Se espécies não forem uma construção social, então o especismo está justificado?

Luciano Carlos Cunha[1]

Os animais não humanos são explorados para as mais diversas finalidades. São usados como alimento, vestuário, modelo de testes, para entretenimento, lazer e como trabalhadores ou ferramentas. Esse uso mata, literalmente, trilhões de animais todos os anos, geralmente depois de terem uma vida repleta de sofrimento. Os animais que se encontram na natureza também são constantemente vítimas de doenças, fome, sede, desastres naturais etc. Em muitos desses casos, seria possível evitar o seu sofrimento e suas mortes. Entretanto, a visão padrão é a de que é errado ajudá-los. É comumente dito que devemos deixar a natureza seguir o seu curso, mesmo que o resultado seja péssimo para os animais.

Em ambos os tipos de situação, se as vítimas fossem humanas, tais atitudes seriam amplamente condenadas. Na verdade, mais do que isso: tais atitudes seriam consideradas monstruosas, hediondas. Esse padrão duplo de moralidade baseado na espécie da vítima tem sido acusado de cometer uma discriminação análoga ao racismo e ao sexismo: o especismo[2]

Entretanto, existem pessoas que não concordam com essa comparação. Por exemplo, por vezes é dito que utilizar o critério da espécie para questões de consideração moral não é injusto porque é um critério que faz referência a características biológicas[3]. De acordo com esse argumento, o racismo e o sexismo, por outro lado, seriam injustos porque as próprias ideias de raça e gênero seriam, alegadamente, construções sociais.

Vejamos a seguir alguns problemas com esse argumento.

Um primeiro problema é que ele não explica por que um critério ser baseado em características biológicas ou em uma construção social seria relevante para saber se ele é justo ou injusto. Isso é algo simplesmente assumido pelo argumento, sem oferecer nenhuma explicação.

Um segundo problema é que há exemplos de critérios que fazem referência a características biológicas que são nitidamente injustos. Imagine, por exemplo, um sistema de escravidão baseado na altura dos indivíduos. Se o fato de esse critério ser baseado em uma característica biológica não pode torná-lo justo, então, o fato de o critério da espécie ser baseado em uma característica biológica também não pode torná-lo justo. Aliás, o fato de um critério ser baseado em uma característica biológica parece que sequer pode torná-lo menos injusto do que seria se fosse baseado em uma construção social. Isso porque a injustiça de um critério depende de tratar tendenciosamente os indivíduos, e não, de se o critério que utiliza faz referência a construções sociais ou a traços biológicos.

Racismo e sexismo são injustos porque desfavorecem tendenciosamente indivíduos de certos grupos. Se fosse mostrado, por exemplo, que raças e gêneros não são construções sociais, o racismo e o sexismo continuariam tão injustos quanto seriam se raças e gêneros forem construções sociais. Entretanto, o mesmo é verdadeiro para o caso do especismo. O fato de o conceito de espécie fazer referência a características biológicas não torna o especismo justo, e nem sequer torna-o menos injusto do que outras formas de discriminação, como o racismo e o sexismo.

REFERÊNCIAS

ALBERSMEIER, F. Speciesism and Speciescentrism. Ethical Theory and Moral Practice, 15 mar. 2021.

COHEN, C.; REGAN, T. The Animal Rights Debate. Lanham: Rowman & Littlefield, 2001.

CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022a.

CUNHA, L. C. Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente. Curitiba: Appris, 2021.

HORTA, O. O que é o especismo? Ethic@, v. 21, n. 1, p. 162-193, 2022 [2010].

HORTA, O., ALBERSMEIER, F. Defining speciesism. Philosophy Compass, v. 15, n. 11, p. 1-9, 2020.


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Sobre a definição de especismo, ver Horta (2022 [2010]); Horta; Albersmeier (2020) e Albersmeier (2021).

[3] Um argumento similar é dado por Cohen em um debate contra Regan. Ver Cohen; Regan (2001, p. 61-2). Para uma crítica a esse argumento, ver Cunha (2021, p. 46; 2022a, p. 39).