Por que rejeitar o especismo e o que isso implica na prática

Luciano Carlos Cunha[1]

Palestra apresentada em 30 de agosto de 2024 no evento Roda de Conversa: “Especismo”, organizada pela ONG Fórum Animal como parte da campanha do Dia Mundial pelo Fim do Especismo.

Sumário

1. Introdução

O que há de errado com o especismo? Nesta apresentação, será defendido que é o fato de ser arbitrário, isto é, tendencioso. Mas, como saber quando uma atitude é tendenciosa? A seguir serão apresentados dois métodos que podemos utilizar para responder a essa questão (o princípio da igual consideração e o teste da imparcialidade) e, portanto, para saber quando uma atitude é ou não especista. Veremos também que ambos os métodos permitem detectarmos outras atitudes tendenciosas pouco percebidas até então.

2. O princípio da igual consideração

Em uma abordagem não tendenciosa, prejuízos e benefícios de magnitude similar recebem o mesmo peso, e prejuízos e benefícios maiores recebem peso maior do que prejuízos e benefícios menores. Essa é a essência do princípio da igual consideração. De acordo com tal princípio, o que importa é a magnitude dos danos em benefícios, e não, a qual raça, gênero ou espécie pertencem os indivíduos que teriam esses danos ou benefícios.

Uma das principais implicações do princípio da igual consideração é que dar uma consideração menor ao bem dos animais não humanos também é desfavorecê-los injustamente, ainda que seja dada alguma consideração ao seu bem.

Poderia ser objetado que nem sempre devemos priorizar evitar o prejuízo maior. Esse seria o caso se, por alguma razão, alguém tiver feito algo para merecer o prejuízo do qual padece. Entretanto, isso não poderia justificar dar um peso menor ao bem dos animais não humanos, pois a espécie a qual alguém pertence é resultado da loteria natural, não resultando de mérito ou demérito. Portanto, a espécie não pode justificar uma exceção à igual consideração.

3. Violações do princípio da igual consideração

O princípio da igual consideração é rotineiramente violado nas práticas que afetam os animais. Por exemplo, se os experimentos feitos nos animais fossem feitos em humanos, sujeitando-os a um prejuízo similar, seriam amplamente repudiados. Esse é um exemplo de caso no qual o princípio da igual consideração é violado porque prejuízos de magnitude similar recebem um peso distinto, dependendo de se a vítima é humana ou não humana.

Há, além disso, violações mais escancaradas do princípio da igual consideração, que acontecem não quando prejuízos similares recebem peso diferente, mas quando prejuízos menores recebem maior peso do que prejuízos maiores. O uso de animais para consumo é um exemplo. Se os humanos deixam de consumir os animais, a única coisa que têm de fazer é se alimentar com vegetais. Mas se os humanos escolhem consumi-los, os animais, além de geralmente levarem uma vida repleta de sofrimento, perdem a vida.

4. O especismo não se limita à exploração

Os animais não humanos são também desfavorecidos tendenciosamente mesmo em situações em que não são explorados. Um exemplo é a afirmação de que os animais não humanos, quando vítimas de processos naturais como doenças, sede, fome e desastres naturais, deveriam ser largados à própria sorte, mas que humanos em situações similares deveriam ser socorridos. Falaremos disso em mais detalhes mais adiante.

5. Especismo antropocêntrico e não antropocêntrico

Existem também formas de especismo não antropocêntricas, que hierarquizam o grau de consideração moral a diferentes animais não humanos. Por exemplo, geralmente animais como cães e gatos recebem mais consideração do que peixes, galinhas, porcos e vacas. Também é comum que animais considerados mais inteligentes recebam mais consideração do que animais considerados pouco inteligentes; que animais de grande porte recebam mais consideração do que os muito pequenos, como os insetos; que animais de espécies raras recebam mais consideração do que animais cujas populações são abundantes; que animais nativos recebam maior consideração do que animais cujas espécies são classificadas como invasoras e assim por diante. Como deve estar claro agora, tudo isso viola o princípio da igual consideração.

Entretanto, o antropocentrismo é, dentre todas as formas de especismo, a mais prevalente. Até mesmo os animais favorecidos por formas de especismo não antropocêntricas recebem tipicamente uma consideração muito menor do que recebem os humanos, sendo feitas a eles coisas que jamais seriam consideradas aceitáveis se feitas a humanos. Além disso, muito mais indivíduos são mortos em nome do especismo antropocêntrico do que em nome de qualquer outra coisa.

