Categorias de teorias da ética normativa

Luciano Carlos Cunha[1]

1. Ética normativa e suas categorias

As teorias da ética normativa[2] investigam como devemos agir e por quê: quais metas buscar; quais regras seguir; quais traços de caráter cultivar; se há ou não ações opcionais; se há ou não ações louváveis mas não obrigatórias; etc. Isto é, essas teorias não descrevem como as pessoas agem. Em vez disso, prescrevem como deveriam agir.

Embora envolvam o uso da razão, as teorias da ética normativa são diferentes das teorias normativas da decisão racional[3]. Nestas últimas o foco são os meios que devemos adotar para alcançar determinado fim (isto é, a razão instrumental). Já o que está em discussão na ética normativa são os próprios fins. É claro, se achamos que devemos buscar determinado fim (por exemplo, diminuir o sofrimento no mundo), precisaremos investigar os melhores meios para alcançá-lo. Isto é, esses domínios do pensamento se relacionam, mas são distintos, apesar de serem ambos normativos (pois dizem respeito ao que devemos fazer).

Existem três categorias principais de teorias da ética normativa: consequencialismo, deontologia e éticas centradas no caráter. Dentro de cada uma dessas categorias, existem muitas variantes de teorias normativas. Vejamos cada uma dessas três grandes categorias:

2. Consequencialismo

2.1. O que une as diversas teorias consequencialistas?

Há muitas teorias consequencialistas, com muitas diferenças entre si[4]. O que há de comum a todas elas, que as faz serem teorias consequencialistas, é o seguinte: para essas teorias, a decisão sobre quais cursos de ação adotar, quais regras seguir, quais traços de caráter cultivar, etc. é algo que depende unicamente do quão boa/ruim é a situação resultante (isto é, depende unicamente das consequências).

2.2. Como cada teoria consequencialista avalia o quão boas/ruins são as consequências?

As diferentes teorias consequencialistas divergem umas das outras sobre como avaliar “melhores consequências”. Podem divergir em dois níveis:

(1) Como avaliar o quão bem ou mal está cada indivíduo (isto é, sobre a teoria do bem-estar)

(2) Como avaliar  o quão boa ou ruim é uma situação que apresenta vários indivíduos.

Há muitos fatores possíveis de serem considerados em cada uma dessas avaliações. Vejamos alguns dos principais:

Fatores na avaliação do bem-estar de cada indivíduoFatores na avaliação do quão boa/ruim é uma situação com vários indivíduos
Experiências

Preferências

Bens objetivos  
Soma total agregada

Total negativo agregado

Média (soma/quantidade de indivíduos)

Nível de bem-estar mínimo

Nível de bem-estar máximo

Quantidade de indivíduos com bem-estar positivo

Quantidade de indivíduos com bem-estar suficiente

Soma total com maior peso a melhoras para quem está pior

Nível de desigualdade

Tipos de ações

Tipos de relações

Merecimento

As diversas teorias consequencialistas podem divergir:

(1) Quanto a qual ou quais desses fatores consideram importantes para tais avaliações;

(2) Quanto a qual peso cada um desses fatores deveria ter em tais avaliações.

Há muitas possibilidades de combinações, tanto em termos de quais desses fatores adotar/excluir quanto em termos do peso relativo dos fatores adotados. É por isso que há inúmeras possibilidades de teorias consequencialistas.

2.2. Um exemplo: consequencialismo de atos

As diferentes teorias consequencialistas também divergem quanto a qual deveria ser o foco do raciocínio moral: atos, regras ou traços de caráter. No presente item veremos um exemplo com o consequencialismo centrado em atos. No item 2.4. veremos exemplos dos outros tipos.

A despeito de se diferenciarem em termos de avaliar o quão boa ou ruim é uma situação, o que une todas as formas de consequencialismo de atos é que, em todas, é impossível que uma ação  seja correta e tenha um resultado pior do que outra opção disponível.

Importante: as teorias consequencialistas de atos prescrevem escolhermos a melhor opção dentre todas as opções disponíveis. Assim sendo, para uma ação ser correta nessas teorias não basta mostrar que ela tem resultados melhores do que outra (ou, do que outras): há que se mostrar que ela é a que tem melhores resultados, dentre todas as opções. Isso é assim porque a meta de toda teoria consequencialista é aumentar ao máximo aquilo que considera valioso (e minimizar ao máximo aquilo que considera desvalioso).

