Luciano Carlos Cunha[1]
Sumário
- Sumário
- 1. Consideração moral e incerteza sobre se um ser é senciente
- 2. A objeção cética
- 3. O princípio do benefício da dúvida
- 4. Graus de consideração de acordo com o grau de confiança sobre a senciência?
- 4.1. Negando o critério do grau de confiança
- 4.2. Defendendo que o grau de confiança é alto
- 4.3. Apontando que contar menos é insuficiente para justificar explorar
- 4.4. O número de indivíduos pode compensar o peso menor dado a cada um
- 5. Conclusão
1. Consideração moral e incerteza sobre se um ser é senciente
Por vezes é defendido que, em relação aos animais não humanos (ou, pelo menos, em relação a alguns deles) estamos justificados a negar-lhes consideração moral porque não há prova de que são sencientes.
Os defensores dos animais normalmente respondem a essa objeção apontando que há um corpo crescente de evidências científicas comprovando a senciência em uma boa parte de animais não humanos a ponto de essa ser agora a posição padrão entre cientistas. Isso é expresso em declarações emitidas pela comunidade científica. Por exemplo, a Declaração de Cambridge, de 7 de julho 2012, atesta que todos os mamíferos e aves, e também invertebrados como cefalópodes possuem os substratos neurológicos que criam as condições para o aparecimento da consciência[2]. Por sua vez, a Declaração de Nova York, de 19 de Abril de 2024, atesta que a evidência empírica indica pelo menos uma possibilidade realista de consciência em todos os vertebrados e em muitos invertebrados (no mínimo, moluscos cefalópodes, crustáceos decápodes e insetos)[3].
Entretanto, mesmo todo esse corpo de evidências científicas não satisfará o cético. Neste texto primeiro discutiremos a objeção levantada pelos céticos. Será defendido que, no que diz respeito à ética, o ônus da prova é do cético. Isto é, não são os animais que têm que provar que são sencientes: é o cético quem têm que provar que eles não são (até então, devemos dar-lhes o benefício da dúvida). Em seguida, será discutida a posição que defende que a consideração moral deveria ser atribuída em graus: quanto maior o grau de incerteza sobre se um ser é senciente, menos ele deveria contar em nossas deliberações morais. Serão oferecidos em seguida alguns argumentos para rejeitarmos essa posição.
2. A objeção cética
Considere a afirmação de que não podemos ter certeza sobre se animais não humanos são sencientes pelo simples fato de que o único caso no qual alguém consegue ter essa certeza é quanto à sua própria senciência, pois é a única que se consegue experimentar diretamente. Isso é conhecido como O Problema das Outras Mentes[4].
Uma possível resposta seria concordar que o único caso em que cada indivíduo consegue provar com certeza absoluta a senciência é no seu próprio, mas defender que, ainda assim, temos boas razões para acreditar que os outros indivíduos são sencientes. O primeiro tipo de razão é o comportamento. Por exemplo, se piso em um caco de vidro, afasto meu pé porque estou sentindo dor. Então, se outros indivíduos se afastam quando pisam em um caso de vidro, essa é uma razão para supormos que estão fazendo isso porque também estão sentindo dor. O segundo tipo de razão é a fisiologia. Se sei que é possível que eu tenha experiências porque possuo um sistema nervoso com um cérebro, e sei que é o processamento que ocorre no cérebro aquilo que cria as condições para a consciência se manifestar[5], então essa é uma razão para supormos que qualquer outro ser que possua um sistema nervoso com um órgão centralizador que realize esse tipo de processamento é também senciente. Isso é conhecido como Argumento da Analogia.
Entretanto, essa resposta não satisfará o cético. Ele dirá que é uma generalização apressada a partir de um único caso. Law (2003, p. 102-3) dá o seguinte exemplo: se eu abrir mil cerejas e encontrar um caroço no meio de cada uma, ainda assim eu não estou justificado a concluir que toda cereja necessariamente possui um caroço no meio, e muito menos estaria justificado a concluir tal coisa se tivesse aberto apenas uma cereja. Da mesma maneira, conclui o autor, generalizar a partir do próprio caso que os outros indivíduos que possuem cérebros e sistemas nervosos e se comportam de modo similar também são sencientes, é como concluir que todas as cerejas possuem caroço a partir da observação de uma única cereja. Assim, conclui o cético, não temos razões para pensar que existem outras mentes além da nossa (uma vez que todas as evidências científicas de senciência estão fundadas no Argumento da Analogia).
