O que é almejado com os programas ambientalistas de matança?

Luciano Carlos Cunha[1]

Não é incomum que programas ambientalistas ao redor de todo o mundo conduzam a matança de animais classificados como pertencentes à espécies invasoras. Os proponentes desses programas normalmente alegam que conduzi-los é necessário para salvaguardar a biodiversidade e o equilíbrio ecológico.

Frequentemente, esses programas são apoiados pelo público, incluindo defensores dos animais, devido à crença de que aquilo que é almejado com tais programas é garantir que, dali para frente, não aconteça algo ainda pior para os animais (por exemplo, ainda mais sofrimento e um número de mortes ainda maior). Isto é, segundo esse entendimento comum, esses programas ambientalistas de matança tem como meta em longo prazo beneficiar os animais. Entretanto, essa não é a meta desses programas, uma vez que o ambientalismo não é centrado na preocupação com o bem dos animais. Vejamos um exemplo:

O caso do extermínio dos patos-de-rabo-alçado-americanos no sul da Europa[2] oferece um bom exemplo para ilustrar o que é almejado pelo ambientalismo com programas desse tipo. O pato-de-rabo-alçado (Oxyura leucocephala), nativo da Europa, é considerado ameaçado de extinção. Já os patos-de-rabo-alçado-americanos (Oxyura jamaicensis) foram introduzidos pelos humanos na Europa na década de 1950, e não estão em risco de extinção. A única característica que distingue essas espécies é a cor das penas da cabeça. Nesse caso, o que motivou as políticas de matança foi os Oxyura jamaicensis se entrecruzarem com os Oxyura leucocephala, dando origem a descendentes híbridos, e a cor das penas da cabeça da espécie de origem americana prevalecer nos descendentes.

Isso foi considerado uma ameaça à biodiversidade porque a hibridização foi vista como contribuindo para a extinção da espécie nativa. Contudo, a ameaça à biodiversidade e extinção nesse caso foram simplesmente o fato de o traço da espécie nativa não prevalecer nos descendentes (e não, como poderia ser entendido à primeira vista, mortes de membros da espécie nativa). Foi então conduzido um programa para matar todos os patos da espécie Oxyura jamaicensis e também todos os patos híbridos.

O que esse tipo de prática visava alcançar não era uma redução do sofrimento e das mortes dos animais. Na verdade, elas aumentaram muito o sofrimento e as mortes. Qual é então a meta que os ambientalistas visavam alcançar com esse programa de extermínio? Nesse caso, não poderiam apelar a uma preocupação com o equilíbrio ecológico, pois a função ecológica, seja dos patos europeus, americanos ou híbridos, é exatamente a mesma. Essa prática também não parece fazer sentido do ponto de vista da biodiversidade, pois havendo apenas os patos europeus há uma menor quantidade de espécies do que se houver os patos americanos e os híbridos.

Esse ponto parece mostrar que a meta é fazer com que existam somente os membros das espécies valorizadas pelo ambientalismo (por exemplo, as espécies nativas[3], ou as que exibem características admiradas pelos ambientalistas[4]). O objetivo da matança, nesse caso, foi evitar a hibridização e manter a espécie nativa “pura”.

Metas como essa seriam amplamente consideradas hediondas se fossem aplicadas no caso humano. Por exemplo, os programas nazistas de extermínio baseados no ideal de pureza racial são amplamente citados como um exemplo paradigmático de prática hedionda. Na verdade, os próprios ambientalistas rejeitam fortemente a aplicação de suas medidas a seres humanos, mantendo-as somente quando as vítimas seriam animais não humanos[5]. Isso mostra que, na vasta maioria das vezes, o ambientalismo é, na verdade, uma forma de antropocentrismo.

REFERÊNCIAS

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CALLICOTT, J. B. Moral Considerability and Extraterrestrial Life. In: HARGROVE, E. (org.). The Animal Rights/Environmental Ethics Debate: The Environmental Perspective. Albany: State University of New York, 1992, p. 137-150.

