Luciano Carlos Cunha[1]
- 1. Evitando vieses na hora de avaliar estratégias
- 2. Entendendo quando a divergência é sobre estratégias e quando é sobre metas
- 3. O raciocínio por trás do foco na redução
- 4. Argumentos a favor do foco em tentar que as pessoas reduzam o consumo
- 5. Argumentos a favor do foco em tentar que as pessoas adotem o veganismo
- 6. Conclusão e algumas questões adicionais
1. Evitando vieses na hora de avaliar estratégias
Se o que almejamos é conseguir beneficiar os animais da melhor maneira possível, então precisamos resistir à tentação de rejeitar ou aprovar certa estratégia de antemão, com base em nossas intuições, antes de entender bem quais os seus possíveis efeitos positivos e negativos.
O viés de confirmação influencia-nos a reparar naquilo que confirma o que já pensávamos antes e a negligenciar aquilo que vai contra nossas crenças prévias. Esse viés exerce influência sobre nossas crenças em geral. Portanto, também exerce influência na hora de avaliarmos estratégias de ativismo.
Outro viés relacionado ao viés de confirmação é a heurística escolha-a-melhor, que é um atalho mental que utilizamos na tomada de decisões entre alternativas com o objetivo de tomarmos decisões rapidamente sem precisar saber todas as informações sobre cada alternativa. Quando empregamos essa heurística, em vez de considerar todas as razões pelas quais poderíamos escolher uma alternativa em vez de outra, escolhemos uma razão e baseamos a nossa decisão exclusivamente nela. Vejamos um exemplo:
Geralmente, as pessoas consideram que apontar um único benefício da estratégia com a qual intuitivamente simpatizam já é suficiente para provar que ela é uma boa estratégia. Analogamente, consideram que apontar um único efeito negativo da estratégia com a qual intuitivamente antipatizam já que é suficiente para provar que ela não é uma boa estratégia.
Essa forma de pensar nos impede de tomarmos boas decisões. Por exemplo, pode ser que uma estratégia que tenha efeitos positivos tenha outros efeitos negativos maiores, tendo saldo negativo no total. Analogamente, é possível que uma estratégia tenha efeitos negativos, mas também tenha outros efeitos positivos maiores que façam ela ter saldo positivo. E mesmo o fato de uma estratégia ter saldo positivo não mostra que não há outra estratégia melhor do que ela, que poderia ser tentada em seu lugar. Outra complicação adicional é que, por vezes, uma estratégia tem menos riscos do que outra, mas também tem menos efeitos positivos. Há uma série de dificuldades.
Enfim, analisar os efeitos potenciais de cada estratégia não é uma tarefa fácil. Por isso mesmo é que não deveríamos nos apressar em rejeitar ou abraçar uma estratégia antes de investigarmos o seus prováveis efeitos.
2. Entendendo quando a divergência é sobre estratégias e quando é sobre metas
Por vezes, divergências que são estratégicas (isto é, em relação aos meios para se alcançar uma meta) são entendidas equivocadamente como se fossem divergências em relação às próprias metas, dando a impressão de que o grau de divergência é maior do que realmente é. Isso impossibilita a adoção de compromissos mútuos que talvez fossem possíveis se houvesse a percepção de que a divergência é estratégica.
Considere, por exemplo, a seguinte questão: devemos focar em tentar fazer com que as pessoas adotem o veganismo ou em tentar que reduzam o consumo de produtos de origem animal?
Frequentemente, esse debate é entendido nos seguintes termos: “ativistas que focam no veganismo acreditam que a exploração animal é injusta e almejam aboli-la; já ativistas que focam na promoção da redução do consumo acreditam que o problema é o excesso de consumo de animais e que, reduzindo-o, não há nada de errado com a exploração animal”.
É possível que esse seja o caso em relação a vários ativistas, mas certamente não o é em relação a todos. Por exemplo, há ativistas que focam na redução, mas possuem a mesma meta dos ativistas que focam no veganismo: almejam a abolição do uso de animais. Entretanto, acreditam que, para alcançar essa meta, tentar convencer as pessoas a diminuírem o consumo de animais é mais eficiente do que tentar convencer a se tornarem veganas. Portanto, sua divergência não é quanto à meta: é quanto à qual a melhor estratégia para alcançar essa meta.