Nesse ponto poderia ser questionado, em termos epistêmicos, de quem é o ônus da prova. O cético diz que não temos razões para pensar que existem outras mentes além da nossa. Entretanto, o cético também não oferece nenhuma razão para pensarmos que não há. De quem é o ônus da prova aqui? Em termos epistêmicos, isso é discutível. Entretanto, em termos éticos, o ônus da prova certamente é do cético. Isso será explicado em mais detalhes a seguir.
3. O princípio do benefício da dúvida
Se o fato de o único caso no qual conseguimos provar que há senciência é o nosso próprio fosse uma boa razão para negar consideração moral aos animais não humanos, o seria igualmente para negá-la a todos os humanos, uma vez que também não conseguimos comprovar por experiência direta que são sencientes.
Há um princípio que fundamenta que, mesmo não tendo certeza de que outros indivíduos são sencientes, devemos, ainda assim, dar-lhes consideração moral: o Princípio do Benefício da Dúvida[6] (também conhecido como Princípio da Precaução). O princípio prescreve que, havendo dúvida razoável sobre se um ser é ou não senciente, devemos tratá-lo partindo do pressuposto de que é senciente, pois assim a probabilidade de dano é menor.
O raciocínio na base desse princípio é o seguinte: se o ser em questão for senciente e o tratarmos como se ele não fosse, o dano que causaremos provavelmente será maior do que aquele que teria lugar se o tratarmos como se ele fosse senciente e ele na verdade não for. Em resumo, o princípio prescreve errar pelo lado da segurança.
Se o princípio do benefício da dúvida é razoável, então, apontar que cada um só consegue ter certeza da própria senciência não é uma boa razão para negar consideração moral a alguém.
4. Graus de consideração de acordo com o grau de confiança sobre a senciência?
Existe uma posição que defende que o grau de consideração moral que devemos dar a alguém deveria depender grau de confiança que temos sobre se o ser em questão é ou não senciente: se temos certeza de que é, o indivíduo conta por 1; se não temos, multiplicamos por menos do que 1 de acordo com o grau de confiança que temos sobre se é ou não senciente[7].
Com base nessa posição poderia ser defendido que, como o grau de confiança na senciência de, por exemplo, humanos ou vertebrados em geral é bem maior do que no caso de vários tipos de invertebrados, deveríamos dar uma menor consideração a estes últimos.
Há pelo menos quatro respostas a essa objeção, que serão abordadas a seguir.
4.1. Negando o critério do grau de confiança
A primeira resposta é rejeitar atribuir graus diferenciados de consideração moral com base em nosso grau de confiança sobre se o ser em questão é ou não senciente. Por exemplo, uma alternativa seria propor uma linha mínima de evidência razoável, e defender que todos os que estivessem acima dessa linha contariam por 1, sem hierarquias, independentemente do quão perto ou longe se encontram da linha. Assim, os proponentes da hierarquia com base no grau de confiança precisariam defendê-la, e não simplesmente postulá-la, haja vista que existem outras possibilidades.
Além disso, em muitos casos a pouca confiança que temos em relação à senciência de certos tipos de animais existe devido a haver pouca pesquisa sobre sua senciência, ou por conta de vieses de nossa parte ao avaliarmos os dados das pesquisas disponíveis, e não, porque claramente eles não cumprem os critérios para a senciência. Assim, contra o critério do grau de confiança, poderia ser argumentado que em uma questão tão séria quanto a consideração moral, o que deveríamos fazer é estabelecer proteções contra a nossa falta de informação e contra nosso provável julgamento enviesado, e não, utilizar essas limitações como critério.
4.2. Defendendo que o grau de confiança é alto
A segunda forma de responder seria defender que as evidências existentes a favor da senciência de invertebrados[8] como crustáceos decápodes[9] e insetos[10] são suficientemente fortes, e que então não faz sentido dizer que tais animais deveriam contar como muito menos do que 1 mesmo se aceitássemos o critério do grau de confiança.
É claro, pode ocorrer que no caso de outros animais, como gastrópodes e bivalves, as evidências disponíveis não sejam tão fortes. Mas, novamente, isso ocorre não porque eles claramente não cumprem os critérios para a senciência, e sim, porque não se sabe exatamente qual é a quantidade mínima de neurônios e de interações entre eles para haver senciência[11].
4.3. Apontando que contar menos é insuficiente para justificar explorar
A terceira forma de responder aponta que, mesmo que tais animais contassem como menos do que 1, disso não se segue que explorá-los é justificável. Uma coisa é conseguir fundamentar que certos indivíduos devem contar menos. Outra coisa é conseguir fundamentar que estamos justificados a explorar os indivíduos que deveriam contar menos. Teria de ser endereçado um argumento adicional que fundamentasse essa segunda conclusão, uma vez que ela não se segue necessariamente da primeira. Por exemplo, a probabilidade de eles serem sencientes pode ser suficientemente alta para que devamos protegê-los contra serem explorados.
