Luciano Carlos Cunha[1]
Por vezes é defendido que não há nada de errado em matar os animais não humanos, desde que tenham levado uma vida significativa até então, sejam mortos de maneira indolor, e sejam substituídos por outros que nasceriam para ocupar o seu lugar levando vidas positivas (e assim o ciclo continuaria). Esse argumento por vezes é utilizado para defender o uso de animais para consumo. É comumente dito que consumir os animais é beneficiá-los, pois “de outra forma não nasceriam”.
Entretanto, no mundo real acontece exatamente o oposto dessas condições: os animais criados para consumo vivem vidas repletas de sofrimento extremo e são mortos de maneiras brutais, e outros os substituem para viver aquele mesmo inferno. Porém, o proponente da substituição poderia dizer que a sua proposta é justamente reformar o sistema de exploração animal para que aquelas condições ideais aconteçam na prática. É claro, é duvidoso que isso seria possível na prática. Entretanto, independentemente disso, é possível desafiar a ideia de que os animais são substituíveis mesmo nas condições ideais que o argumento assume. É isso que veremos nesse texto.
Comecemos por perguntar por que alguém pensaria que os animais são substituíveis. Uma das razões é a crença de que os animais não são prejudicados com a morte. Mas, novamente, podemos perguntar: por que alguém pensaria isso? Nesse texto, examinaremos uma das explicações mais frequentemente dadas pelos proponentes da substituição: a explicação centrada na identidade (em outro texto discutiremos outra explicação por vezes dada: a explicação centrada nas razões prudenciais).
A explicação centrada na identidade afirma que o que faz alguém ser o mesmo indivíduo ao longo do tempo é sua conexão psicológica[2]. Com base nisso, é defendido que seres que não possuem um sentido temporal de si (isto é, não possuem memórias nem conseguem se imaginar no futuro) são substituíveis[3]. A razão para isso seria que, se um ser sem sentido temporal de si não é o mesmo indivíduo ao longo do tempo, então tanto faz manter esse corpo vivo ou matá-lo e fazer nascer outro: de qualquer maneira, o indivíduo que existe agora é aniquilado (a diferença será apenas que o novo indivíduo nascerá nesse mesmo corpo ou em outro).
Uma primeira crítica possível a esse argumento é apontar que, mesmo se ele fizesse sentido, só poderia justificar a substituição de seres que não possuem conexão psicológica alguma, e esse não é o caso da vasta maioria dos animais (se é que é o caso de algum).
Já uma segunda crítica é direcionada à própria ideia de que a identidade é determinada pela conexão psicológica. A crítica sugere que essa ideia confunde dois sentidos do termo “o mesmo”[4]. Faz sentido afirmar que alguém que perdeu suas memórias “não é mais o mesmo” no sentido de ser muito diferente psicologicamente do que era antes. Contudo, isso não significa que seja outro indivíduo a ocupar aquele corpo e que o indivíduo anterior morreu. Não é outra consciência a experimentar o mundo: é o mesmo indivíduo, só que não se lembra. Se for assim, então a conexão psicológica não determina a identidade de um indivíduo.
Vejamos um exemplo para ilustrar esse ponto[5]. Imaginemos que Ana tem toda a sua conexão psicológica copiada para um novo corpo. Quando o novo corpo começa a funcionar, surge um novo indivíduo: AnaB. Esse novo indivíduo, por ter a conexão psicológica de Ana, acredita que é Ana, e se lembra de tudo o que Ana experimentou até aquele momento como se ela própria tivesse experimentado.
Imagine também que AnaB é idêntica fisicamente à Ana, e tem todos os trejeitos dela. Quando AnaB caminha nas ruas, as pessoas pensam que é Ana. Entretanto, lembre-se que a Ana original não morreu. Estão vivas Ana e AnaB. Se a conexão psicológica determinasse a identidade individual, Ana e AnaB seriam o mesmo indivíduo. Mas, parece claro que são dois indivíduos distintos, apesar de terem a mesma conexão psicológica, pois tratam-se de duas consciências distintas: o que uma experimenta, a outra não experimenta; as decisões de uma tem efeito apenas sobre o movimento do próprio corpo e não no corpo da outra etc. Isso sugere que não é a conexão psicológica que determina a identidade de um indivíduo.
Vejamos um segundo exemplo. Imagine que, assim como no caso de Ana acima, você terá toda a sua conexão psicológica copiada para um novo corpo, que ainda não entrou em funcionamento. Como no exemplo anterior, a pessoa que estará no novo corpo se lembrará de todas as suas experiências e pensará que é você. Entretanto, aconteceu um imprevisto. Ao copiarem a sua conexão psicológica para o novo corpo eles sem querer apagaram a sua conexão psicológica no seu cérebro. Agora, está vivo o novo indivíduo, no outro corpo, que lembra que é você e pensa que é você. Também está vivo você, que não lembra quem é. A pergunta é: onde você se encontra, no novo corpo ou no antigo? Parece claro que é no corpo que você já estava, que agora já não tem a conexão psicológica, pois é você, sua consciência, quem estará ali experimentando tudo o que aquele corpo experimentar dali para frente, mesmo que você não lembre quem você foi no passado. A outra pessoa no novo corpo lembra que é você e pensa que é você, mas está enganada, pois é outra consciência, apesar de ter a mesma conexão psicológica. Assim, esse exemplo também sugere que a identidade de um indivíduo não é determinada pela sua conexão psicológica.
Se o que esses exemplos sugerem estiver correto, então uma das principais defesas da ideia de que certos animais são substituíveis tem sérios problemas.
REFERÊNCIAS
FERRÉ, F. Moderation, Morals and Meat. Inquiry, v. 29, p. 391-406, 1986.
HARE, R. M. Why I Am Only a Demi-Vegetarian. In: JAMIESON, D. (org.). Singer and His Critics. London: Blackwell, 1999, p. 233-246.
LOCKE, J. An Essay Concerning Human Understanding. Oxford: Clarendon Press, 1975 [1694].
NOONAN, H; CURTIS, B. Identity. In: ZALTA, E. N. (org.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Summer 2018 Edition.
OLSON, E. T. Personal Identity. In: ZALTA, E. N. (org.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Spring 2021 Edition.
PARFIT, D. Reasons and persons. Oxford: Oxford University Press, 1984.
SCRUTON, R Animal rights and wrongs. London: Metro, 1996.
SINGER, P. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002 [1979].
NOTAS
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Essa visão é normalmente atribuída à Locke (1975 [1694], p. 335), mas foi defendida também por vários filósofos no século XX. Para uma lista desses autores, ver Olson (2021).
[3] Defesas da substituição podem ser encontradas em Singer (2002 [1979], p. 128-143); Ferré (1986, p. 399); Scruton (1996, p. 100) e Hare (1999, p. 238-9).
[4] Sobre essa distinção, ver Noonan e Curtis (2018).
[5] Essa é uma adaptação de um exemplo oferecido por Parfit (1984, p. 199-203).
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.