2.3. Consequencialismo é o mesmo que utilitarismo?

O utilitarismo[5] é a teoria consequencialista mais antiga e mais conhecida. Por essa razão, não é incomum que se confunda o utilitarismo com o consequencialismo como um todo. Porém, o consequencialismo é a categoria, e o utilitarismo é um dos elementos dessa categoria. Há muitas outras teorias consequencialistas.

Outra crença equivocada é a de que só existem duas teorias consequencialistas: o utilitarismo e o egoísmo. Segundo essa crença, o utilitarismo seria então a única teoria consequencialista que aceita a igual consideração de todos os afetados pela decisão. Isso também é equivocado. Há muitas outras teorias consequencialistas (ou que também possuem versões consequencialistas) que aceitam a igual consideração de todos os afetados pela decisão, como o prioritarismo[6], o igualitarismo[7], o suficientismo[8] etc.

As distintas variantes do utilitarismo diferenciam-se entre si em relação a muitos aspectos: (1) em relação aos fatores que consideram relevantes para o bem-estar dos indivíduos; (2) quanto a serem de atos, de regras etc.; (3) em relação ao peso que dão a evitar o que é negativo versus promover o que é positivo etc. Há muitas variantes.

O que é comum a todas variantes do utilitarismo é avaliarem o quão boa/ruim é uma situação que contém vários indivíduos unicamente a partir da soma agregada de bem-estar (seja da soma total, como na versão clássica, seja apenas da parte negativa ou, em certas variantes, da média). No utilitarismo todos os outros fatores são vistos como apenas indiretamente relevantes em termos de se aumentam ou diminuem a soma agregada..

Como o utilitarismo muitas vezes é confundido com o consequencialismo como um todo, não é incomum a crença de que o consequencialismo não pode enxergar outros fatores (como a igualdade na distribuição do bem-estar, merecimento, justiça, direitos etc.) como possuindo valor em si, muito menos como tendo peso maior do que a soma agregada. Não é incomum a crença de que isso só é possível para teorias não consequencialistas.

Isso é confundir um elemento com a categoria toda. O consequencialismo inclui o utilitarismo, mas é muito mais amplo. Por exemplo, o igualitarismo é uma teoria que possui versões consequencialistas. Essa visão avalia o quão boa/ruim é uma situação que contém vários indivíduos a partir de dois aspectos: maximização da soma e distribuição do total entre os indivíduos (e mantém que, por vezes, a distribuição deve ter peso maior do que a soma). Outros exemplo é o prioritarismo, que também busca maximizar a soma total agregada, mas para o qual uma unidade adicional de bem-estar possui maior valor quanto pior for a situação de quem o receberia.

Há muitas outros tipos de teorias consequencialistas pois, como vimos, há muitos fatores possíveis de serem considerados ao se avaliar o quão boa/ruim é uma situação, e também diferentes pesos possíveis de serem atribuídos a cada um desses fatores. Nesse outro texto há muitos exemplos de teorias desse tipo e são feitas comparações entre elas.

2.4. O foco deveriam ser atos, regras, ambas as coisas ou outra coisa?

Vimos que as teorias consequencialistas de atos mantêm que é impossível que devamos escolher um curso de ação e haja outro curso de ação disponível com melhores consequências. Uma crítica comumente feita ao consequencialismo de atos é que é muito difícil estimar os desdobramentos de consequências de cada ato. Quanto mais longo o tempo, mais difícil prever a probabilidade de o resultado das decisões ser este ou aquele (pois isso envolve muitos fatores dos quais não temos conhecimento, incluindo a reação de outros indivíduos à nossa decisão). Além disso, não temos tempo para fazer esse cálculo para cada ato.

Uma maneira de defender o consequencialismo de atos dessa crítica é defender que o melhor que podemos fazer é tentar estimar ao máximo os desdobramentos de consequências de cada curso de ação disponível e que, mesmo que seja uma aproximação grosseira, isso é ainda melhor do que não tentar fazer tais estimativas. É verdade que não temos tempo de fazer isso para todas as decisões (e tentar fazê-lo não teria boas consequências). Entretanto, é algo que podemos tentar fazer com nossas decisões mais cruciais.

