A alegação de  que consumir os animais beneficia-os porque acaba com seu sofrimento

Luciano Carlos Cunha[1]

1. A alegação de que consumir os animais é correto porque acaba com seu sofrimento

Por vezes é defendido que devemos consumir os animais por preocupação com eles próprios, alegando-se que. como a vida que os aguardaria seria repleta de sofrimento, consumi-los é fazer-lhes um favor, pois livra-os de tal destino.

De acordo com essa posição isso valeria tanto para os animais criados para serem consumidos (pois normalmente são criados em condições altamente adversas ao seu bem-estar[2]) quanto para os que são, por exemplo, pescados na natureza (pois a vasta maioria dos animais que nasce na natureza têm também vidas repletas de sofrimento). Isso ocorre na natureza principalmente devido ao fato de que a vasta maioria das espécies de animais possui ninhadas gigantescas, com milhares ou mesmo milhões de filhotes dependendo da espécie (algo comum em anfíbios, répteis, peixes, crustáceos e invertebrados em geral), o que sempre resulta em taxas de sobrevivência baixíssimas. Por exemplo, uma única ninhada de uma rã comum possui em torno de 25 mil filhotes[3]; a de polvos, centenas de milhares[4]; as de salmão, bacalhau e atum, milhões[5], e a do peixe-lua chega a 300 milhões[6]. Invertebrados terrestres também podem colocar centenas, milhares ou mesmo milhões de ovos de uma única vez[7]. Em períodos de aproximada constância populacional é possível medir a taxa de mortalidade prematura a partir do tamanho da ninhada: se a população permaneceu aproximadamente constante durante algumas gerações, então em média sobreviveu apenas um descendente por adulto (isto é, dois por ninhada, e menos do que isso se há adultos que se reproduzem mais de uma vez na vida). Todo o restante nasce geralmente apenas para experimentar sofrimento intenso e morrer de modo bastante prematuro, muitas vezes sem nunca ter tido experiência positiva alguma[8].

Por essas razões, de acordo com a posição que vamos discutir, consumir animais, seja os criados para este fim, seja os que são capturados diretamente na natureza, beneficia-os justamente por lhes causar a morte.

2. O fato de que consumi-los acabaria com seu sofrimento justifica consumi-los?

Comecemos por analisar a alegação de que consumir os animais que são criados para consumo beneficia-os porque livra-os de uma vida repleta de sofrimento. O fato é: se temos razões para acabar com suas vidas porque estas são repletas de sofrimento, então isso nos dá razões ainda mais fortes para evitar que cheguem a nascer nesse contexto. Ao consumi-los, incentivamos tal produção, fazendo com que novos animais nasçam em tal contexto. Além disso, se o que nos importa é beneficiar tais animais, então tentar retirá-los de tal situação seria bem melhor do que matá-los. Assim, apontar para o fato de que a morte de alguém que vive uma vida repleta de sofrimento livra-o de tal sofrimento não tem a implicação de que, então, criar animais para consumo está justificado. Muito pelo contrário: essa é uma forte razão para se opor fortemente à exploração animal.

Diante disso, poderia ser objetado que, no caso dos animais que nascem na natureza, deixar de consumi-los não evita que novos cheguem a nascer, e como não estamos em condições de optar por fazer com que não cheguem a nascer, o melhor que podemos fazer é matá-los (e pescá-los contribuiria para isso, por exemplo). Entretanto, é falso que não estamos em condições de tentar fazer com que não cheguem a nascer. Por exemplo, poderiam ser conduzidos programas para fazer com que nasçam em menor quantidade. Um exemplo seria por meio da administração de contraceptivos, algo que já é feito muitas vezes[9]. Outro exemplo seria pesquisar quais tipos de vegetação, de solo ou outros componentes do ambiente contribuem para que haja uma menor quantidade de nascimentos nas espécies que maximizam a quantidade de filhotes[10]. Outra opção seria pesquisar quais animais, se estiverem presentes, contribuem indiretamente para que haja um saldo total de sofrimento menor. Por exemplo, herbívoros de grande porte, como elefantes, consomem uma grande quantidade de vegetação que, se estivesse disponível, contribuiria para haver uma maior quantidade de reproduções naquelas espécies de animais cuja vasta maioria nasce apenas para sofrer e morrer prematuramente[11]. Assim, proteger grandes herbívoros pode diminuir muito o total de animais que nasceria apenas para sofrer e morrer prematuramente. Em resumo, há muitas coisas que poderiam ser feitas para diminuir a quantidade de animais que nasceria na natureza para ter uma vida repleta de sofrimento[12].

Uma possível objeção seria apontar que tudo o que foi sugerido diz respeito a coisas que poderiam ser feitas para prevenir que novos animais nascessem para ter vidas repletas de sofrimento mas que, em relação aos que já nasceram, consumi-los beneficia-os porque mata-os, livrando-os de vidas repletas de sofrimento.

