Como a causa animal se sai quanto aos critérios de prioridade?

Luciano Carlos Cunha[1]

Sumário:

1. Introdução

Os defensores dos animais são frequentemente criticados por lutarem pelos animais enquanto há ainda humanos necessitando de ajuda. Entretanto, se nosso objetivo é um mundo com menos sofrimento, não faz sentido levar em conta apenas os humanos, ou dar um peso menor aos animais não humanos, pois caso o façamos, não seremos o mais eficiente que poderíamos em diminuir sofrimento (pelo contrário, é provável que o aumentemos ainda mais).

Devido à predominância do especismo, a maioria das pessoas, quando escolhe apoiar uma causa, opta por causas humanas. Entretanto, se aplicarmos de modo não tendencioso os critérios amplamente utilizados para determinar o grau de prioridade de uma causa , parece impossível evitar a conclusão de que a causa animal deveria ser uma de nossas maiores prioridades. Para exemplificar esse ponto, a seguir veremos como a situação dos animais não humanos se sai perante esses critérios.

2. Gravidade da situação de cada vítima

A vasta maioria dos animais não humanos nasce, ou na exploração animal, ou na natureza. Em ambos os casos, a norma é terem vidas repletas de sofrimento (em boa parte dos casos sem nenhuma experiência positiva). Além disso, na vasta maioria dos casos eles têm uma morte bastante prematura, geralmente extremamente dolorosa. É claro, existem humanos que têm vidas repletas de sofrimento, morrem prematuramente e têm mortes muito dolorosas. Entretanto, não padecem normalmente de um destino equivalente ao dos animais nas granjas industriais ou na natureza.

3. Quantidade de vítimas

Contabilizando as mortes de vertebrados e invertebrados, terrestres e aquáticos, a exploração animal mata entre 34 e 54 trilhões de animais anualmente[2]. Importante: esse número diz respeito somente às mortes de animais em decorrência de sua exploração. Não estão computadas as que são resultado indireto de atividades humanas nem de processos naturais.

Para efeito de comparação, considere que as mortes de humanos (somando-se todas as causas, incluindo causas naturais) é estimada em 55,3 milhões anualmente[3]. A diferença entre esses números é tão gigantesca que pode ser difícil visualizá-la. Para efeito de argumentação, deixemos de lado a quantidade de invertebrados mortos e computemos apenas a quantidade de peixes, aves e mamíferos mortos anualmente: “apenas” cerca de 2 trilhões[4]. Só essa quantia já significa que na exploração animal por dia são mortos em torno de 5,5 bilhões de vertebrados (compare esse número com a população humana mundial, que é 8 bilhões). Se incluirmos os invertebrados, algo entre 93 bilhões e 147 bilhões de animais são mortos por dia.

Além disso, quantidades literalmente astronômicas de animais que vivem fora do controle direto humano (como os que vivem na natureza) possuem vidas repletas de sofrimento e morrem prematuramente já por conta dos próprios processos naturais. Não há estatísticas sobre essa quantidade de vítimas, mas de acordo com algumas estimativas, em um dado momento, haveria entre 1 e 10 quintilhões de animais sencientes na natureza[5]. Isso significa que, se compararmos a população de animais não humanos com a população humana em um dado momento, e fizermos uma analogia com o período de um ano, a população humana representaria no máximo 0,25 segundos do ano.

4. Há tantas vítimas que até especistas teriam que priorizar a causa animal

Esses números são tão vastos que, mesmo se fosse dado um peso muito maior ao bem dos humanos, curiosamente, ainda teríamos que concluir por priorizar tentar mudar a situação dos animais não humanos. Vejamos por quê:

Suponhamos que um sofrimento de mesma magnitude importasse 10 vezes mais se as vítimas forem humanas. Isso significaria que, para investirmos em ajudar animais não humanos a mesma quantia de recursos que investiríamos em ajudar humanos, teria de haver 10 vezes mais animais não humanos sofrendo o equivalente (ou então, quantidades iguais de humanos e de não humanos sofrendo, mas com os animais não humanos sofrendo 10 vezes mais).