Outra maneira de tentar contornar aquela crítica é abandonar o consequencialismo de atos e adotar alguma teoria consequencialista de regras[9]. Essas teorias defendem que, em vez de investigar quais cursos de ação tem as melhores consequências em cada ato, devemos imaginar quais regras gerais possuem as melhores consequências se forem seguidas por todos.

Assim, de acordo com as teorias consequencialistas de regras, é possível que uma ação seja a correta e outro curso de ação tenha consequências melhores, pois o que importa para o consequencialismo de regras são as consequências da adoção geral de uma regra, e não de cada ato.

Por exemplo, suponhamos que em determinada ocasião causar sofrimento a inocentes seja a única maneira de evitar o dobro de sofrimento a outros inocentes. De acordo com uma teoria consequencialista de atos, por ruim que seja, devemos causar o sofrimento aos inocentes, pois é a única maneira de evitar um mal duas vezes maior. Já de acordo com uma teoria consequencialista de regras, o que teríamos de fazer é imaginar se a regra “jamais causar sofrimento a inocentes” tem melhores ou piores consequências se for seguida por todos. Se tiver, então utilitarismo de regras condenaria causar sofrimento a inocentes, mesmo se, nessa ocasião especificamente, as consequências de seguir essa regra seriam piores. 

Uma crítica feita ao consequencialismo de regras é que ele implica em obedecer as regras mesmo quando cumpri-las resultar em piores consequências em certa ocasião. O que a crítica aponta é que essa não é então uma verdadeira forma de consequencialismo, pois o mundo resultante de sua adoção não teria consequências tão boas.

Uma maneira de tentar contornar as dificuldades do consequencialismo de atos e de regras é o consequencialismo de dois níveis[10], que em determinados contextos aplica o de regras e, em outros, o de atos. Segundo essa abordagem, no dia-a-dia, quando não temos tempo de refletir profundamente, devemos aplicar as regras que parecem ter boas consequências no geral (esse é chamado o nível intuitivo do raciocínio moral); já quando temos tempo de refletir profundamente, devemos aplicar o consequencialismo de atos e, se for necessário, violar as regras que percebemos que, em certa ocasião, não conduzem às melhores consequências (esse é chamado de nível crítico do raciocínio moral)..

A discussão sobre se as teorias consequencialistas deveriam focar em atos, regras ou ambos é uma discussão sobre qual deveria ser o ponto focal do raciocínio moral. Há outros pontos focais possíveis. Por exemplo, há teorias consequencialistas centradas no caráter[11]. Para essas teorias, o mais importante é avaliar quais traços de caráter, se cultivados, resultariam nas melhores consequências (e não, quais atos ou regras trariam as melhores consequências).

As teorias consequencialistas de regras não devem ser confundidas com as teorias deontológicas (que também são focadas em regras). Igualmente, as teorias consequencialistas centradas no caráter não devem ser confundidas as teorias de virtudes (que também são centradas no caráter). Veremos as teorias deontológicas no item 3 e as de virtudes no item 4.

3. Deontologia

3.1. Restrições deontológicas: o que são e exemplos

Em contraste às teorias consequencialistas, há as teorias deontológicas[12]. O que é comum a todas as teorias deontológicas é manterem que a ação correta nem sempre coincide com a que resulta nas melhores consequências (seja lá de que maneira estivermos a medir “melhores consequências”). Nesse sentido, diferenciam-se das teorias consequencialistas de atos.

As teorias deontológicas trabalham com a noção de restrições (em inglês, constraints) à busca pela melhor situação. Essas restrições podem ser proibições ou requerimentos. As teorias deontológicas defendem que não devemos violar essas restrições, mesmo que, respeitando-as, o resultado seja pior do que aquele decorrente de violá-las. Ou seja, são também teorias centradas no cumprimento de regras. Entretanto, diferentemente do consequencialismo de regras, essas regras são adotadas pelas teorias deontológicas não por se acreditar que elas resultam nas melhores consequências caso sejam seguidas por todos, e sim por outros motivos (por exemplo, por elas passarem em algum teste de universalizabilidade ou imparcialidade).