Um primeiro problema com essa objeção é que, se a preocupação é realmente o bem dos animais (como é alegado pela objeção), então em relação aos animais que já nasceram na pecuária industrial o que seria defendido é, por exemplo, ativismo de ação direta para resgatá-los (uma vez que, diferentemente do ato de consumi-los, isso não mata-os e nem faz com que novos seres nasçam em tal sistema). Já em relação aos animais que já nasceram na natureza poderia ser estudado como modificar o ambiente para que suas vidas sejam positivas. Isso é algo que poderia ser feito, por exemplo, por estudos na área de biologia do bem-estar[13]. Assim, seja lá se estivermos a falar de animais criados para serem explorados, seja lá se estivermos a falar de animais na natureza, apontar que suas vidas são negativas não é suficiente para justificar matá-los, pois a morte só é um benefício se não há nenhuma outra maneira de melhorar a vida em questão.

Além disso, a principal razão pela qual a vasta maioria dos animais na natureza têm vidas repletas de sofrimento é o fato de morrerem muito prematuramente. Se conseguem viver por mais tempo, normalmente aumentam as possibilidades de experiências positivas. Isso é assim porque normalmente os fatores que lhes causam sofrimento também causam suas mortes. Assim, ao se eliminar uma fonte de sofrimento para um animal, estamos tanto aumentando a probabilidade de ele ter experiências positivas quanto provavelmente aumentando o seu tempo de vida[14].

3. Conclusão

Seja quanto aos animais criados para serem consumidos, seja quanto aos animais que são capturados na natureza, há outras opções para tentar ajudá-los que não envolveriam matá-los. Isso, por si só, já torna fraca a alegação de que consumi-los está justificado porque livra-os de vidas repletas de sofrimento. Além disso, essas outras opções, diferentemente de consumi-los, evitariam que outros animais nascessem para ter vidas repletas de sofrimento (ou, pelo menos, não teriam a implicação de fazer com que mais animais nascessem para ter tal destino).

Isso mostra que alegação de que devemos consumi-los porque isso livra-os de vidas repletas de sofrimento é, provavelmente, uma racionalização, e não o motivo real pelo qual se defende o seu consumo. Isto é, o que é alegado é uma preocupação com os próprios animais, mas a preocupação real provavelmente é simplesmente o benefício próprio.

REFERÊNCIAS

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BOYLE, P.; RODHOUSE, P. Cephalopods: Ecology and fisheries. Oxford: Blackwell, 2005. 

BRUELAND, H. Highest lifetime fecundity. In: WALKER, T. J. (org.). University of Florida book of insect records. Gainesville: University of Florida, 1995, p. 41-43.

CUMMING, D. et al. Elephants, Woodlands and Biodiversity in MiomboWoodland in Southern Africa. South African Journal of Science, v. 93, 1997, p. 231-236.

CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022a.

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ÉTICA ANIMAL. Biologia do bem-estar. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 8 jul. 2019b.

ÉTICA ANIMAL. Dinâmica de populações e o sofrimento dos animais. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 27 out. 2015b.

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FROESE, R.; LUNA, S. No relationship between fecundity and annual reproductive rate in bony fish. Acta Ichthyologica et Piscatoria, v. 34, p. 11-20, 2004.

HORTA, O. Debunking the Idyllic View of Natural Processes: Population Dynamics and Suffering in the Wild. Télos, v. 17, p. 73-88, 2010b.

HORTA, O. Un paso adelante en defensa de los animales. Madrid: Plaz y Valdés, 2017a.

MASSEI, G. Fertility Control for Wildlife: A European Perspective. Animals v. 13 (3), n. 428, 2023.

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RASTOGI, R. K. et al. Ovarian activity and reproduction in the frog, Rana esculenta. Journal of Zoology, v. 200, p. 233-247, 1983.

SORYL, A. A.; MOORE, A. J.; SEDDON, P. J.; KING, M. R. The Case for Welfare Biology. Journal of Agricultural and Environmental Ethics, v. 34, n. 7, 2021.

TOMASIK, B. Net Primary Productivity by Land Type. Essays on Reducing Suffering, 17 jun. 2018.


Notas

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Para um relato em detalhes de como sofrem os animais criados para consumo, ver Horta (2017a, p. 65-97).

[3] Rastogi et al. (1983).

[4] Boyle e Rodhouse (2005).

[5] Baum e Meister (1971); Hinckley (1987).

[6] Froese; Luna (2004).

[7] Brueland (1995).

[8] Ver Horta (2010b); Ética Animal (2015b); Animal Ethics (2021, p. 55-9) e Cunha (2022, p. 28-34).

[9] Para uma análise dos programas de administração de contraceptivos para redução de populações de animais selvagens na Europa, ver Massei (2023).

[10] Ver, por exemplo, o estudo realizado por Tomasik (2018).

[11] Sobre a relação entre a presença de elefantes e uma redução significativa da biomassa disponível, ver Cumming et al. (1997) e Guldemond; VanAarde (2008).

[12] Sobre programas de proteção a elefantes e a relação disso com redução do sofrimento dos animais na natureza em geral, ver Pearce (2015)

[13] Sobre biologia do bem-estar, ver Ética Animal (2019b), Soryl et. al. (2021) e Faria; Horta (2022).

[14] Para uma análise detalhada sobre esse ponto, ver Cunha (2022, p. 259-261)


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.