O que importa é pertencer à mesma espécie dos que tem certas capacidades?

Luciano Carlos Cunha[1]

O apelo ao grupo

Frequentemente é defendido que aquilo que torna certo explorar os animais não humanos e não prestar-lhes ajuda quando vítimas de doenças, fome, sede etc., e que ao mesmo tempo torna errado fazer o mesmo com humanos, é o fato de os humanos possuírem certas capacidades (por exemplo, capacidades cognitivas complexas) ou certas relações (de solidariedade mútua, políticas, de poder etc.).

Uma resposta a esse argumento aponta que é simplesmente falso que todos os humanos possuem essas capacidades ou relações[2]. Por exemplo, as crianças até certa idade e as vítimas de certas doenças ou acidentes que afetam as capacidades mentais não as possuem. Entretanto, isso não parece justificar tratá-los pior (muito menos, justificar fazer a eles o que é normalmente feito com os animais não humanos). Muito pelo contrário: a falta dessas capacidades e relações é vista como uma razão para dar-lhes um cuidado ainda maior, já que torna-os mais vulneráveis. Mas, se é assim, então a falta dessas capacidades e relações nos animais não humanos não poderia justificar tratá-los pior (muito menos justificar as coisas terríveis que são feitas a eles): pelo contrário, é uma razão para lhes darmos uma proteção ainda maior.

Entretanto, alguns autores acham que essa resposta não funciona. Em defesa do antropocentrismo, defendem o que é conhecido como apelo ao grupo. O apelo ao grupo consiste em dizer que apenas humanos importam (ou importam em maior grau) porque todos os humanos pertencem à uma espécie cujos membros normais possuem aquelas capacidades ou relações, não importando se muitos humanos não as possuem (ou sequer possuem o potencial para elas)[3].

A seguir veremos alguns problemas com esse argumento[4]:

Problemas com o apelo ao grupo

O primeiro problema é que comete a falácia conhecida como petição de princípio (assume aquilo que se propõe a provar). Por exemplo, imagine que perguntemos: “Por que apenas humanos importam?”, e que seja respondido: “Por que possuem uma série de capacidades ou relações”. Contudo, imaginemos que, diante dessa resposta, perguntemos: “E, quanto aos humanos que não as possuem?”, e que seja respondido “Importam igualmente, porque são humanos”.

Isso revela que o argumento, apesar de se propor a explicar por que o critério da espécie é relevante para questões de consideração moral, já assume de antemão que pertencer à mesma espécie dos indivíduos que possuem aquelas capacidades ou relações é o que importa para questões de consideração moral. Por exemplo, poderia ser dito igualmente que o que importa é pertencer ao mesmo reino biológico (e não à espécie) dos indivíduos que possuem aquelas capacidades ou relações.

O segundo problema é que o argumento não explica por que a posse daquelas capacidades ou relações seria relevante para saber se alguém deve receber consideração moral ou para o grau de consideração que deveria receber. Isso é algo também simplesmente assumido de antemão.

O terceiro problema é que há razões para pensarmos que possuir ou não essas capacidades ou relações é irrelevante para questões de consideração moral. O que está em jogo em questões de consideração moral é a possibilidade de nossas decisões prejudicarem ou beneficiarem os afetados por elas. Então, o que parece ser relevante para saber a quem dar consideração moral é saber quem é passível de ser prejudicado ou beneficiado. A posse daquelas capacidades ou relações não determina quem é passível de ser prejudicado e beneficiado. O que determina isso é a senciência (isto é, ser capaz de ter experiências positivas e negativas). Além disso, a posse daquelas capacidades ou relações também não determina o grau de prejuízos e benefícios. Portanto, também não é relevante para determinar o grau de consideração que alguém deveria receber.

O quarto problema com o apelo ao grupo é que é arbitrário, pois incluiria na esfera de consideração moral os humanos que carecem das características listadas para excluir os animais não humanos, e excluiria mesmo os animais não humanos que tivessem aquelas características. Por exemplo, suponha que perguntemos: “Por que os animais não humanos não importam?”, e que seja respondido: “Porque não possuem uma série de capacidades ou relações”. Imagine que, em seguida, perguntemos: “E, se algum animal não humano possuir aquelas capacidades ou relações?”, e que seja respondido: “Mesmo assim ele não importa, porque não é humano”. Em resumo, o argumento é altamente tendencioso.

O apelo à combinação dos critérios da espécie e das capacidades/relações

Por vezes é dito que, para um indivíduo importar, precisa cumprir um desses dois critérios: ou pertencer à espécie humana, ou possuir determinadas capacidades ou relações. Dessa forma, seria evitado o quarto problema do apelo ao grupo (pois, nesse caso, se algum animal não humano tiver alguma daquelas capacidades ou relações, receberia consideração moral plena).

Entretanto, essa combinação continua com quatro problemas similares:

O primeiro problema é que continua cometendo petição de princípio. Visa explicar a relevância do critério da espécie mas, em vez disso, já assume de antemão que tal critério é relevante.

O segundo problema é que ainda não explica por que a posse daquelas capacidades ou relações seria relevante para questões de consideração moral.

O terceiro problema é que há boas razões para pensarmos que a posse daquelas capacidades ou relações não é relevante, nem para saber a quem devemos dar consideração, nem o grau de consideração que deveríamos dar, uma vez que tais capacidades ou relações não determinam, nem quem é passível de ser prejudicado ou beneficiado, nem o grau de prejuízo ou benefício que estaria sujeito.

O quarto problema é que, embora evite ser tendencioso da maneira que é o argumento anterior, continua tendencioso, só que de outra maneira: exige dos animais não humanos que tenham alguma daquelas capacidades ou relações para que recebam consideração moral, mas não exige a mesma coisa dos membros da espécie humana.

REFERÊNCIAS

CAMPBELL, S. Animals, Babies and Subjects. Southern Journal of Philosophy, v. 39, p. 157-169, 2001.

CLARK, S. R. L. The Moral Status of Animals. Oxford: Claredon Press, 1977.

EHNERT, J. The argument from species overlap. Blacksburg: Virginia Polytechnic Institute and State University, 2002.

HORTA. O. The Scope of the Argument from Species Overlap. Journal of Applied Philosophy, v. 31, p. 142-154, 2014.

MACHAN, T. Why Humans May Use Animals. Journal of Value Inquiry, v. 36, p. 9-14, 2002.

ROLLIN, B. The Moral Status of Animals and Their Use as Experimental Subjects. In: KUHSE, H.; SINGER, P. (orgs.). A Companion to Bioethics. Oxford: Blackwell, 1998, p. 411-424.

SCRUTON, R Animal rights and wrongs. London: Metro, 1996.

SINGER, P. The significance of Animal Suffering. In: BAIRD, R. M.; ROSENBAUM, S. E. (orgs.). Animal Experimentation: the Moral Issues. New York: Prometheus Books, 1991, p. 56-66.


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Para essa crítica em detalhes, ver Ehnert (2002) e Horta (2014).

[3] Ver, por exemplo, Scruton (1996, p. 54-5); Campbell (2001, p. 164) e Machan (2002, p. 11).

[4]Para críticas mais detalhadas, ver Clark (1977, p. 135); Singer (1991, p. 61-2) e Rollin (1998, p. 418).