Cada teoria deontológica estabelece um conjunto diferente de restrições. Dentre as restrições mais comuns, estão: não violar direitos; não ferir inocentes; agir de acordo com o que cada um merece; não mentir; cumprir promessas; cumprir obrigações especiais (por exemplo, para com entes queridos ou obrigações profissionais); cumprir obrigações para consigo etc.

Algumas teorias deontológicas defendem que temos maior responsabilidade por atos do que por omissões. Outras defendem que, para termos a obrigação de evitar um ato com consequências negativas, é preciso pretender essas consequências. Já outras defendem que se uma exigência estiver acima de certo limite em termos de dificuldade, cumpri-la é opcional. Outras, por sua vez, defendem que certos atos são opcionais mesmo que não seja difícil cumpri-los, e assim por diante.

Em resumo, o que caracteriza as teorias deontológicas é inserirem fatores para determinar a ação correta que não tem a ver com avaliar o quão boa ou ruim é o resultado da decisão.

3.2. Restrições deontológicas: relativas ao agente e ao momento da decisão

As restrições deontológicas referem-se ao agente e ao momento em que toma sua decisão Isto é, não dependem de como sua decisão influenciará outros agentes a tomarem decisões, nem de como influenciará suas próprias tomadas de decisão futuras. Isso não significa que os deontologistas não se preocupam em buscar melhores consequências. Significa que essa preocupação se mantém apenas quando fazê-lo não violar determinada restrição.

Por exemplo, suponhamos que tenhamos que escolher entre os cursos de ação C1, C2 e C3, e que C3 possui os melhores resultados. Um consequencialista dirá que a ação correta é adotar C3. Um deontologista dirá que a ação correta é adotar C3, desde que não existam restrições relativas ao agente e ao momento da decisão que seriam violadas pela adoção de C3.

Vejamos um exemplo. Em condições normais, tanto consequencialistas quanto deontologistas defendem que não devemos causar sofrimento a inocentes. Entretanto, imaginemos o seguinte dilema: ou causamos sofrimento a um inocente, ou ele sofrerá em dobro pelas mãos de outros agentes (e não há outra maneira de evitar o sofrimento maior).

O consequencialista dirá que, nessa situação, por ruim que seja, devemos causar o sofrimento ao inocente pois, caso não o façamos, as consequências serão ainda piores. Agora, suponhamos uma teoria deontológica onde não causar sofrimento a inocentes for uma restrição relativa ao agente. Essa teoria dirá que não devemos causar sofrimento ao inocente, mesmo que isso resulte em mais sofrimento para tal inocente pelas mãos de outros agentes.

O mesmo aconteceria se o dilema fosse o seguinte: se não causarmos certo sofrimento a inocentes hoje, teremos que nós mesmos causar o dobro de sofrimento a inocentes amanhã. Novamente, consequencialistas diriam que o correto é causar o sofrimento aos inocentes hoje (dado que isso, por ruim que seja, tem resultados menos ruins do que o sofrimento em dobro dos inocentes amanhã). Agora, imaginemos uma teoria deontológica onde não causar sofrimento a inocentes é uma restrição relativa ao momento. Essa teoria manterá que não devemos causar sofrimento aos inocentes hoje, mesmo que isso resulte em nós mesmos termos que causar o dobro de sofrimento a inocentes amanhã.

3.3. Restrições deontológicas: absolutas ou com limites

As restrições deontológicas podem ser vistas como absolutas, ou como se aplicando somente até certo ponto. Por exemplo, um deontologista que vê a restrição “não causar sofrimento a inocentes” como absoluta afirmaria que não deve causar sofrimento a um inocente hoje, mesmo que isso implique que o sofrimento de outros inocentes seja maximizado ao longo da história por toda a eternidade.

