir os recursos que seriam investidos em reformas em pesquisas sobre carne cultivada (seja lá se forem recursos da causa animal ou recursos dos exploradores).
A carne cultivada não teria o risco de aumentar o consumo de animais pois, quanto mais carne cultivada fosse consumida, menor o número de animais explorados. Além disso, a proposta de se investir em carne cultivada provavelmente não sofreria a mesma resistência que os exploradores têm quanto as reformas, pois se os exploradores perceberem que a carne cultivada têm potencial para vir a ser mais barata de ser produzida do que a carne convencional, eles próprios investiriam nela.
Assim, em vez de investirem recursos em campanhas por reformas, os ativistas da causa animal poderiam exigir legislação no sentido de que cada empresa que explora animais investisse uma quantia “x” de seus recursos em pesquisas sobre carne cultivada, por exemplo.
O exemplo acima comparou a estratégia de investir em reformas com a estratégia de investir em carne cultivada. Entretanto, também é possível compará-la com outras estratégias, como a educação anti especista e o incentivo ao veganismo ou à redução do consumo (e também comparar essas outras estratégias entre si). Isso é algo que, inevitavelmente temos de fazer se nosso objetivo é realmente termos o melhor impacto para os animais.
REFERÊNCIAS
ANTHIS, J. R. Summary of Evidence for Foundational Questions in Effective Animal Advocacy.Momentum vs. Complacency from welfare reforms. Sentience Institute, 13 ago. 2020a.
ANTHIS, J. R. Survey of US Attitudes Towards Animal Farming and Animal-Free Food October 2017. Sentience Institute, 20 nov. 2017.
ANTHIS, K.; ANTHIS, J. C. Social Movement Lessons From the British Antislavery Movement. Sentience Institute, 1 dez. 2017.
BRYANT, T. L. Sacrificing the sacrifice of animals: Legal personhood for animals, the status of animals as property, and the presumed primacy of humans. Rutgers Law Journal, v. 39, p. 247-330, 2008.
DOWARD, J. Price of bacon set to soar as producers are hit by new EU animal welfare laws. The Guardian, 12 ago. 2012.
FRANCIONE, G. L. Animals, property and the Law. Philadelphia: Temple University Press, 1995.
FRANCIONE, G. Rain Without Thunder: The Ideology of the Animal Rights Movement. Philadelphia: Temple University Press, 1996.
FRANCIONE, G.; GARNER, R. The Animal Rights Debate: Abolition or Regulation? Columbia: Columbia University Press, 2010.
LUSK, J. L.; THOMPSON, N. M.; WEIMER; S. L. The Cost and Market Impacts of Slow-Growth Broilers. Journal of Agricultural and Resource Economics, v. 44, n. 3, p. 536–550, 2019.
MADDUX, E. A. Time to stand: Exploring the past, present, and future of nonhuman animal standing. Wake Forest Law Review, v. 47, p. 1243-1267, 2012.
MCCARTNEY-SMITH, E. Can nonhuman animals find tort protection in a human-centered common law? Animal Law Review, n. 4, p. 173-210, 1998.
MERCY FOR ANIMALS. Why We Work For Policy Change. Mercy for Animals, 14 nov. 2016a.
MERCY FOR ANIMALS. Welfare Reforms and Meat Consumption. Mercy for Animals, 14 nov. 2016b.
MILLER, J. Egg prices set to rise after EU battery cage hen ban. BBC, 12 mar. 2012.
MORRISON, A. Book Review: Rain Without Thunder. National Animal Interest Alliance, 15 jan. 2012.
MULLALLY, C.; LUSK, J.L. The Impact of Farm Animal Housing Restrictions on Egg Prices, Consumer Welfare, and Production in California. American Journal of Agricultural Economics, v. 100, p. 649-669, 2018.
PITNEY, N. Scientists believe the chickens we eat are being slaughtered while conscious. The Huffington Post, 28 out. 2016.
SMITH, A. ANIMAL CHARITY EVALUATORS. Models of Media Influence on Demand for Animal Products. Animal Charity Evaluators, ago. 2016.
TANNENBAUM, J. Animals and the law: Property, cruelty, rights. Social Research, v. 62, p. 539-607, 1995.
TOMASIK. A Small Mechanical Turk Survey on Ethics and Animal Welfare. Reducing Suffering, 18 nov. 2015.
WARRICK, J. They die piece by piece. Washington Post, 10 abr. 2001.
Notas
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Para uma visão geral de ambos os lados deste debate, ver Francione; Garner (2010).
[3] Para uma história do (e uma crítica ao) movimento pelas reformas na exploração animal, ver Francione (1996).
[4] Ver Tannenbaum (1995); Francione (1995); McCartney-Smith (1998); Bryant (2008) e Maddux (2012).
[5] Para uma análise dessa questão, ver Francione (1995).
[6] Sobre isso, ver Warrick (2001); Pitney (2016).
[7] Ver Francione (1996, p. 17-20; 115-6; 134-9; 141-3; 231).
[8] Sobre isso, ver Francione (1996, p. 134-9).
[9] Id.
[10] Sobre isso, ver Francione (1996, p. 115-6; 137).
[11] Id.
[12] Sobre isso, ver Francione (1996, p. 17-20, 141-3, 183, 231).
[13] Id.
[14] Ver, por exemplo, Miller (2012); Doward (2012); Mullally; Lusk (2018); Lusk et. al. (2019).
[15] Anthis (2020a, n. 160).
[16] Ver, por exemplo, Anthis (2020a, n. 151)
[17] Ver Anthis (2020a).
[18] Ver, por exemplo, Anthis (2020a).
[19] Anthis (2017).
[20] Ver, por exemplo, Mercy for Animals (2016a).
[21] Anthis (2020a, n. 157).
[22] Smith (2016).
[23] Ver, por exemplo, Tomasik (2015) e Mercy for Animals (2016b).
[24] Ver, por exemplo, Morrison (2012).
[25] Ver Anthis; Anthis (2017); Anthis (2020a, n. 161).
[26] Anthis (2020a, n. 162).
[27] Anthis (2020a, n. 163-4).
[28] Ver Anthis (2020a), na seção “Arguments for momentum”, itens 14 e 15.
[29] Anthis (2020a, n. 167).
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.
