Luciano Carlos Cunha[1]
- 1. A tese da magnitude
- 2. O apelo a graus de status moral
- 3. É justo atribuir graus diferenciados de status moral?
1. A tese da magnitude
O princípio da igual consideração prescreve não sermos tendenciosos ao considerar o bem dos indivíduos afetados por nossas decisões. A igual consideração possui a seguinte implicação:
- Tese da Magnitude (TM): A força das razões para evitar prejudicar e para beneficiar alguém dependem da magnitude dos prejuízos e benefícios, e não da espécie dos afetados. Quanto maior o prejuízo/benefício, mais fortes essas razões.
Assim, de acordo com a TM, temos razões para priorizar evitar prejudicar ou beneficiar animais não humanos toda vez que fazê-lo implicar em evitar um prejuízo maior ou em proporcionar um benefício maior do que priorizar humanos.
2. O apelo a graus de status moral
A TM por vezes é rejeitada apelando-se à ideia de status especial:
- Tese do Status Especial (TS): Alguns indivíduos possuem um status especial que os intitula a serem priorizados mesmo quando seriam menos prejudicados se não fossem.
Segundo a TS, é como se certos indivíduos possuíssem uma carta trunfo. Normalmente esse trunfo é chamado de dignidade. Quanto a isso, podemos distinguir dois tipos de TS:
TS total: Se A tem o status especial e B não tem, a prioridade é de A, não importando o quão mais prejudicado B seria se não for priorizado.
TS com limite: Se A tem o status especial e B não tem, a prioridade é de A, exceto se o prejuízo para B estiver acima de certo limite*.
*As muitas variantes dessa posição estabelecem esse limite em pontos diferentes.
Seja lá se estivermos a falar da TS total ou da TS com limite, ambas rejeitam a TM, pois defendem que há pelo menos algumas circunstâncias onde devemos priorizar os indivíduos que seriam menos prejudicados caso não fossem priorizados.
Os seres que recebem um status especial na TS variam. O que é mais comum é defender que são os membros da espécie humana[2]. Entretanto, em outras vezes é defendido que não são todos os humanos, mas apenas os que possuem a capacidade de tomar decisões autônomas[3] (a grosso modo, seriam os humanos adultos normais).
Será justo atribuir graus diferenciados de status moral? Discutiremos isso a seguir.
3. É justo atribuir graus diferenciados de status moral?
Para avaliarmos se atribuir graus diferenciados de status moral é algo justo precisamos saber como avaliar se uma decisão é justa. Quanto a isso, uma visão amplamente aceita é a de que uma decisão é justa se for imparcial, no sentido de não ser tendenciosa. Mas, como sabemos se uma decisão é imparcial? Um método bastante utilizado consiste em imaginar se a aprovaríamos caso não soubéssemos que posição ocuparíamos entre os afetados por ela.
Um método desse tipo foi inicialmente proposto por John Harsanyi[4] em 1955, e um método bastante similar foi amplamente utilizado posteriormente na obra Uma Teoria da Justiça, de 1971, de John Rawls[5], influenciando muitos outros trabalhos posteriores.
O método consiste em imaginar agentes racionais e autointeressados que visam maximizar o seu próprio bem-estar, mas não nasceram ainda no mundo em que viverão. Essa é a chamada posição original. Nela, esses agentes precisam decidir quais princípios morais e políticos vigorarão nesse mundo futuro. Entretanto, precisam decidir por trás de um véu da ignorância, onde não sabem quais características terão depois de nascerem. Não saberão sua raça; gênero; nacionalidade; se nascerão em famílias ricas ou pobres; se nascerão saudáveis ou com alguma doença; quais talentos ou dificuldades terão etc. Em resumo, por trás do véu da ignorância não podemos saber nada sobre fatores que dependem da sorte e do azar.
A ideia básica é a de que aquilo que agentes racionais autointeressados considerassem justo/injusto sob tais condições seria, de fato, justo/injusto.