Não estou a defender que necessariamente o foco na redução é uma estratégia melhor do que o foco no veganismo, ou vice-versa. Na sequência, veremos alguns possíveis efeitos positivos e negativos de cada uma dessas estratégias. O que quero mostrar é apenas que a divergência sobre estratégias não indica necessariamente uma divergência sobre metas. Perceber isso (e também que a eficiência das diferentes estratégias é, pelo menos em algum grau, incerta) abre espaço para compreensão mútua, evitando o pensamento de que pessoas que seguem estratégias diferentes das nossas são pessoas más ou ignorantes.
Como dito antes, examinar bem cada estratégia antes de aprová-la ou rejeitá-la é o que se espera de quem almeja o melhor para os animais. É o que tentaremos fazer a seguir.
3. O raciocínio por trás do foco na redução
O principal argumento a favor do foco na redução é o seguinte. Ainda que adotar o veganismo seja uma obrigação em termos de justiça para com os animais, dada a mentalidade especista da maioria das pessoas, se pedirmos que elas façam o que é correto, é possível que a maioria das pessoas ache que o padrão exigido é alto demais (embora não o seja realmente), e então simplesmente continuem a consumir os animais, exatamente na mesma medida como consumiam antes. Por outro lado, se solicitamos às pessoas que somente diminuam o seu consumo de animais, ainda que isso não seja o que é verdadeiramente justo para com os animais, como a exigência é bem menor, é possível que muito mais pessoas aceitem adotar isso na prática.
Em resumo, o argumento principal a favor do foco na redução é este: focando no veganismo, talvez consigamos convencer um número muito menor de pessoas e, apesar de cada pessoa vegana evitar a morte de muito mais animais do que cada pessoa que somente reduz o consumo, um número muito maior de pessoas fazendo menos pode, no final das contas, representar uma redução muito maior no número de animais mortos do que um número muito menor de pessoas fazendo muito.
Quem adota essa estratégia pode reconhecer que o veganismo é o ideal. Entretanto, poderiam argumentar que, dado como são os humanos, se exigir o ideal aumentar bastante o risco de não se conseguir nem o mínimo, é melhor garantir o mínimo, nem que para isso tenha-se que reivindicar algo que não é o ideal.
É claro, também há argumentos sérios para se adotar um foco no veganismo (que veremos no item 5). A seguir estão listados alguns argumentos favoráveis a cada uma dessas abordagens, que são um resumo da discussão contida nesta lista.
4. Argumentos a favor do foco em tentar que as pessoas reduzam o consumo
1) É possível que muito mais pessoas fazendo muito menos tenha um impacto maior do que muito menos pessoas fazendo muito mais.
2) Pedir para reduzir é menos exigente e, portanto, pode ser mais facilmente aceito.
3) Pode ser que, para as pessoas se posicionarem contra a exploração animal, talvez seja suficiente que façam uma mudança mínima em seu consumo.
4) Se o item 3 estiver correto, então focar na redução pode gerar um apoio mais amplo da população para a causa da abolição da exploração animal.
5) Dada a dificuldade de se entender a diferença entre divergências estratégicas e de metas, o foco na redução, por proporcionar uma explicação sobre isso, pode contribuir mais para um ativismo sensível a nuances e à complexidade.
6) A redução não tem o mesmo estigma associado ao veganismo. Portanto, pode ser mais facilmente aceita.
7) O foco na redução dá a oportunidade de explicar que os vários produtos de origem animal possuem impactos diferentes no sofrimento e no número de mortes. Por exemplo, dá a oportunidade de explicar que o consumo de camarões e de insetos causa muito mais mortes do que o consumo de outros produtos de origem animal.
8) Mesmo se o que alguém pretende é fazer com que as pessoas se tornem veganas, defender a redução do consumo pode ser uma boa estratégia do tipo “pé na porta”. Esse tipo de estratégia consiste em começar propondo algo menos exigente, para tentar com que aquilo que se almeja realmente seja mais facilmente aceito depois, em etapas. Por exemplo, se A pede 5 reais e B aceita doar uma vez, isso aumenta a possibilidade de que B aceite doar mais 5 reais depois, mais do que se A tivesse pedido diretamente 10 reais.
5. Argumentos a favor do foco em tentar que as pessoas adotem o veganismo
Também existem argumentos que defendem que focar no veganismo tem melhores resultados. Veremos a seguir os principais.
