O problema ético com a experimentação animal não é de lógica, mas de relevância

Luciano Carlos Cunha[1]

O seguinte argumento, atribuído ao filósofo Charles R. Magel, é frequentemente utilizado por defensores dos animais contra a experimentação animal:

“Pergunte para os vivisseccionistas por que eles experimentam em animais e eles responderão: ‘Porque os animais são como nós’. Pergunte aos vivisseccionistas por que é moralmente ‘OK’ experimentar em animais e eles responderão: ‘Porque animais não são como nós’. A Experimentação animal apoia-se em contradição de lógica[2]“.

Segundo entendo, esse não é um bom argumento. Isso não quer dizer que acredito que a experimentação animal esteja justificada, pois acredito que há vários outros bons argumentos contra ela. O que pretendo mostrar neste texto é que o problema ético com a experimentação animal não está em cometer uma contradição de lógica, e sim, em tratar de modo diferente casos que são similares nas propriedades eticamente relevantes. Vejamos:

Comecemos por observar que aquilo que o argumento afirma quanto à experimentação animal poderia ser dito igualmente da cultura de células, modelos computadorizados ou de qualquer outro método substitutivo ao uso de animais. Por exemplo:

“Pergunte para os defensores dos animais por que eles são a favor de testes em cultura de células e eles responderão: ‘Porque elas são como os seres sencientes’. Pergunte aos defensores dos animais por que é moralmente ‘OK’ experimentar em células e eles responderão: ‘Porque elas não são como os seres sencientes’. A defesa de métodos substitutivos ao uso de animais apoia-se em contradição de lógica”.

O erro de ambos os argumentos é não distinguir entre semelhanças fisiológicas e semelhanças nas propriedades moralmente relevantes. Dois seres podem ser semelhantes em um sentido mas não no outro.

Se nós remontarmos os dois argumentos, mas levando em conta essa distinção, podemos ver que o problema com a experimentação animal não é cometer uma contradição de lógica, e sim, assumir que os animais não humanos são diferentes dos humanos nas propriedades moralmente relevantes. Vejamos:

“Pergunte para os vivisseccionistas por que eles experimentam em animais e eles responderão: ‘Porque os animais são como nós fisiologicamente’. Pergunte aos vivisseccionistas por que é moralmente ‘OK’ experimentar em animais e eles responderão: ‘Porque animais não são como nós nas propriedades moralmente relevantes’”.

Agora podemos perceber que não há contradição de lógica. Isso não quer dizer que a experimentação animal está justificada. Pelo contrário. Provavelmente ambas as afirmações feitas pelos proponentes da experimentação animal são falsas. Por exemplo, vários autores tem apontado que diferenças na fisiologia entre espécies tornam cientificamente inadequado o modelo animal[3]. Entretanto, o problema maior é com a afirmação de que os animais não são como os humanos nas propriedades moralmente relevantes (e esse problema se manteria mesmo se não houvesse problema algum com a afirmação de que os animais são como os humanos fisiologicamente). Vejamos:

A razão pela qual humanos precisam de consideração moral não é porque pertencem à espécie humana, porque possuem uma série de capacidades, uma série de relações entre si etc. Precisam de consideração moral simplesmente porque são passíveis de serem prejudicados e beneficiados. Entretanto, isso mostra que todo ser senciente é similar no que é relevante para receber consideração moral, pois todo ser senciente é passível de ser prejudicado e beneficiado (uma vez que a senciência é o que torna alguém passível de experimentar sofrimento e prazer, por exemplo).

Agora considere a mesma adaptação no segundo argumento:

“Pergunte aos defensores dos animais por que são a favor de testes em cultura de células e responderão: ‘Porque elas são fisiologicamente como os seres sencientes’. Pergunte aos defensores dos animais por que é moralmente ‘OK’ experimentar em células e responderão: ‘Porque elas não são como os seres sencientes nas propriedades moralmente relevantes“.

Agora podemos ver que a posição dos defensores dos animais também não comete contradição de lógica e, mais importante, ela se apoia em premissas verdadeiras. Provavelmente os métodos substitutivos são muito mais semelhantes ao organismo dos beneficiários (seja lá de que espécie forem esses beneficiários) do que o modelo animal. Mas, mais importante: esses métodos substitutivos não são semelhantes aos seres sencientes nas propriedades moralmente relevantes pois, uma vez que não são sencientes, não são capazes de ser prejudicados ou beneficiados.


Notas

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Para uma citação desse argumento, ver Kemmerer, L (org.). Speaking Up for Animals: An Anthology of Women’s Voices. Abingdon: Routledge, 2015, p. 151. No original: Ask the experimenters why they experiment on animals and the answer is: Because the animals are like us. Ask the experimenters why it is morally okay to experiment on animals and the answer is: Because the animals are not like us. Animal experimentation rests on a logical contradiction.

[3] Ver, por exemplo, Lafollette, H. Shanks, N. Brute science: Dilemmas of animal experimentation. New York: Routledge, 1997.


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.