6. Para haver especismo, vítima e beneficiário precisam ser de espécies distintas?

O princípio da igual consideração explica a irrelevância moral do critério da espécie em geral, independentemente de serem feitas ou não hierarquias entre membros de distintas espécies. Por exemplo, por vezes é dito que usar animais em experimentos é correto desde que isso beneficie outros animais da mesma espécie. Para ver o problema com esse argumento, considere que no passado vítimas humanas já foram utilizadas em experimentos que visavam beneficiar outros humanos. O fato de as vítimas e os beneficiários pertencerem à mesma espécie não torna justificáveis tais atitudes, pois elas violam igualmente o princípio da igual consideração ao atribuírem peso diferenciado ao bem dos indivíduos afetados.

7. Outras formas de discriminação pouco percebidas

Outra implicação importante do princípio da igual consideração é que ele rejeita hierarquias de estatura moral não apenas baseadas em raça, gênero e espécie, mas também baseadas em tamanho, graus de capacidades cognitivas e no tipo de substrato que compõe o corpo do ser senciente (isto é, se é ou não orgânico). Por exemplo, atualmente todo ser senciente é também um animal mas, se no futuro vierem a existir seres sencientes não orgânicos (por exemplo, em meios digitais), de acordo com o princípio da igual consideração o bem desses seres deveria receber o mesmo peso do que o bem de seres sencientes orgânicos. Em resumo, de acordo com o princípio da igual consideração, todos os seres que são alguém contam por igual.

8. O teste da imparcialidade

Outro método bastante utilizado para averiguar se uma atitude é ou não tendenciosa é verificar se ela passa ou não no teste da imparcialidade. Uma maneira de aplicar tal teste às nossas decisões que afetam os animais não humanos é perguntar se consideraríamos a decisão em questão justa:

(1) Se não soubéssemos a espécie dos prejudicados e dos beneficiados por ela;

(2) Se não soubéssemos a espécie a qual pertencemos;

(3) Se suas vítimas fossem humanas, padecendo de danos de mesma magnitude;

(4) Se os beneficiários fossem animais não humanos, e os prejudicados fossem humanos;

(5) Se tivéssemos que receber os prejuízos que ela causa para poder alcançar os benefícios obtidos por ela;

(6) Se tivéssemos que receber os prejuízos que ela causa para que outros indivíduos pudessem alcançar os benefícios obtidos por ela.

(7) Se tivéssemos que viver em sequência as vidas de cada um dos indivíduos afetados por ela sejam os beneficiados, sejam os prejudicados.

Sob quaisquer uma dessas condições, parece que veríamos como altamente arbitrário dar uma consideração maior aos humanos. Se é assim, então o especismo não passa no teste da imparcialidade: ele só é defendido porque os humanos sabem que não serão suas vítimas e sabem que colherão seus benefícios.

Esse teste também mostra que os animais não humanos são injustiçados não apenas quando são explorados, mas também, por exemplo, em situações onde não recebem a ajuda de que precisam e na pouca importância dada à causa animal. Veremos algo sobre isso a seguir.

9. Sofrimento dos animais selvagens

Os animais que vivem na natureza são prejudicados em uma base diária por conta de fatores como fome, sede, doenças, desastres naturais, condições meteorológicas hostis, lesões físicas, conflitos etc. Além disso, taxas de mortalidade prematuras altíssimas decorrem da estratégia reprodutiva predominante, que consiste em ter milhares ou mesmo milhões de filhotes por ninhada (em populações estáveis sobrevivem em média apenas dois por ninhada). Uma vez que esse tipo de situação ocorre independentemente de ação humana (já era assim desde muito antes do aparecimento da espécie humana), a visão padrão é a de que devemos “deixar a natureza seguir o seu curso”. Entretanto, parece que, sob condições de imparcialidade, defenderíamos exatamente o oposto, isto é, que recursos deveriam ser destinados para prevenir/minimizar essa quantidade gigantesca de sofrimento e de mortes.

10. Importância da causa animal

Uma pergunta comumente feita aos defensores dos animais é: “por que se preocupar com os animais enquanto há humanos precisando de ajuda?”. Uma visão comum é a de que, mesmo que os animais estejam normalmente em uma situação muito pior, mesmo que a quantidade total de vítimas não humanas seja gigantescamente maior, e mesmo que haja uma quantidade muito maior de pessoas já investindo em ajudar humanos, deveríamos, ainda assim, priorizar os humanos. Entretanto, jamais diríamos isso se não soubéssemos a espécie das vítimas em cada um dos casos. De um ponto de vista não tendencioso, priorizaríamos os problemas que têm mais vítimas, no qual as vítimas estão em pior situação, e que são mais negligenciados.

11. Conclusão

Dado o que vimos, parece claro que o especismo viola o princípio da igual consideração e não passa no teste da imparcialidade. Essa parece ser a razão central pela qual o especismo é injusto, uma vez que tanto o princípio da igual consideração quanto o teste da imparcialidade são componentes essenciais da justiça.


Notas

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.