Luciano Carlos Cunha[1]
- 1. Haver especialistas em ética animal que consomem animais mostra que crenças morais não geram uma motivação para agir de acordo?
- 2. Talvez não considerem errado consumir animais
- 3. Talvez considerem pouco errado consumir animais
- 4. Talvez não estejam sendo sinceros quanto ao que reportam
- 5. Talvez tenham vontade fraca
- 6. Talvez decidam não fazer aquilo que se sentem motivados a fazer
- 7. Conclusão
1. Haver especialistas em ética animal que consomem animais mostra que crenças morais não geram uma motivação para agir de acordo?
Este texto pretende ser uma breve reflexão sobre a questão da motivação moral, a partir de casos que por vezes ocorrem no debate sobre a consideração moral dos animais não humanos.
A ética animal é a área da ética aplicada que estuda a moralidade das nossas decisões que afetam os animais não humanos. Por vezes é defendido que o fato de existirem especialistas em ética animal que continuam consumindo animais é uma prova de que acreditar que algo é certo/errado não tem influência alguma em mudar as atitudes das pessoas.
Segundo essa visão, para as pessoas se importarem em mudar uma prática, é insuficiente que concluam que ela está errada: é necessário algo que as “toque”, como uma imagem ou um vídeo chocante, uma música, um acontecimento em suas vidas pessoais, lerem uma história tocante etc. Em resumo, segundo essa visão, é sempre necessária a persuasão não racional.
Neste texto será defendido que é precipitado concluir, a partir do fato de que há especialistas em ética animal que consomem animais, que então a crença de que algo é certo/errado não cria uma motivação para se agir de acordo. Como veremos, há pelo menos outras quatro possibilidades, que podem estar a ocorrer no caso desses especialistas, que serão explicadas a seguir.
2. Talvez não considerem errado consumir animais
Uma possibilidade é algumas dessas pessoas serem especialistas em ética animal mas, por alguma razão, não concordarem que o consumo de animais seja injustificado. Se esse for o caso, essas pessoas estão a fazer exatamente o que acreditam ser correto. É claro, isso não quer dizer que elas estão corretas ao pensarem assim. Quer dizer apenas que, se for isso o que está a acontecer, então apontar para o caso dessas pessoas não mostra que a crença de que algo é certo/errado não influencia as atitudes (muito pelo contrário: é a sua crença de que consumir animais está justificado que as faz continuarem a consumir animais).
3. Talvez considerem pouco errado consumir animais
Há graus com que as pessoas consideram uma atitude certa ou errada. Por exemplo, normalmente consideramos atropelar alguém um erro muito grave. Por outro lado, chegar atrasado quinze minutos em uma reunião é normalmente considerado um erro leve. Parece ser exatamente por essa razão que tomamos muito mais cuidado para não atropelar alguém do que para evitar de chegarmos atrasados em uma reunião. Se é assim, então o quanto alguém acha que uma prática é certa ou errada tem muita influência no quanto vai se esforçar para agir de acordo.
Assim, é possível que alguns desses especialistas deem alguma consideração moral aos animais não humanos, mas muito menor do que aquela dada aos humanos. Assim, mesmo que digam que consideram o consumo de animais algo errado, talvez não considerem isso como um erro lá muito grave. E, mais uma vez, o caso dessas pessoas não corrobora a tese de que as crenças de alguém sobre o que é certo e errado não tem influência em suas atitudes. Muito pelo contrário: se for isso o que está a ocorrer, isso mostra que sua atitude é reflexo justamente de acreditarem que a exploração animal não é um erro muito grave.
4. Talvez não estejam sendo sinceros quanto ao que reportam
Poderia ser objetado que há pessoas que dizem que consideram o uso de animais para consumo algo muitíssimo errado, mas que tampouco param de consumi-los. Entretanto, isso ainda é insuficiente para se concluir que a crença de que uma prática é certa/errada não motiva alguém a agir de acordo. Isso se dá por duas razões:
A primeira é que há a possibilidade de alguém dizer que considera o consumo de animais algo muitíssimo errado, mas não estar sendo sincero e, na verdade, não considerar algo assim lá tão errado. A segunda é que, mesmo se estiver sendo sincero, é possível que tal pessoa apresente o problema conhecido como fraqueza de vontade, comentado a seguir.
5. Talvez tenham vontade fraca
Poder-se-ia alegar que há pessoas que sinceramente consideram o consumo de animais um erro muitíssimo grave e, ainda assim, não param de consumir os animais. Isto é, essas pessoas apresentam o problema conhecido como fraqueza de vontade.
Entretanto, apesar de casos de fraqueza de vontade mostrarem que as crenças morais não determinam sozinhas o comportamento de alguém, não mostram que as crenças morais não têm influência no comportamento. No caso dessas pessoas, a motivação gerada pela crença de que o consumo de animais é um erro gravíssimo provavelmente está a competir com outras motivações contrárias (por exemplo, a pressão social, o prazer obtido com os alimentos que já está acostumada, a associação afetiva entre o tipo de alimento que consome e eventos sociais etc.).
6. Talvez decidam não fazer aquilo que se sentem motivados a fazer
Outra possibilidade, ainda, é a crença moral criar uma motivação para agir de acordo, não haver outras motivações conflitantes, mas a pessoa simplesmente decidir não fazer aquilo que considera certo e que se sente motivada a fazer. Esses casos parecem ser mais raros. Mas, novamente, tais casos mostrariam que as crenças morais não determinam o comportamento de alguém, mas não mostrariam que não criam uma motivação para agir de acordo.
7. Conclusão
O fato de haver especialistas em ética animal que consomem animais é insuficiente para se concluir que as crenças de alguém sobre o que é certo/errado fazer não geram uma motivação para agir de acordo. Como vimos, há pelo menos outras quatro possibilidades do que está a ocorrer nesses casos: (1) não considerarem consumir animais um erro; (2) considerarem consumir animais um erro, mas não um erro grave; (3) considerarem um erro grave mas a motivação gerada por essa crença ter de competir com outras motivações contrárias; (4) considerarem um erro grave e não haver motivações contrárias, mas decidirem não fazer aquilo que se sentem motivados a fazer.
Isso tudo pode gerar uma sensação de decepção em algumas pessoas, em relação à força dos argumentos em termos de mudar o comportamento das pessoas. Entretanto, segundo entendo, isso é precipitado. O que vimos acima mostra que argumentos não são ferramentas mágicas que nos dão controle sobre as decisões de quem vai ouvir os argumentos. Como vimos, o comportamento da pessoa é resultado de muitos fatores e, por mais que alguém argumente da melhor maneira possível, e a outra pessoa aceite o argumento, não temos poder de decidir se ela vai seguir na prática o que concluiu ou não. Isso só ela é capaz de fazer.
Diante disso, algumas pessoas poderiam então pensar que é melhor abandonar a persuasão racional e adotar táticas de persuasão não racional. Mas, o ponto é: qualquer outra forma de persuasão tem os mesmos limites. Diante de táticas de persuasão não racional a pessoa pode simplesmente não dar bola, ou pode dizer que concorda e não agir de acordo (novamente, pode haver motivações conflitantes, pode simplesmente decidir não seguir o que ela se sente motivada a fazer etc.). Aliás, as táticas de persuasão não racional parecem ter limites ainda maiores, pois a persuasão racional pelo menos consegue explicar as razões para se aceitar ou rejeitar determinada prática. Isso parece mostrar que a persuasão racional, com todos os seus limites, ainda é o melhor de que dispomos.
Notas
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.

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