Animais na natureza: o sofrimento não é tão grande quanto parece?

Luciano Carlos Cunha[1]

A quantidade de animais que nascem na natureza apenas para viver vidas repletas de sofrimento e para morrer prematuramente é gigantesca. Isso se dá por conta de vários fatores, relacionados ao modo como os processos naturais afetam os animais que vivem na natureza, como desnutrição, fome e sede, doenças, lesões físicas, estresse psicológico, eventos meteorológicos hostis, desastres naturais, e conflitos interespecíficos, intraespecíficos e sexuais.

Um fator-chave para esse resultado é o fato de que a vasta maioria das espécies de animais possui ninhadas gigantescas, com milhares ou mesmo milhões de filhotes. Em populações estáveis, em média apenas dois de cada ninhada sobrevive até à idade adulta[2]. Isso nos dá uma ideia do quão gigantesca é a quantidade de seres que nasce para experimentar sofrimento e morrer prematuramente em decorrência dos próprios processos naturais.

Entretanto, poderia ser objetado que o problema não é tão grande quanto parece inicialmente, pois provavelmente muitos dos ovos são destruídos antes de formarem seres sencientes. Entretanto, não há provas de que isso aconteça com a maioria dos ovos. Além disso, a quantidade de ovos é tão gigantesca que, mesmo que a maior parte deles fosse destruída antes de formar seres sencientes, ainda seria uma quantidade enorme de seres sencientes que nasceriam apenas para experimentar sofrimento extremo e morrer prematuramente. Por exemplo, um bacalhau comum tem em média 2 milhões de ovos por ninhada[3]. Se mesmo apenas 10% desses ovos formarem seres sencientes, já seriam quase 200.000 seres que nasceriam para sofrer e ter uma morte prematura em cada ninhada.

Outra objeção similar seria dizer que esses animais, por não terem ainda as capacidades cognitivas desenvolvidas, ou não seriam capazes de sofrer, ou então não sofreriam de maneiras muito significativas[4]. Segundo essa objeção, se isso for verdadeiro, então não há nada de problemático nessa situação.

O primeiro problema com essa objeção é que esses animais ainda poderiam ser prejudicados com a morte, independentemente do sofrimento e, portanto, ainda teríamos fortes razões para ajudá-los, mesmo que fosse verdadeiro o que a objeção alega.

O segundo problema é que há fortes razões para considerar falso o que a objeção alega. Por exemplo, o cérebro de peixes-zebras adultos possui cerca de 10 milhões de neurônios[5], e o de seus filhotes, apenas cerca de 100 mil[6]. Entretanto, as larvas dos peixes-zebras respondem de maneira similar aos adultos aos mesmos estímulos danosos que indicam que os adultos são sencientes[7].

Além disso, por pressão seletiva, é bastante possível que animais com capacidades cognitivas menos desenvolvidas sintam de maneira ainda mais intensa[8]. Quando são ainda filhotes, ou mesmo antes de saírem dos ovos, como não possuem as capacidades cognitivas desenvolvidas ainda, a única motivação para o seu comportamento e aprendizado é evitar experiências negativas e buscar experiências positivas. Isso é especialmente verdadeiro no caso de animais precociais, pois precisam ser bastante ativos para poderem quebrar a casca e sair do ovo, e também para terem alguma chance de sobreviver após saírem do ovo[9], pois é muito comum em espécies ovíparas que os filhotes não recebam cuidado parental.

Em resumo, não parece haver razões para supor que a quantidade de animais vítimas dos processos naturais é pequena, e nem que sejam menos capazes de sofrer do que outros animais.

 

REFERÊNCIAS

ANIMAL ETHICS. Introduction to wild animal suffering: A guide to the issues. Oakland: Animal Ethics, 2020.

BROWNING, H.; VEIT, W. Positive Wild Animal Welfare. Preprint, 2021.

CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022a.

DOODY, J. S.; PAULL, P. Hitting the ground running: Environmentally cued hatching in a lizard. Copeia, v. 1, p. 160-165, 2013.

ÉTICA ANIMAL. Dinâmica de populações e o sofrimento dos animais. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 27 out. 2015b.

ÉTICA ANIMAL. O desenvolvimento da senciência em animais juvenis. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 12 abr. 2022c.

EUROPEAN FOOD SAFETY AUTHORITY. Opinion of the Scientific Panel on Animal Health and Welfare (AHAW) on a request from the Commission related to the aspects of the biology and welfare of animals used for experimental and other scientific purposes. EFSA Journal, v. 292, p. 1-136, 2005b.

FERRO, S. Scientists capture all the neurons firing across a Fish’s brain on video. Popular Science, 20 mar. 2013.

GROFF, Z.; NG, Y. K. Does suffering dominate enjoyment in the animal kingdom? An update to welfare biology. Biology & Philosophy, v. 34, n. 40, p. 1-16, 2019.

HINSCH, K.; ZUPANC, G. K. H. Generation and long-term persistence of new neurons in the adult zebrafish brain: A quantitative analysis. Neuroscience, v. 146, p. 679-696, 2007.

HORTA, O. Debunking the Idyllic View of Natural Processes: Population Dynamics and Suffering in the Wild. Télos, v. 17, p. 73-88, 2010b.

HURTADO-PARRADO, C. Neuronal mechanisms of learning in teleost fish. Universitas Psychologica, v. 9, p. 663-678, 2010.

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LOPEZ-LUNA, J.; AL-JUBOURI, Q.; AL-NUAIMY, W.; SNEDDON, L. U. Reduction in activity by noxious chemical stimulation is ameliorated by immersion in analgesic drugs in zebrafish. Journal of Experimental Biology, v. 220, p. 1451-1458, 2017c.

LOPEZ-LUNA, J.; CANTY, M. N.; AL-JUBOURI, Q.; AL-NUAIMY, W.; SNEDDON, L. U. Behavioural responses of fish larvae modulated by analgesic drugs after a stress exposure. Applied Animal Behaviour Science, [s.l.], v. 195, p. 115-120, 2017d.

RYDER, R. Painism: a modern morality. London: Open Gate Press, 2002.

SNEDDON, L. U. Where to draw the line? Should the age of protection for zebrafish be lowered? Alternatives to Laboratory Animals, v. 46, p. 309-311, 2018.


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Ver Horta (2010b); Ética Animal (2015b); Animal Ethics (2021, p. 55-9) e Cunha (2022a, p. 28-34).

[3] Ver Horta (2010b).

[4] Ver por exemplo Groff e Ng (2019, p. 7) e Browning; Veit (2021, p. 13).

[5] Hinsch; Zupanc (2007).

[6] Ferro (2013).

[7] Sobre isso, ver Ética Animal (2022c); Hurtado-Parrado (2010); Lopez-Luna et al. (2017a, 2017b, 2017c, 2017d) e Sneddon (2018).

[8] Ryder (2002, p. 64).

[9] Sobre isso, ver European Food Safety Authority (2005b) e Dooddy; Paull (2013)


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.