Luciano Carlos Cunha[1]
O apelo à conexão psicológica
Por vezes é defendido que os animais não humanos (ou, pelo menos, muitos deles) são pouco prejudicados com a morte porque, alegadamente, não possuem uma conexão psicológica forte com o seu futuro. Por conexão psicológica, se quer dizer o grau com que são mantidas memórias, traços de caráter, crenças, desejos, intenções etc.
Entretanto, podemos perguntar: por que, para alguém ser bastante prejudicado com a morte, precisaria ter uma conexão psicológica forte com o seu futuro? Uma explicação defende que é porque é a conexão psicológica que determina a identidade de alguém (isto é, é o que faz com que alguém seja o mesmo indivíduo ao longo do tempo). Vimos já os problemas com essa explicação em outro texto. Neste texto discutiremos outra explicação, por vezes oferecida. Essa explicação afirma que a conexão psicológica é relevante para determinar a força das razões prudenciais de um indivíduo, mesmo que não seja relevante para determinar sua identidade[2].
O apelo às razões prudenciais
O que se quer dizer com razões prudenciais? São as razões que alguém possui para tentar evitar eventos negativos e para buscar eventos positivos que poderiam acontecer consigo próprio. De acordo com essa explicação, a força das razões que alguém possui para evitar ou buscar determinado evento que ocorreria consigo no futuro seria determinada multiplicando-se o quão bom ou ruim é esse evento pela conexão psicológica que manteria com o seu “eu futuro”[3].
Segundo essa explicação, por essa razão, se os animais não humanos tiverem pouca conexão psicológica, não são muito prejudicados com a morte, mesmo que ela os prive de ter experiências bastante satisfatórias.
Vimos em outro texto que uma maneira de questionar esse argumento é negar que os animais não humanos tenham pouca conexão psicológica com o seu futuro. Entretanto, nesse texto abordaremos outro tipo de crítica: veremos dois exemplos que desafiam a ideia de que a conexão psicológica seja determinante para a força das razões prudenciais[4].
A força das razões para evitar eventos negativos depende da conexão psicológica?
O primeiro contraexemplo diz respeito à força das razões para evitar eventos negativos.
Imaginemos que Ana descobre que é impossível evitar o mal de Alzheimer no final da sua vida e que, depois de um ano, a doença terá destruído toda a conexão psicológica com quem ela é agora. Além disso, descobre também que sofrerá de uma segunda condição, que lhe trará muita dor. Contudo, é possível escolher em que momento a segunda condição acontecerá: ou depois de o Alzheimer tê-la feito perder toda a sua conexão psicológica, ou antes de ter a doença, enquanto ainda retém uma conexão psicológica forte com quem ela é agora. Entretanto, há uma diferença: se escolher que a segunda condição ocorra depois de perder totalmente a conexão psicológica, a dor será muito mais severa.
Ao que parece, do próprio ponto de vista de Ana, é preferível escolher que a dor aconteça enquanto ela ainda possui uma conexão psicológica forte consigo agora, simplesmente porque a dor será menor. Se o grau de conexão psicológica fosse relevante para determinar a força das razões que alguém tem para buscar evitar um evento negativo que aconteceria consigo próprio no futuro, teríamos de dizer que é preferível para Ana passar pela dor muito mais intensa, escolhendo que ela ocorra depois da perda total da conexão psicológica. Se esse não é o caso, então parece que a força das razões prudenciais para evitar um evento negativo não depende do grau de conexão psicológica.
A força das razões para buscar eventos positivos depende da conexão psicológica?
O segundo contraexemplo visa mostrar a mesma coisa, mas em relação à força das razões prudenciais para buscar eventos positivos (e, consequentemente, para evitar a morte).
Imaginemos que Bia ainda é uma criança de cinco anos, e tem o desejo de conhecer as pirâmides do Egito. Contudo, imaginemos que, se viajar agora, enquanto possui uma conexão psicológica forte com quem ela é agora, a viagem será prazerosa, mas que será muito mais prazerosa se ela viajar quando for adulta. Contudo, quando for adulta, terá uma conexão psicológica muitíssimo fraca com quem ela é agora (suas memórias, traços de caráter, crenças, desejos, intenções etc. terão mudado bastante).
Parece que Bia tem razões prudenciais para preferir fazer a viagem quando for adulta, simplesmente porque a viagem lhe será muito mais prazerosa. Se isso estiver correto, então a conexão psicológica também não é relevante para determinar a força das razões prudenciais que alguém possui para buscar eventos positivos.
Isso sugere, então, que um indivíduo que possui menor conexão psicológica (ou mesmo que não retenha conexão psicológica alguma) não é necessariamente pouco prejudicado com a morte, pois deixar de experimentar os eventos positivos que a morte impediria não lhe é, por isso, pouco prejudicial. Portanto, um apelo à conexão psicológica não parece conseguir mostrar que os animais não humanos são pouco prejudicados com a morte.
REFERÊNCIAS
CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022a.
HORTA, O. Why the Concept of Moral Status Should Be Abandoned. Ethical Theory and Moral Practice, v.20, p. 899-910, 2017b.
MCMAHAN, J. The Ethics of Killing: Problems at the Margins of Life. Oxford: Oxford University Press, 2002.
NOTAS
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Essa visão é defendida por McMahan (2002, p. 43, 66-9, 75-80).
[3] McMahan (2002, p. 80).
[4] Exemplos similares podem ser encontrados em Cunha (2022a, cap. 3.9.6). Um exemplo similar ao primeiro, mas focado também em outros aspectos, pode ser encontrado em Horta (2017b, p. 907).
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.