1) Enfatiza mais fortemente que a consideração pelos animais é uma questão séria.
2) Cada pessoa que adota o veganismo causa uma redução maior na quantidade de animais que nascem para sofrer e nas mortes totais.
4) Popularizar o veganismo desde já e também reduzir o estigma associado a ele é importante se a meta é a adoção do veganismo em larga escala posteriormente.
5) O público pode pensar que a mensagem a favor da redução é inconsistente (“se é errado prejudicar os animais, por que estão pedindo apenas para reduzir?”).
6) Veganos parecem ter mais potencial de se tornarem ativistas do que quem apenas reduz o consumo.
7) Pedir para reduzir o consumo pode, paradoxalmente, aumentar o sofrimento e as mortes de animais, se as pessoas entenderem errado a mensagem e, em vez de não consumirem nada de origem animal algumas vezes na semana, entenderem que a ideia é, por exemplo, evitarem carne bovina e consumirem aves, peixes ou crustáceos no lugar, ou então evitarem carne, mas não ovos e leite. Entretanto, isso pode ser evitado se a mensagem a favor da redução for clara.
8) Também é possível que um menor número de veganos tenha um maior impacto do que um número maior de pessoas que apenas reduzem o consumo. Isso é especialmente verdadeiro se a adoção do veganismo aumenta as possibilidades de alguém se tornar ativista. Em resumo, o resultado de cada estratégia dependerá desses dois fatores: (1) o quão maior ou menor será o número de pessoas alcançada por cada estratégia e (2) o quanto de benefício para os animais cada uma dessas pessoas faria.
9) O veganismo possui necessariamente um foco na consideração pelos animais. Já a redução no consumo pode ser feita por razões ambientalistas e antropocêntricas (ainda que possa ser feito por consideração aos animais também). Há um consenso entre os pesquisadores de que o foco nos animais não só é mais eficiente para beneficiar os animais, como também que o uso de argumentos ambientalistas e antropocêntricos pode ser contraproducente.
10) Mesmo se o que alguém pretende é defender a redução do consumo, defender o veganismo pode ser uma boa estratégia do tipo “porta na cara”. Esse tipo de estratégia consiste em primeiro propor algo mais exigente, com o objetivo que aquilo que se almeja realmente seja mais facilmente aceito depois. Por exemplo, se A pede cinquenta reais e B nega, e em seguida A pergunta “e se for apenas 5 reais, você doaria?” a probabilidade de B aceitar é maior do que se A tivesse já começado a pedir os 5 reais, que é o que realmente almeja.
6. Conclusão e algumas questões adicionais
Acima foram listados alguns argumentos a favor dos dois tipos de focos. Entretanto, há também uma terceira possibilidade: defender que pode haver um melhor impacto se houver pessoas diferentes defendendo distintos focos, em vez de todas focarem na mesma estratégia (ou, que deveríamos tentar isso pelo menos enquanto não se tem dados mais precisos sobre o resultados desses diferentes focos). Outra opção, ainda, seria cada pessoa experimentar os diferentes focos durante uma mesma quantidade de tempo e depois tentar comparar a eficiência de ambos.
É importante observar que tudo o que foi discutido aqui diz respeito a mudanças de atitudes individuais. Outra discussão paralela e importante é se deveríamos focar em mudanças de atitudes individuais ou em mudanças institucionais.
Confesso que ainda me parece que, no geral, o foco no veganismo é mais promissor. Entretanto, reconheço que o foco na redução possui vários argumentos que devem ser levados muito a sério.
De qualquer maneira, o objetivo deste texto, mais do que concluir sobre qual a estratégia mais eficiente, foi mostrar que, pelo menos nesse caso a divergência entre os ativistas não tem de ser necessariamente sobre a meta almejada. Parece ser muito mais sobre qual a melhor estratégia para alcançar uma meta compartilhada, que é o fim da exploração animal. Se houvesse uma diferença de metas, já não haveria razão alguma para conflito e hostilidade, e sim, para um debate honesto e respeitoso sobre as metas. Agora, se a meta é a mesma, conflito e hostilidade têm menos sentido ainda. Há, em vez disso, muitas razões para adotarmos o compromisso mútuo de fazermos em conjunto — respeitosamente e de maneira honesta – um exame ponderado e minucioso sobre os prós e contra de cada estratégia.
Notas
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.

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