CALLICOTT, J. B. The Case Against Moral Pluralism. Environmental Ethics, v. 12, p. 99-124, 1990.

CALLICOTT, J. B. The Land Ethic. In: JAMIESON, D. (org.). A Companion to Environmental Philosophy. Oxford: Blackwell, 2000, p. 204-17.

CALLICOTT, J. B. The Land Ethic: Key Philosophical and Scientific Challenges. Ideas Matter Lecture Series: The Legacy of Aldo Leopold.Corvallis: Oregon State University, 1998.

COUNCIL OF EUROPE. Eradication of the ruddy duck oxyura jamaicensis in the western palaearctic: a review of progress and a revised action plan for 2021–2025. In: convention on the conservation of european wildlife and natural habitats. Strasbourg, 03 dez. 2020.

FARIA, C. Muerte entre las flores: el conflicto entre el ambientalismo y la defensa de los animales no humanos. Viento Sur, v. 125, p. 67-76, 2012.

FARIA, C. Sobre o bem de tudo e de todos: a conjunção impossível entre ambientalismo e libertação animal. Agora: Papeles de Filosofia,v. 30, n. 2, p. 27-41, 2011.

GENOVEZ, A. G.  Metas ambientalistas vs consideração moral dos animais não humanos: o que pensam ambientalistas quanto ao uso de tecnologias para intervir na natureza? Revista Peri, v. 15, n. 1, p. 76-96, 2023.

HETTINGER, N. Valuing Predation in Rolston’s Environmental Ethics: Bambi Lovers versus Tree Huggers. Environmental Ethics, v. 16, n. 1, p. 3-20, 1994.

LEOPOLD, A. Una ética de la tierra. Madrid: Los libros de la Catarata, 2000 [1949].

NÆSS, A. An Answer to W.C. French: Ranking, Yes, But the Inherent Value is the Same. In: WITOSZEK, N.; BRENNAN, A. (org.). Philosophical Dialogues: Arne Næss and the Progress of Ecophilosophy. Oxford: Rowman and Littlefield, 1999, p. 146-149.

NÆSS, A. Ecology, Community and Lifestyle. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.

ROLSTON III, H. Respect for life: counting what Singer finds of no account. In: JAMIESON, Dale (org.). Singer and His Critics. Oxford: Blackwell, pp. 247-268, 1999.

ROY, E. A.. Poison-laden drones to patrol New Zealand wilderness on the hunt for invasive pests. The Guardian, 14 mar. 2020.

SHELTON. J. A. Killing Animals That Don´t Fit In: Moral Dimensions of Habitat Restoration. Between the Species, v. 13, n. 4, 2004.

VARNER, G. No Holism Without Pluralism. Environmental Ethics, v. 13, p. 175-79, 1991.

WARREN, M. A. Moral Status: Obligations to Persons and other Livings Things. Oxford: Oxford University Press, 2000a.

WENZ, P. S. Environmental justice. Albany: State University of New York Press, 1998.


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Para o programa de extermínio, ver Council of Europe (2020). Para uma crítica a esse tipo de prática, ver Shelton (2004) e Faria (2011, 2012).

[3] Por exemplo, o governo da Nova Zelândia investiu 790 mil dólares neozelandeses no desenvolvimento de um novo drone com a finalidade de envenenar animais considerados exóticos invasores. A justificativa oferecida foi “restaurar a natureza para que as espécies nativas possam crescer e prosperar”. Sobre isso, ver Roy (2020). Para uma crítica, ver Genovez (2023).

[4] Por exemplo, Rolston (1999, p. 260-1) defende matar animais que consomem ou pastam sobre flores raras.

[5] Ver, por exemplo, Callicott (1990, p. 103; 1992, p. 146-7; 1998; 1999, p. 76; 2000, p. 211); Hettinger (1994, p. 13-4); Leopold (2000 [1949], p. 135); Næss (1989, p. 167, 170; 1999, p. 148); Rolston (1999, p. 260-1); Varner (1991, p. 177); Warren (2000a, p. 228) e Wenz (1998, p. 308).