Tentativas de justificar o especismo que apelam a autoridades (religiosas ou não)

Luciano Carlos Cunha[1]

Um padrão duplo de moralidade

O bem dos animais não humanos geralmente não recebe grande importância. Por exemplo, ao redor do mundo, os animais não humanos são explorados para os mais diferentes propósitos. Na vasta maioria dos casos, isso envolve matá-los, depois de uma vida repleta de sofrimento intenso. Outro exemplo: quando os animais selvagens são vítimas de processos naturais, como fome, sede, doenças e desastres naturais, a visão padrão é a de que não deveríamos ajudá-los: “devemos deixar a natureza seguir o seu curso”.

Entretanto, em ambos os casos, se as vítimas fossem humanas, a atitude padrão seria a oposta. Isso mostra que a maioria das pessoas adota dois pesos e duas medidas, dependendo da espécie dos afetados por suas decisões. Esse padrão é antropocêntrico: se são humanos, são respeitados e ajudados; se são animais não humanos, não são.

Várias tem sido as tentativas de justificar esse padrão antropocêntrico de moralidade. Neste texto, discutiremos uma em especial: a alegação de que esse padrão está justificado porque alguma autoridade moral o aprova.

O apelo a autoridades

A seguir, daremos exemplos com tentativas de defender o consumo de animais. Entretanto, é importante lembrar que tudo o que for dito aqui vale igualmente para o apelo a autoridades morais na tentativa de defender qualquer outra prática ou atitude.

Frequentemente, é afirmado que o consumo de animais está justificado porque, alegadamente, alguma autoridade moral o aprovou. Por exemplo, geralmente é citado que a Bíblia aprova o consumo de animais, e que Jesus comia peixes. Em outras vezes apela-se a outros tipos de autoridade moral (não necessariamente vinculados a alguma religião). Em resumo, o padrão desses argumentos é o seguinte: “determinada autoridade moral aprovava certa prática; logo, a prática em questão está justificada”.

Como não responder

Por vezes, algumas pessoas tentam contestar esse tipo de argumento negando que a autoridade em questão aprovava o consumo de animais. Entretanto, essa forma de contestar não aborda o problema principal do argumento (na verdade, também o assume), que é o próprio apelo a autoridades em debates sobre questões éticas. Vejamos:

O dilema de Eutífron

Platão, 399 anos antes de Cristo, já havia percebido os problemas com esse tipo de argumentação (então, provavelmente, apelos à autoridades morais já eram bastante comuns naquela época). O principal problema é ilustrado por Platão no diálogo intitulado Eutífron[2], que ficou por isso conhecido como Dilema de Eutífron.

Basicamente, o dilema consiste em perguntar o seguinte: “Uma autoridade aprova determinada prática porque a prática em questão é certa, ou ela se torna certa porque foi aprovado pela autoridade?”. Isso mostra um grave problema com os apelos a autoridades morais, seja lá que resposta alguém dê a esse dilema. Vejamos:

As possíveis respostas ao dilema não dão suporte ao apelo à autoridade

Suponhamos que alguém afirme que é o segundo caso (a prática se torna certa porque foi aprovada pela autoridade). Se for assim, então a autoridade em questão aprova a prática não porque essa prática tem boas razões a seu favor, pois tudo o que a autoridade escolhesse aleatoriamente estaria correto. Se for assim, então não estamos diante de realmente uma autoridade moral, e sim, de alguém que escolhe arbitrariamente o que aprovar.

É claro, se alguém considera certa pessoa, livro ou divindade, uma autoridade moral, dirá que a autoridade em questão é uma autoridade porque possui muito conhecimento moral, e então, aprova determinadas coisas porque sabe que elas são certas (e não, que elas se tornam certas porque foram aprovadas pela autoridade). Então, parece que a única maneira de afirmar que estamos diante de uma autoridade é defender a primeira opção: “a autoridade aprova determina prática porque sabe que a prática é correta”.

Mas, então, isso implica que não é a vontade da autoridade que torna a prática certa: a autoridade apenas sabe de alguma razão que torna tal prática correta. Mas, então, para avaliarmos se tal prática é mesmo correta, ou se a autoridade em questão se enganou, precisamos saber que razão é essa.

Não importa quem disse. Importa avaliarmos as razões

Em resumo, o ponto é: apontar que certa autoridade aprova uma prática não é suficiente para justificá-la. Temos de saber quais razões essa autoridade teria endereçado para tentar mostrar que tal prática é certa.  E, caso venhamos e descobrir que razões são essas, temos de avaliar essas razões por elas próprias.

Isto é, o argumento apresentado será ou não sólido independentemente de quem o apresentou. Isto é, se o argumento é bom, ele é bom, quer tenha sido endereçado por uma autoridade ou por qualquer outra pessoa. Por outro lado, se o argumento é ruim, ele continua sendo ruim, mesmo que tenha sido endereçado por uma autoridade.

É por essa razão que, se nosso objetivo é realmente descobrir quais práticas são justificáveis, rejeitaremos por completo apelos à autoridades morais. Avaliaremos a solidez dos argumentos independentemente de quem endereçou o argumento. Isso mostra então que o fato de que certas autoridades aprovaram práticas especistas não é suficiente para mostrar que tais práticas estão justificadas.

REFERÊNCIAS

PLATÃO. Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton. 4a ed. Trad. José Trindade Santos. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983 [399 a.C.].


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Ver Platão (1983[399 a.C.], p. 44-6).