Por vezes é defendido que o experimento do véu da ignorância não é aplicável às nossas decisões que afetam os animais não humanos ou aos humanos que não possuem um senso de justiça (como os bebês, as crianças até certa idade, e adultos vítimas de certas doenças ou acidentes que afetam as capacidades cognitivas). O próprio Rawls pensava assim. Ele acreditava que só faz sentido proteger com princípios de justiça os seres que têm um senso de justiça[6] (pois isso é necessário para decidir com base no véu da ignorância). Entretanto, esse raciocínio só faria sentido se, para alguém ser injustiçado, fosse necessário também ter um senso de justiça. Porém, o exemplo a seguir sugere que seres sem um senso de justiça também são passíveis de serem injustiçados. Vejamos:
Imagine que uma bebê tenha nascido com uma doença que a impedirá durante toda a vida de desenvolver um senso de justiça. Imagine que, por isso, ela recebe menos comida do que os outros bebês em um berçário. O fato de que ela não tem agora (nem nunca terá) um senso de justiça não faz com que o tratamento que recebeu deixe de ser injusto. É injusto simplesmente pelo fato de o seu bem-estar receber um peso menor com base em um fator arbitrário, que é resultado da loteria natural, e que não diminui o prejuízo que ela sofre por receber menos comida. É claro que, para alguém ser responsabilizado caso cometa uma injustiça, precisa ter um senso de justiça. Mas, esse exemplo parece mostrar que não é necessário ter um senso de justiça para se sofrer uma injustiça. Se é assim, então a alegada falta de senso de justiça nos animais não humanos não pode justificar deixar de aplicarmos o método do véu da ignorância para as nossas decisões que os afetam.
Outra objeção à aplicação do véu da ignorância para nossas decisões que afetam animais não humanos foi levantada por Peter Carruthers. Ele argumentou que, se os agentes estão raciocinando com base no véu da ignorância, então podem presumir que serão humanos depois que o véu for levantado, pois os animais não são capazes disso[7]. Entretanto, como observaram Donald VanDeVeer[8] e Richard Ryder[9], os agentes na posição original também sabem que são capazes de entender e argumentar sobre princípios morais e políticos muito complexos, mas isso não quer dizer que na posição original podem presumir que manteriam esse altíssimo nível de racionalidade depois que o véu fosse levantado pois, se pudessem, ficariam tentados a favorecer tendenciosamente os indivíduos mais racionais. Assim, se na posição original os agentes não podem assumir que serão altamente racionais depois que o véu for levantado, então não faz sentido manter que podem saber a que espécie pertenceriam ou que teriam capacidades cognitivas complexas.
Mark Rowlands[10] observou que um dos objetivos do véu da ignorância é descartar as vantagens e desvantagens não merecidas, que são resultado da loteria natural, como as características com as quais se nasce. É exatamente por isso que o véu da ignorância exclui o conhecimento das propriedades naturais que alguém teria. Entretanto, o pertencimento a uma espécie, como todas as outras propriedades naturais, é um resultado não merecido da loteria natural e, portanto, os benefícios e prejuízos que dela resultam também não são merecidos. É por isso, conclui Rowlands, que o conhecimento sobre a qual espécie pertenceremos deve ser excluído na posição original. Exatamente pela mesma razão deve ser excluído na posição original o conhecimento de que somos capazes de autonomia. A verdadeira justiça precisa levar em conta todos os que podem ser afetados por nossas decisões, e não apenas os humanos ou apenas os seres que também possuem um senso de justiça.
Assim, apliquemos o método do véu da ignorância às alegações de que todos os membros da espécie humana (ou, de que apenas os humanos capazes de autonomia) devem ter um status superior. Para testarmos se essas posições passam no teste da imparcialidade, temos de perguntar:
(1) Consideraríamos justo dar um status superior para humanos se soubéssemos que poderíamos nascer como membros de qualquer outra espécie?
(2) Consideraríamos justo dar um status superior para seres capazes de autonomia se soubéssemos que poderíamos nascer sem essa capacidade?
Parece que agentes racionais e autointeressados certamente rejeitariam tais status superiores, dada a possibilidade de, depois que o véu fosse levantado, descobrirem que não são humanos ou que são humanos incapazes de autonomia. E, quanto maior fosse essa possibilidade, parece que mais veementemente rejeitariam.