Por outro lado, se enxergasse essa restrição como moderada poderia admitir que, dependendo do quão ruins forem as consequências de se cumprir determinada restrição, pode ser correto violá-la. Por exemplo, poderia defender que não deve causar sofrimento a um inocente hoje mesmo que isso implique no sofrimento de dois ou mesmo dez inocentes amanhã, mas que haveria um número de inocentes a partir do qual o correto seria violar a restrição. Isso vale para qualquer outra restrição que mantiver (não mentir, cumprir promessas etc.): todas elas podem ser vistas como absolutas ou como se aplicando até certo ponto.

3.4. O consequencialismo é centrado nos resultados e a deontologia, nas ações?

Por vezes, é dito que a diferença entre consequencialismo e deontologia está em que o primeiro é centrado nos resultados e a última nas ações. Contudo, isso é equivocado, porque é possível que determinada teoria consequencialista mantenha que o valioso em si são certas ações (por exemplo, cumprir promessas ou respeitar direitos), e não os efeitos dessas.

Por essa razão, é possível uma teoria consequencialista que prescreva que a ação correta é buscar um mundo onde haja o máximo de ações desse tipo. Esses mesmos elementos (respeitar direitos, cumprir promessas, dizer a verdade etc.) normalmente aparecem em teorias deontológicas, mas aparecem como restrições relativas ao agente e ao momento da decisão, e não necessariamente como fatores para avaliar o quão boa ou ruim é a situação.

Vejamos um exemplo para ilustrar a diferença entre uma teoria consequencialista que valorizasse a ação de cumprir promessas como algo bom em si (e não porque fazê-lo contribui para outra coisa, como deixar as pessoas felizes) e uma teoria deontológica onde cumprir promessas fosse uma restrição relativa ao agente e ao momento de sua decisão.

Imagine a seguinte situação: se cumprimos certa promessa, isso influenciará outros agentes a descumprirem muitas promessas, e também impedirá a nós próprios de cumprirmos muitas outras promessas que fizemos. Uma teoria consequencialista que buscasse maximizar a quantidade de promessas cumpridas diria que a coisa certa a se fazer, nesse caso, é não cumprir a promessa em questão. Já uma teoria deontológica na qual cumprir promessas fosse uma restrição relativa ao agente e ao momento de sua decisão diria que, mesmo assim, a ação correta é cumprir a promessa nesse caso. Novamente, um deontologista absolutista diria que essa restrição não deve ser violada seja lá quantas promessas deixem de ser cumpridas por se respeitar a restrição. Já um deontologista moderado poderia admitir que há um certo número de promessas a partir do qual a restrição teria de ser suspensa.

O mesmo vale para direitos. Embora a maioria das teorias de direitos seja deontológica, há duas maneiras pelas quais uma teoria consequencialista poderia incorporar o respeito por direitos morais[13]: (1) ou como algo instrumentalmente positivo (pois conduziria a outras coisas que consideraria boas em si, como evitar prejuízos e proporcionar benefícios para os indivíduos); (2) ou como algo bom em si. A diferença seria que tais teorias buscariam maximizar a quantidade de direitos respeitados, enquanto que nas teorias deontológicas o respeito por direitos apareceriam como restrições relativas ao agente e ao momento da decisão (absolutos ou não, dependendo da variante).

Em resumo, a diferença principal entre consequencialismo e deontologia está em que as teorias deontológicas dão prioridade ao que o próprio agente fará (em comparação ao modo como os outros agentes serão influenciados a agir por conta de sua decisão) e ao momento em que a decisões acontece (em comparação às decisões futuras do próprio agente). As teorias consequencialistas, por outro lado, dão igual importância ao que o próprio agente ou outros agentes farão, e igual importância às decisões do momento presente e dos diversos momentos futuros, pois para essas teorias o que importa é o mundo resultante, e não, fatores relacionados ao agente.

4. Éticas centradas no caráter

Uma terceira categoria da ética normativa são as éticas centradas no caráter. A questão central para essas teorias não é “qual a ação correta?”, mas, “quais traços de caráter cultivar?”. Para essas teorias, ao decidir como viver, devemos considerar não o que tornaria o mundo um lugar melhor (como no consequencialismo) ou quais normas deveríamos obedecer (como na deontologia), mas, que tipo de agentes morais queremos ser. Defendem que a ética é mais sobre o tipo de pessoa que devemos ser, do que sobre o que devemos fazer. Essas teorias estabelecem modelos de traços de caráter que uma boa pessoa teria, e então defendem que, se cultivarmos esses traços, saberemos o que fazer na prática. Assim, ao avaliar como agir, de acordo com as éticas centradas no caráter, devemos perguntar: “o que um bom agente moral faria em tal situação?”.

