Se a ética for uma invenção, é justo desfavorecer os animais?

Luciano Carlos Cunha[1]

Em algumas vezes, é afirmado que a ética é uma invenção. O que se quer dizer com isso é que não é algo que sempre existiu no universo, pois é necessário que existam agentes racionais para refletirem sobre o que devem fazer. Portanto, a ética enquanto atividade é algo que parece ter surgido com o aparecimento dos seres racionais. A partir dessa constatação, por vezes é dito que, já que a ética é uma invenção, então todos os critérios são igualmente arbitrários e que, então, não temos nenhuma boa razão para rejeitar o especismo.

O principal problema com esse argumento é pressupor que, se uma atividade é uma invenção, então os critérios para se estudar o assunto dessa atividade são todos igualmente arbitrários. Ora, toda atividade humana é, no sentido que o argumento aponta, também uma invenção. Antes de surgirem os primeiros cientistas, não havia a atividade da ciência. Antes de surgirem os primeiros matemáticos, não havia a atividade da matemática. E assim por diante. Porém, isso não implica que as coisas na ciência e na matemática sejam então arbitrárias e que todas as visões sejam igualmente plausíveis.

Entretanto, o mesmo acontece na ética. Por exemplo, há posições morais que se baseiam em critérios relevantes e outras que se baseiam em critérios irrelevantes para o que está em jogo[2]. Por exemplo, suponhamos que queremos saber se alguém é ou não responsabilizável pelo que escolhe. Nesse caso, o que parece relevante é saber se esse alguém é ou não capaz de refletir sobre como deve decidir. Agora, suponhamos que queremos saber a quem devemos dar consideração moral (isto é, quem devemos evitar prejudicar e buscar beneficiar). Nesse caso, o que parece relevante é saber quem é passível de ser prejudicado ou beneficiado (uma vez que é por isso que alguém precisa de consideração). Entretanto, por vezes é defendido que os animais não humanos não devem ser considerados porque não entendem a noção de ética. Nesse caso, o que se está a fazer é confundir o que é relevante para alguém ser responsabilizado com o que é relevante para alguém ser considerado.

Além disso, há posições que são arbitrárias e outras que não são. Por exemplo, o princípio da igual consideração[3] não é arbitrário. De acordo com esse princípio, evitar prejuízos maiores é mais importante do que evitar prejuízos menores, independentemente da raça, gênero, espécie, capacidades etc. de quem receberia esses prejuízos. O objetivo é justamente não ser tendencioso em relação a ninguém. Existem, por outro lado, posições completamente arbitrárias, que dizem, por exemplo, que só os prejuízos sobre os humanos devem ser evitados, ou que devemos dar uma importância maior a evitar prejuízos sobre humanos, mesmo quando o prejuízo sobre o animal não humano é de mesma magnitude (e mesmo quando o animal não humano teria um prejuízo maior, segundo algumas visões). Sendo assim, é falso que em ética todas as visões são igualmente arbitrárias. Na verdade, o que vimos acima mostra que algumas visões são arbitrárias e outras não são.

Por fim, há também posições que são parciais e outras que são imparciais. Há posições que consideraríamos justas se não soubéssemos que posição ocuparíamos entre os afetados por ela. Essas posições passam no teste da imparcialidade. Por outro lado, há outras posições que só são defendidas porque quem as defende sabe que não será prejudicado por elas. O especismo é um exemplo. Se não soubéssemos a que espécie pertencemos, consideraríamos completamente injusto privilegiar os humanos[4]. Essa posição, portanto, não passa no teste da imparcialidade.

Isso tudo parece mostrar que é falso que, se a ética é uma atividade humana, então todas as posições em ética são igualmente arbitrárias.

REFERÊNCIAS

CUNHA, L. C. A igualdade, suas várias interpretações, e a ética interespécies. In: BARBOSA-FOHRMANN, A. P.; LOURENÇO, D. B.; AUBERT, A. C. P. (orgs.). Estudos e direitos dos animais: teorias e desafios. Porto Alegre: Editora Fi, 2022b, p. 104-128.

CUNHA, L. C. Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente. Curitiba: Appris, 2021.

HORTA, O. Moral Considerability and the Argument from Relevance. Journal of Agricultural and Environmental Ethics, v. 31, n. 3, p. 369-388, 2018a.

SINGER, P. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002 [1979].

ROWLANDS, M. Animal Rights: A Philosophical Defense. London: MacMillan Press, 1998.

ROWLANDS, M. Animal rights: Moral, theory and practice. 2. ed. New York: Palgrave Macmillan, 2009 [1998].


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Para uma discussão sobre o que é relevante para questões de consideração moral, ver ver Horta (2018a) e Cunha (2021, p. 57-61).

[3] A formulação mais conhecida desse princípio pode ser encontrada em Singer (2002[1979], p. 29-35). Entretanto, é um princípio que aparece em toda e qualquer teoria ética que não é arbitrária. Sobre isso, ver Cunha (2022b).

[4] Sobre isso, ver Rowlands (1998, 2009 [1998]).