Suponhamos agora que a quantidade anual de animais não humanos que passasse por uma situação do sofrimento extremo fosse muito menor do que realmente é: suponhamos que fosse “apenas” um trilhão indivíduos. Imaginemos que a quantidade anual de humanos padecendo de um sofrimento equivalente àquele do qual padecem os animais não humanos fosse muito maior do que realmente é: suponhamos fosse o total da população humana (isto é 8 bilhões de indivíduos). Se o sofrimento humano importasse 10 vezes mais do que o sofrimento equivalente de animais não humanos, então, o sofrimento dos 8 bilhões de humanos seria multiplicado por 10 (isto é, equivaleria ao sofrimento de 80 bilhões de animais não humanos). O sofrimento de cada animal não humano, por sua vez, seria multiplicado por 1 (isto é, 1 trilhão). Mesmo fazendo todas essas concessões, ainda teríamos de investir 12,5 vezes mais recursos em ajudar os animais não humanos.

Se levarmos em conta os números reais, a proporção é astronomicamente maior. A população mundial de humanos gira em torno de 8 bilhões. Já a população mundial de animais não humanos sencientes gira em torno de 1 a 10 quintilhões[6]. Isto é, para cada humano existe algo entre 126 milhões a 1,26 bilhões de animais não humanos sencientes. Para se negar a prioridade de melhorar a situação dos animais não humanos teria que ser postulado que o sofrimento humano importa pelo menos 126 milhões de vezes mais do que o sofrimento equivalente de animais não humanos. De um ponto de vista não tendencioso, não há sequer justificativa para se dar um peso levemente maior ao bem dos humanos, muito menos para uma discrepância desse nível.

5. Quantas pessoas já se importam com essa questão?

A quantidade de pessoas se dedicando a cada causa e os recursos arrecadados não são proporcionais à quantidade de vítimas que cada causa lida.

Por exemplo, de todas as doações feitas nos Estados Unidos, 97% do montante arrecadado vai para causas humanas[7]. Os outros 3% vão para causas ambientalistas e de defesa animal (e não se sabe o quanto desses 3% vai para a causa animal).

Mesmo entre as pessoas que costumam doar para a causa animal, em média mais de dois terços de suas doações vão para causas humanas[8]. Além disso, uma parte dos recursos destinados às causas humanas são utilizados na compra de produtos da exploração animal, o que contribui para o aumento da quantidade de animais que sofrem e morrem.

Assim, não é apenas que os outros animais recebem menos ajuda do que recebem os humanos: na vasta maioria dos casos não recebem ajuda alguma e, além disso, são usados como se fossem coisas, o que implica normalmente em suas mortes e em uma vida de sofrimento extremo..

Quanto mais negligenciada uma causa, mais diferença faz cada pessoa adicional trabalhando nela. Assim, se nosso objetivo é tornar o mundo menos ruim de forma eficiente, então o fato de a causa animal ser amplamente negligenciada (apesar da enorme quantidade de vítimas e da terrível situação das vítimas) é uma razão adicional para a priorizarmos.

6. Quantidade de benefício que poderia ser causado

Poder-se-ia pensar que não há nada que se possa fazer para mudar a situação dos animais não humanos e que, então, o fato de eles representarem uma quantidade astronômica de vítimas não diz nada em termos de prioridade, se não há nada que possamos fazer para ajudar a maioria delas. Mas, há muitas coisas que podemos fazer pelos animais não humanos, e nossas decisões afetam uma grande quantidade deles. Vejamos algumas delas:

(1) Em relação aos animais explorados é possível escolher não consumi-los, reduzindo assim a demanda por produtos de origem animal e a quantidade de animais que nasceria para uma vida de sofrimento.

(2) Também é possível reivindicar mudanças de atitude no público e na legislação com a meta de reconhecer os animais como seres sencientes que deveriam ser protegidos com direitos[9].

