As práticas especistas serem tradições mostra que devemos respeitá-las?

Luciano Carlos Cunha[1]

Dois pesos e duas medidas, dependendo da espécie das vítimas

Os animais são explorados paras as mais diversas finalidades, o que faz com que tenham normalmente uma vida repleta de sofrimento, além de serem mortos. Além disso, quando são vítimas de processos naturais, como fome, sede, doenças e desastres naturais, a visão padrão é a de que deveríamos deixar a natureza seguir o seu curso, sem ajudá-los. Entretanto, tais  atitudes jamais seriam consideradas aceitáveis se as vítimas fossem humanas. Na verdade, se as vítimas fossem humanas, tais atitudes seriam consideradas monstruosas. Muitas pessoas acreditam que não há nada de errado com esse padrão duplo de tratamento baseado na espécie das vítimas. Entretanto, será possível justificar essa disparidade?

O apelo à tradição

Por vezes é defendido que as atitudes comuns em relação aos animais não humanos estão justificadas porque são tradicionais, isto é, são cultivadas há muito tempo, passando de geração a geração. Por exemplo, o uso de animais não humanos para os mais diversos fins é tradicional nas mais variadas culturas. O apelo a um respeito pelas tradições e culturas é muito comum. Entretanto, isso não torna-o isento de problemas. A seguir, veremos alguns desses problemas[2].

O apelo à tradição não poderia justificar o antropocentrismo

O primeiro problema é que possui a implicação oposta do que almeja. O argumento visa explicar por que explorar os animais não humanos é justo, ao passo que fazer o mesmo com os humanos não seria. Entretanto, se o fato de uma prática ser tradicional a tornasse justa, então teria de ser dito igualmente que o racismo, o sexismo e até mesmo a escravidão humana são práticas justas, uma vez que são práticas tradicionais.

Nem toda tradição é justa

O segundo problema é que o argumento não explica por que o fato de uma prática ser tradicional tornaria-a justa. Existem inúmeros exemplos de práticas que foram (e algumas, ainda são) bastante tradicionais em muitas sociedades e são também altamente injustas e até mesmo hediondas: escravidão humana, sacrifícios humanos, queima de pessoas acusadas de bruxaria, atirar pessoas para os leões comerem, mutilação genital feminina, crucificação, empalamento, casamentos entre adultos e crianças etc.

Discutindo as defesas de que as tradições devem ser respeitadas

O terceiro problema é que parecem haver apenas duas maneiras de defender que devemos respeitar as tradições, mas ambas não dariam suporte à defesa de que devemos respeitar tradições que causam vítimas, como são as práticas especistas. Vejamos:

A defesa de que as tradições são boas porque causam benefícios aos indivíduos

Uma maneira de defender que devemos respeitar tradições é apontando para o benefício que elas causam aos indivíduos. Por exemplo, poderiam ser apontados os benefícios que a exploração animal fornece aos humanos.

Entretanto, se o benefício que uma tradição causa a certos indivíduos é uma razão a favor dela, então seria arbitrário não contar os danos que ela causa a outros indivíduos como uma razão contrária a ela. E, no caso das práticas especistas e de outras tradições que causam vítimas (como aquelas listadas acima), o prejuízo que elas causam às vítimas é imensamente maior do que o benefício que causam. No caso das práticas especistas, ainda há o agravante de que a quantidade de vítimas é gigantescamente maior do que a quantidade de beneficiados. Portanto, se o que importa é a maneira como os indivíduos são afetados, então temos fortes razões para abolir tais tradições.

A defesa de que as tradições são boas em si

Outra maneira de defender que devemos respeitar tradições é defendendo que elas possuem valor em si, independentemente de beneficiarem ou não os indivíduos. Quanto à essa defesa, há dois problemas. Vejamos cada um separadamente:

A dificuldade em fundamentar a existência desse valor

O primeiro problema, é o seguinte: como saber se as tradições são mesmo boas em si, se não podemos apelar ao modo como elas beneficiam ou prejudicam os indivíduos? Como saber se elas não são, na verdade, neutras (isto é, o seu valor depende de como afetam os indivíduos) ou mesmo, ruins em si?

Um defensor das tradições poderia dizer que suas intuições dizem que são boas em si. Entretanto, outras pessoas não têm essa mesma intuição, e então, o defensor das tradições teria de explicar com algum outro argumento o motivo pelo qual são as suas intuições que estão corretas. Além disso, nossas intuições podem ser simplesmente o resultado de nossos preconceitos.

O defensor das tradições poderia apontar que também não está provado que as tradições não têm esse valor. Entretanto, o ônus da prova  é do defensor das tradições, pois é ele quem está a afirmar a existência de um valor que não pode ser verificado (ainda mais, por se tratarem de práticas que  causam quantidades gigantescas de sofrimento e de mortes).

Mesmo se esse valor existisse, disso não se segue que essas tradições estão justificadas

O segundo problema é o seguinte. Assumamos para efeito de argumentação que tivesse sido provado que tradições possuem valor em si. Isso ainda seria insuficiente para se fundamentar que estão justificadas as tradições que causam vítimas. Para se fundamentar essa conclusão, teria de ser mostrado, além disso, que o suposto valor das tradições é mais importante do que os interesses básicos das vítimas, como não sofrer e não morrer. Se, como vimos, já é difícil fundamentar que as tradições possuem valor em si, é ainda mais difícil fundamentar que esse valor é tão importante que justifica causar sofrimento e morte em nome dele.

Conclusão

Tudo o que foi discutido parece mostrar que o fato de uma prática ser tradicional não mostra que seja justa. Portanto, o fato de a exploração animal ser tradicional também não mostra que seja justa. Na verdade, é bastante possível que a exploração animal também seja uma prática altamente injusta ou mesmo hedionda, e que o próprio fato de ela ser tradicional seja um dos fatores que faz com que isso não seja percebido, assim como acontecia em relação à escravidão humana, por exemplo.

REFERÊNCIAS

CUNHA, L. C. Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente. Curitiba: Appris, 2021.

RACHELS, J.; RACHELS, S. The Elements of Moral Philosophy. 7a ed. New York: McGraw-Hill, 2012.


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Para uma crítica detalhada às tentativas de justificar o especismo por meio de um apelo à tradições, ver Cunha (2021, p. 49-56). Para uma crítica geral ao apelo à tradições, ver Rachels e Rachels (2012, cap. 2).