Raciocínio motivado e sua influência na avaliação dos argumentos

Luciano Carlos Cunha[1]

Sumário:

1. Introdução

Há alegações que são muito presentes em todo e qualquer debate sobre a consideração moral dos animais. Considere por exemplo afirmações como “as plantas também  sentem” e “qualquer coisa que façamos para ajudar os animais que estão na natureza só vai tornar as coisas piores“. Essas afirmações são frequentemente mencionadas como tentativa de justificar, respectivamente, matar animais para comer e não ajudar os animais que estão na natureza.

No restante do texto utilizaremos essas duas alegações como exemplo, mas é importante lembrar que o que será dito aqui se aplica às atitudes das pessoas na hora de oferecerem e avaliarem argumentos em geral, e não apenas nesses casos.

2. Por que as pessoas têm níveis de rigor diferentes ao avaliarem argumentos?

Algumas pessoas realmente acreditam naquelas duas alegações. Entretanto, elas geralmente não investigam se tais alegações são ou não verdadeiras e, nas raras vezes em que investigam, tendem a fazer uma análise influenciada por raciocínio motivado e  pelo viés de confirmação.

O raciocínio motivado nos induz a avaliarmos as questões de maneira enviesada, buscando confirmar a crença que já tínhamos antes, em vez de tentar descobrir a verdade. O raciocínio motivado produz um viés de confirmação, que consiste em reparar ou dar maior peso às informações que confirmam nossa crença inicial e em não reparar ou dar menor peso às que mostram que ela é equivocada.

Outro efeito do raciocínio motivado e do viés de confirmação é o fato de as pessoas avaliarem de modo muito menos rigoroso os argumentos que confirmam suas crenças iniciais.

Por exemplo, se alguém gosta de consumir produtos decorrentes da exploração animal, pode ficar tentada a aceitar qualquer argumento, por pior que seja, que pretenda justificar a exploração animal. Da mesma maneira, se alguém tem uma reação inicial contrária à proposta de ajudar os animais selvagens, pode ficar tentada a aceitar qualquer argumento, por pior que seja, que pretenda fundamentar que devemos deixar a natureza seguir o seu curso.

Importante: Esse viés (assim como qualquer outro viés) pode afetar todas as pessoas, incluindo filósofos especialistas em ética.

3. As pessoas sempre acreditam nas objeções que levantam?

Agora, discutiremos outra possibilidade que geralmente não é levada em conta: a pessoa não acreditar na afirmação que faz, mas a oferecer como uma desculpa para suas crenças e atitudes. Dependendo do caso, isso pode acontecer por motivos diversos. A seguir estão algumas possibilidades.

(1) Auto engano. Uma possibilidade é a pessoa pretender se auto enganar. Ela mesma não acredita nas alegações que faz, mas as repete para si própria porque não quer aceitar a verdade ou porque não quer mudar um comportamento, e se sente mal por pensar que está fazendo algo errado. 

(2) Tentativa enganar o interlocutor. Outra possibilidade é a pessoa não acreditar na justificativa que oferece, mas acreditar que seus interlocutores a aceitarão (ou que, pelo menos, terão trabalho em refutá-la). Por exemplo, alguém pode pensar que os interlocutores não são inteligentes o bastante para perceber os problemas com o argumento que ela oferece e que, desse modo, ela vai enganá-los.

(3) Tentativa de fingimento mútuo. Outra possibilidade é alguém saber que os interlocutores vão perceber os problemas com o argumento que oferece, mas perceber também que os interlocutores concordam com a conclusão que ela irá defender, mesmo que não tenham uma boa razão para aceitarem tal conclusão. A pessoa então oferece tal justificativa na esperança de que todos finjam que a justificativa é boa, pois assim ninguém precisa mudar suas crenças ou atitudes.

De fato, esse terceiro caso é muito comum. O fato de muitas pessoas repetirem um argumento ruim torna mais difícil que o restante das pessoas percebam os problemas com o argumento. Da mesma maneira, o fato de muitas pessoas repetirem uma informação falsa torna mais difícil que pensemos na possibilidade de a informação não ser verdadeira. Por conta do viés de autoridade, esse efeito possui mais força se as pessoas que repetem o argumento ruim ou a informação falsa são especialistas na área em questão.

Um viés relacionado a isso é a cascata de disponibilidade, que ocorre quando uma crença coletiva ganha cada vez mais aceitação por meio da sua crescente repetição no discurso público, mesmo que não seja plausível. Quanto mais tempo a crença é repetida, mais difícil desafiá-la.

Isso tudo parece ser pelo menos uma parte da explicação do porquê as pessoas em geral, incluindo especialistas no meio acadêmico, raramente analisam as tentativas de justificar o especismo e os argumentos contra a proposta de ajudar os animais selvagens com o mesmo rigor que analisam os argumentos na direção oposta.


Notas:

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.