(3) Também há várias maneiras pelas quais os animais selvagens já vêm sendo ajudados, e muito mais poderia ser pesquisado nesse sentido. Estudos desse tipo poderiam contribuir muito para aumentar a eficiência no uso de recursos para diminuir o sofrimento. Por exemplo, poderiam ser conduzidos estudos sobre o impacto de cada tipo de vegetação nas taxas de nascimentos nas espécies daqueles animais que tendem a ter vidas predominantemente negativas ou positivas. Isso poderia evitar que, literalmente, quantidades astronômicas de animais chegassem a nascer apenas para experimentar sofrimento extremo.

7. Conclusão

Se a análise acima estiver correta, a causa animal cumpre muito bem todos os critérios de prioridade. A predominância de uma mentalidade especista é o que faz com que ela não receba a importância que merece.

Entretanto, duas questões permanecem:

(1) A causa animal lida com vários problemas diferentes. Quais priorizar?

(2) Existem outros tópicos que cumprem tão bem quanto (ou talvez, ainda mais) os critérios de prioridade, que até mesmo ativistas da causa animal costumam não perceber?

A primeira questão é discutida aqui . A segunda é discutida aqui.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, J. Donation Preferences and Attitudes Among People Who Donate to Animal Causes. Faunalytics, 14 nov. 2018.

FISHCOUNT. Fishcount estimates of numbers of individuals killed in (FAO) reported fishery production. Fishcount: Reducing suffering in fisheries, 2019.

KATEMAN, B. The Environment And Animals Deserve More Than Just 3% Of Our Charitable Giving. Forbes, 23 nov. 2021.

NATIONAL MUSEUM OF NATURAL HISTORY & SMITHSONIAN INSTITUTION. Numbers of insects (species and individuals). Encyclopedia Smithsonian, 2008.

OUR WORLD IN DATA. Number of animals slaughtered for meat, World, 1961 to 2018. Our world in data, [s.l.], 2018.

REESE, J. Summary of Evidence for Foundational Questions in Effective Animal Advocacy. Sentience Institute. 24 dez. 2019.

ROWE, A. Insects raised for food and feed — global scale, practices, and policy. Rethink priorities, 29 jun. 2020b.

ROWE, A. Global cochineal production: scale, welfare concerns, and potential interventions. Effective altruism forum, 11 fev. 2020a.

ROWE, A. Silk production: global scale and animal welfare issues. Rethink priorities, 19 abr. 2021.

SANDERS, B. Global Animal Slaughter Statistics And Charts. Faunalytics, 10 out. 2018.

SCHUKRAFT, J. Managed honey bee welfare: problems and potential interventions. Rethink priorities, 14 nov. 2019.

TOMASIK, B. How Many Animals are There? Essays on Reducing Suffering, 07 ago. 2019.

WALDHORN, D. AUTRIC, E. Shrimp: The animals most commonly used and killed for food production. Rethink Priorities, 11 ago. 2023.


Notas

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Somente a quantidade de camarões pescados diretamente no mar já gira em torno de 25 trilhões ao ano (WALDHORN e AUTRIC, 2023). Para estatísticas sobre a exploração de invertebrados terrestres, ver Schukraft (2019) e Rowe (2020, 2021a, 2021b). Sobre a exploração de vertebrados e invertebrados aquáticos, ver Waldhorn e Autric (2023) e Fishcount (2019). Sobre vertebrados terrestres, ver Our World in Data (2018) e  Sanders (2018).

[3] Estatísticas disponíveis em: https://www.worldometers.info/. Acesso em: 26 out. 2022.

[4] Estatísticas disponíveis em Our World in Data (2018) e Fishcount (2019).

[5] Ver National Museum of Natural History & Smithsonian Institution (2008) e Tomasik (2019a).

[6] Ver Tomasik (2019).

[7] Kateman (2021).

[8] Anderson (2018, p. 9).

[9] Para um resumo das razões favoráveis e contrárias a diversas estratégias possíveis para a causa animal, ver Reese (2019).


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.