Dois exemplos de éticas centradas no caráter são as éticas de virtudes[14] e a ética do cuidado[15]. Nas éticas de virtudes o objetivo é cultivar traços de caráter que tornem alguém virtuoso. Cada teoria de virtudes elabora listas com diferentes virtudes a serem cultivadas (por exemplo: justiça, generosidade, compaixão, racionalidade, imparcialidade, precaução, temperança, etc.). Essas teorias são diferentes do consequencialismo centrado no caráter, abordado no item 2.2. A principal diferença é a seguinte. Para o consequencialismo centrado no caráter, certas virtudes devem ser cultivadas porque resultam em melhores consequências. Já para a ética de virtudes, as virtudes devem ser valorizadas em si.

Por sua vez, a ética do cuidado, como o próprio nome sugere, defende que o principal traço de caráter que deveríamos cultivar é a predisposição de cuidar de indivíduos que são dependentes de nós, especialmente os que estão mais vulneráveis.

As éticas centradas no caráter geralmente enfatizam que esses traços precisam ser exercitados até que se tornem uma espécie de “segunda natureza”. Isto é, enfatizam que não basta ler e estudar sobre esses traços; é necessário treinar o seu exercício na prática e refletir sobre qual ou quais traços de caráter se aplicam a cada contexto (o que é chamado de sabedoria prática).

5. Em que medida essas teorias convergem/divergem?

Acima vimos as diferenças básicas entre as teorias consequencialistas, deontológicas e centradas no caráter. Normalmente o debate entre essas teorias é centrado nos pontos em que discordam. Fazer isso é importante para avaliarmos os diferentes fundamentos e implicações dessas teorias. Entretanto, frequentemente não é percebido que também há um grau de convergência grande essas teorias, apesar de haverem divergências.

Isto é, há muitas coisas nas quais tais teorias poderiam concordar, ainda que com fundamentos diferentes. Uma dessas coisas é a igual consideração para todos os seres sencientes. Isso é assim por duas razões. Em primeiro lugar, há argumentos a favor da igual consideração de todos os seres sencientes que, para serem aceitos, não é necessário se comprometer com uma teoria normativa específica nem com uma corrente específica de teoria normativa. Exemplos são o próprio princípio da igual consideração, o argumento da relevância, o argumento da imparcialidade e o argumento da sobreposição. Em segundo lugar, há argumentos específicos da vasta maioria das teorias da ética normativa contemporânea (seja lá de quais correntes forem), para se dar igual consideração a todos os seres sencientes. Você pode ver esses argumentos específicos aqui.

REFERÊNCIAS

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NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Para uma introdução à ética normativa, ver Kagan (1998).

[3] Para uma introdução às teorias normativas da decisão racional, ver Peterson (2017).

[4] Para uma introdução ao consequencialismo, ver Santos e Gontijo (2020).

[5] Exemplos de posições utilitaristas podem ser encontradas em Singer (2002 [1979]) e Matheny (2006).

[6] Para exemplos de prioritarismo, ver Parfit (1995) e Holtug (2007).

[7] Exemplos de posições igualitaristas podem ser encontrados em Gompertz (1997 [1824]), Faria (2014), Horta (2016)

[8] Ver, por exemplo, Crisp (2003).

[9] Sobre consequencialismo de regras, ver Hooker (2023).

[10] Ver, por exemplo, Hare (1981).

[11] Ver, por exemplo, Gier (2006).

[12] Exemplos de éticas deontológicas podem ser encontrados em Regan (1983), Pluhar (1995), Francione (2000), Franklin (2005), Korsgaard (2005).

[13] Sobre isso, ver Pettit (1988).

[14] Para exemplos de éticas de virtudes, ver Abbate (2014), Dombrowski (1985), Nobis (2002), Hursthouse (2006), Rollin (1981).

[15] Para um exemplo de ética do cuidado, ver Adams e Donovan (2014),


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.