Luciano Carlos Cunha[1]
Não é incomum a afirmação de que deve haver algo de errado com o princípio da igual consideração porque ele implica que, por exemplo, invertebrados como crustáceos e insetos devem receber o mesmo grau de consideração do que vertebrados, como mamíferos e aves. Curiosamente, essa afirmação frequentemente surge de pessoas que se intitulam veganas e defensoras dos animais.
E, mais curioso ainda, essas pessoas normalmente não dão nenhum argumento para defender a tese que proclamam (isto é, que um prejuízo de mesma magnitude deveria importar mais se padecido por um vertebrado do que se padecido por um invertebrado). Se alguém pede uma explicação, essas pessoas geralmente se limitam a repetir a tese (e cada vez mais enfaticamente, como se o volume com que uma afirmação fosse repetida pudesse torná-la plausível).
Com isso, elas revelam duas coisas: (1) ou que sequer sabem defender a ideia que proclamam; (2) ou que sequer sabem que o ônus da prova é delas. Ora, o ônus da prova é sempre de quem quer abrir exceção a um princípio geral. Então, se alguém diz que um prejuízo de mesma magnitude deve receber peso diferente dependendo de se quem receberia o prejuízo pertence à espécie x ou y, o ônus da prova é dessa pessoa. Essa pessoa tem que explicar o que justifica dar peso diferenciado a prejuízos de mesma magnitude de acordo com a espécie de quem teria o prejuízo.
É claro, por vezes algumas pessoas tentam defender essa atitude dizendo algo como “mamíferos e aves são mais inteligentes”, “mamíferos e aves têm uma relação mais próxima conosco”; “temos mais empatia para com mamíferos e aves” e assim por diante. Mas, isso não explica por que essas características (o grau de inteligência, o grau de proximidade conosco e o grau de empatia que alguém desperta em nós) justificariam abrir exceção ao princípio da igual consideração. Isso também teria de ser explicado. Não basta apontar uma diferença. Tem-se que demonstrar que a diferença em questão justifica a exceção. Essas pessoas parecem acreditar que, em ética, “vale tudo”, isto é, que qualquer diferença que consigam apontar entre os diferentes casos automaticamente justifica a atitude diferente. Ora, qualquer idiota, por mais idiota que seja, consegue apontar diferenças entre vários casos. O que é difícil é demonstrar que tais diferenças são moralmente relevantes.
Uma maneira de justificar um critério seria mostrar que ele cumpre requisitos de imparcialidade (isto é, que não é tendencioso). Mas, apliquemos o teste da imparcialidade à ideia de que animais de certas espécies deveriam receber menor consideração (seja lá por qual motivo for: a própria espécie, seu grau de capacidades cognitivas, seu grau de relação conosco, o grau de empatia que desperta em nós etc.). Consideraríamos tal atitude justa se não soubéssemos a qual espécie pertencemos? Consideraríamos tal atitude justa se soubéssemos que teríamos iguais chances de ser qualquer um dos animais que seria vítima dessa atitude? Consideraríamos tal atitude justa se alguém nos desse menor consideração pelos mesmos motivos? Obviamente que não. Essas pessoas só defendem tais atitudes porque sabem que não serão vítimas dela. Isso, por si só, já mostra que a atitude é injusta. Será que essas pessoas sequer tentam justificá-la porque sabem que, se tentarem, ficará evidente que ela é injusta?
Outra tentativa comum de rejeitar o princípio da igual consideração consiste em apontar algo negativo sobre o caráter de alguns de seus proponentes. Ao fazerem isso, essas pessoas estão cometendo a falácia ad hominem. Não é possível mostrar que uma ideia está errada apontando-se que quem propôs a ideia têm falhas de caráter. Por exemplo, imaginemos que alguém que é uma má pessoa dissesse que não devemos torturar crianças. O fato de esse alguém ser uma má pessoa não faz com que torturar crianças esteja correto.
Em resumo, isso tudo mostra que os proponentes de tal posição sequer conhecem o básico sobre regras de argumentação e de honestidade intelectual (ou, pior, que conhecem, mas não ligam para a honestidade intelectual). A abundância de tais atitudes por parte de ativistas do chamado movimento vegano é um sinal de que algo deu muito errado nesse movimento. Muitos ativistas são especistas e, além disso, têm orgulho de serem especistas (muito por conta de não conhecerem o debate sobre o especismo, geralmente porque nunca leram nada sobre o assunto). Ao mesmo tempo, na maioria dos casos, sequer sentem necessidade de apresentar argumentos para tentar justificar sua postura especista, ou mesmo de ler sobre o assunto.
Isso pode ser um exemplo do viés conhecido como efeito Dunning-Kruger: quanto menos alguém sabe sobre um assunto, mais tem a tendência de pensar que sabe muito e que tudo é “muito óbvio” – justamente por não conhecer a complexidade do assunto em questão. Essas pessoas falam com bastante convicção porque não têm dúvidas sobre o que acreditam (é pela mesma razão que os especialistas falam com menos convicção e possuem posições com maior grau de incerteza: porque conhecem a complexidade do tema). Curiosamente, pelo fato de falarem com mais certeza e convicção, acabam tendo (muito) mais influência do que os especialistas no assunto. Esse é um resultado lastimável: quanto menos alguém sabe, geralmente mais influência acaba tendo (ainda mais em uma era de redes sociais, que privilegia vídeos superficiais de alguns segundos em detrimento de uma leitura aprofundada). O problema não é só que qualquer um que não conhece sobre um assunto pode falar sobre ele e “viralizar” com o que publica: o problema maior é que quase ninguém lê os especialistas no assunto.
Essa atitude também pode ser um efeito do viés conhecido como efeito de credencial moral, que é quando alguém que faz algo de bom cria uma imagem excessivamente positiva de si mesmo a ponto de não perceber que ainda pode estar equivocado quanto a muitas outras coisas. É como se essas pessoas pensassem: “já sou vegano, então é óbvio que tudo o que eu faço está correto; se algum especialista que se dedicou a vida inteira a pensar sobre o tema discorda de mim, obviamente que ele deve ser estúpido; eu que nunca li nada sobre o assunto é que com certeza sei das coisas”.
É preciso criar um outro tipo de ativismo (não só na causa animal: nas causas em geral), um no qual predomine a mentalidade de buscarmos os fundamentos para agirmos dessa ou daquela maneira, de testar se nossas atitudes se justificam, de estarmos prontos para mudar de atitude se não conseguirmos justificá-la e, acima de tudo, de tentar conhecer (pelo menos o básico) sobre o que os especialistas já falaram sobre a questão. A preguiça de ler e o decorrente excesso de confiança por parte de um bom número de ativistas tem tido o efeito de não haver um movimento em defesa dos animais.
Mas, há um problema duplo. Por um lado, quem mais precisaria refletir sobre isso provavelmente não vai ler esse texto, justamente porque têm a convicção de que não precisa aprender nada (ou, se o ler, provavelmente será já com a atitude de refutá-lo antes de parar para pensar no que ele diz). Por outro lado, provavelmente quem lê esse texto e reflete sobre as coisas aqui ditas já possui a atitude de estar aberto a repensar suas crenças. Então, infelizmente, talvez esse texto não tenha poder algum de mudar o que precisa ser mudado. Entretanto, pelo menos ele serve para explicitar que esse problema existe. Mas, sinceramente, eu não faço ideia do que pode ser feito para minimizar esse problema. E você, tem alguma ideia?
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021), Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022) e também dos 12 livros da Coleção Uma Jornada pela Ética Animal. Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
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