4.4. O número de indivíduos pode compensar o peso menor dado a cada um
A quarta resposta é observar que, mesmo que cada um desses animais contasse como muito menos do que 1, a quantidade deles que sofre e é morta é tão gigantesca que ainda deveríamos priorizar protegê-los.
Por exemplo, suponhamos que cada humano contasse 1000 vezes mais do que cada invertebrado. Isso significaria que, para investirmos em ajudar invertebrados a mesma quantia de recursos que deveríamos investir em ajudar humanos, teria de haver 1000 vezes mais invertebrados do que humanos em situações igualmente ruins. Como no mundo real a quantidade de invertebrados em que sofre e morre é gigantescamente maior do que isso (seja sendo explorados, seja na natureza), a balança penderia para priorizar protegê-los mesmo se fosse postulado que cada humano conta muitas vezes mais. Seja lá o quão menor fosse o peso atribuído a cada invertebrado, sempre haveria uma quantidade de vítimas invertebradas acima da qual a balança penderia para priorizá-los.
A única maneira de evitar essa conclusão seria estabelecer uma barreira do tipo trunfo, que proibiria de priorizar os invertebrados seja lá quantos mais fossem prejudicados[12]. Entretanto, esse movimento é ad hoc, pois teria de ser endereçado um argumento adicional para fundamentar esse trunfo, uma vez que ele não se segue da alegação de que o peso moral de um indivíduo deveria ser multiplicado pelo grau de confiança que temos sobre se é senciente (pelo contrário, nesse caso visar limitar as implicações do critério do grau de confiança)..
Nesse outro texto você pode ler uma argumentação contrária ao estabelecimento de trunfos ou quaisquer outros tipos de hierarquias de status moral.
5. Conclusão
Neste texto vimos que há boas razões para aplicarmos o princípio do benefício da dúvida e que, portanto, pelo menos em termos éticos, o ônus da prova é daqueles que são céticos em relação à senciência em animais não humanos. Isso mostra também que, apesar de muitas evidências científicas corroborarem a senciência em muitos tipos de animais, em termos éticos tal prova não é necessária para que devamos dar-lhes consideração moral: basta que haja dúvida razoável.
Examinamos também a posição que defende que o grau de consideração moral deveria depender do grau de confiança que temos sobre se o ser em questão é ou não senciente. Vimos que é possível questionar a validade do critério do grau de confiança, e vimos também que, mesmo que adotássemos esse critério, disso ainda não seguiria que estaríamos justificados a explorar os animais cujo grau de confiança em sua senciência é menor, nem que estaríamos justificados a investir pouco em ajudá-los. Na verdade, dados os seus números, ainda assim, deveríamos priorizar ajudá-los.
REFERÊNCIAS
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Notas
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Ver Low (2012).
[3] Ver Andrews et. al. (2024).
[4] Sobre esse problema, ver Avramides (2001) e Maslin (2001, cap. 8).
[5] Sobre o papel do sistema nervoso e do órgão centralizador em criar as condições para o aparecimento da senciência, ver Ética Animal (2015a).
[6] Para uma formulação detalhada e uma defesa desse princípio, ver Birch (2017). Para uma defesa de que a incerteza sobre se outros indivíduos são ou não sencientes não é uma ameaça ao critério da senciência enquanto critério de consideração moral, ver Dung (2022). Para um exemplo de aplicação do benefício da dúvida para lagostas, ver Jones (2014).
[7] Para exemplos de defesas dessa posição, ver Chan (2011), Shriver (2020) e Sebo (2018).
[8] Para revisões da literatura sobre senciência em invertebrados em geral, ver Ética Animal (2019a, 2021d, 2022b).
[9] Para uma revisão das evidências de senciência em decápodes, ver Birch et. al. (2021)
[10] Para evidências comportamentais de senciência em insetos, ver EFSA (2005); Mendl et. al. (2011) e Adamo (2016). Para evidências fisiológicas de senciência em insetos, ver Gronenberg; López-Riquelme (2004); Polilov (2012); Kaiser (2015); Barron; Klein (2016); Kaas (2016) e Collett; Collett (2018).
[11] Sobre isso, ver Ética Animal (2019a, 2021d, 2022b).
[12] Para um exemplo de posição onde o número de vítimas não conta, ver Taurek (1977, p. 300-3). Para uma defesa de que o número de vítimas conta, ver Parfit (1978, p. 285-301).
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.