No mundo real, essa possibilidade seria gigantesca, haja vista que a quantidade de animais não humanos é astronomicamente maior do que a quantidade de humanos. A população humana gira em torno de 8 bilhões de indivíduos. De acordo com algumas estimativas, em um dado momento há algo entre 1 e 10 quintilhões de animais não humanos sencientes[11] no planeta. Essa diferença de tamanho é tão astronômica que é difícil visualizá-la. Entretanto, um exemplo ajudará a entender. Se fizermos uma analogia com o período de um ano, a população humana representaria no máximo 0,25 segundos do ano. Todo o restante do ano seriam os animais não humanos. Assim, depois que o véu fosse levantado, muito provavelmente descobriríamos que fomos sorteados para nascer como animais não humanos. As chances de sermos humanos seria, na melhor das hipóteses de 1 para 125 milhões (e as chances de sermos humanos que um dia desenvolverão autonomia seriam ainda menores).
Isso sugere que a ideia de um status moral superior para membros da espécie humana ou para portadores de autonomia está fundada:
(1) Em autointeresse (pois sabemos que, no mundo real, não somos animais não humanos ou humanos incapazes de autonomia)
(2) Na crença equivocada de que nós mesmos não poderíamos ser desfavorecidos por isso (cada um de nós, por conta de doença ou acidente, pode vir a deixar de ter a autonomia).
Isso tudo parece mostrar que um status privilegiado para humanos ou para seres capazes de autonomia só é defendido porque seus defensores fazem parte do grupo privilegiado. De um ponto de vista imparcial, consideraríamos tais coisas extremamente injustas. Talvez até mesmo as considerássemos como o cúmulo da arbitrariedade. Se é assim, então a ideia de status moral diferenciado é ela mesma completamente injusta[12].
REFERÊNCIAS
CARRUTHERS, P. Against the moral standing of animals. University of Maryland, 2011.
DIAMOND, C. The Importance of Being Human. In: COCKBURN, D. (org.). Human Beings. Suplemento de Philosophy,v. 29. Cambridge: Royal Institute of Philosophy, 1991, p. 35-62.
GAITA, R. The philosopher’s dog: Friendships with animals. London: Routledge, 2003.
HARSANYI, J. Cardinal welfare, individualistic ethics, and interpersonal compa- risons of utility. Journal of Political Economy, v. 63, p. 309-321, 1955.
HORTA, O. Why the Concept of Moral Status Should Be Abandoned. Ethical Theory and Moral Practice, [s.l.], v. 20, p. 899-910, 2017.
MCMAHAN, J. The Ethics of Killing: Problems at the Margins of Life. Oxford: Oxford University Press, 2002.
NATIONAL MUSEUM OF NATURAL HISTORY & SMITHSONIAN INSTITUTION. Numbers of insects (species and individuals). Encyclopedia Smithsonian, 2008.
POSNER, R. Animal rights: Legal, philosophical and pragmatical perspectives. In: SUNSTEIN, C.; NUSSBAUM, M. (orgs.). Animal rights: Current debates and new directions. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 51-77.
RAWLS, J. A Theory of Justice. Revised Edition. Harvard: Harvard University Press, 1999 [1971].
ROWLANDS, M. Animal rights: Moral, theory and practice. 2. ed. New York: Palgrave Macmillan, 2009 [1998].
RYDER, R. D. Animal revolution: Changing attitudes towards speciesism, Oxford: Basil Blackwell, 2000. p. 217.
TOMASIK, B. How Many Animals are There? Essays on Reducing Suffering, 07 ago. 2019.
VANDEVEER, D. Of beasts, persons and the original position. The Monist, v. 62, p. 368-377, 1979.
Notas
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Ver, por exemplo, as posições de Diamond (1991); Gaita (2003) e Posner (2004).
[3] Ver, por exemplo, a posição de McMahan (2002, p. 242-5, 265).
[4] Ver Harsanyi (1955).
[5] Ver Rawls (1999 [1971]).
[6] Rawls (1999 [1971], p. 448).
[7] Carruthers (2011).
[8] VanDeVeer (1979).
[9] Ryder (2000, p. 217).
[10] Rowlands (2009 [1998], p. 118-175).
[11] Ver National Museum of Natural History & Smithsonian Institution (2008) e Tomasik (2019).
[12] Para uma defesa detalhada de que a ideia de status moral diferenciado deve ser abandonada, ver Horta (2017).
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.
