A objeção de que seres futuros são apenas seres em potencial

Luciano Carlos Cunha[1]

Sumário

1. A objeção de que devemos nos preocupar apenas com os seres que já existem

Uma das objeções mais comuns à preocupação com o futuro em longo prazo defende que os seres sencientes futuros são apenas seres em potencial, isto é, seres que ainda não existem e que, talvez, nem cheguem a existir. Segundo essa objeção, devemos nos preocupar apenas com os seres que já existem.

Considere agora as seguintes causas:

  • Difundir o veganismo.
  • Tentar regulamentações para fazer com que os animais explorados sofram menos.
  • A proteção a animais abandonados.
  • Lutar para diminuir o sofrimento dos animais selvagens..

Segundo a objeção lutar por essas causas faz sentido porque “são sobre ajudar quem já existe”. Por outro lado, mantém a objeção, se preocupar com o futuro em longo prazo não faz sentido, pois diz respeito a seres que talvez nem cheguem a existir.

Essa objeção é por vezes levantada especialmente em relação à preocupação com a possibilidade do surgimento de seres sencientes não orgânicos no futuro. Segundo a objeção não devemos nos preocupar com isso porque é algo que talvez nem chegue a ocorrer. Por outro lado, conclui a objeção, seres sencientes orgânicos já existem e, por isso, devemos nos preocupar com eles.

Será essa uma objeção plausível? É o que discutiremos neste texto.

2. Devemos nos preocupar somente com os seres sencientes já existentes?

Uma primeira maneira de questionar essa objeção é questionar a pressuposição de que devemos nos preocupar somente com os seres sencientes já existentes até o momento. Uma maneira de questioná-la é defender que, se a razão para nos preocuparmos com a maneira como nossas decisões afetarão os seres sencientes já existentes é a possibilidade de nossas decisões os afetarem positiva ou negativamente, então isso implica que temos a mesma razão para nos preocuparmos com a maneira como nossas decisões afetarão os seres sencientes que ainda não existem, mas que podem vir a existir ou não (pois tais decisões também podem afetá-los positiva ou negativamente).

Poderia ser objetado que, se temos inúmeras possibilidades futuras de seres sencientes, e essas possibilidades não chegam a se realizar (isto é, esses seres não chegam a existir), ninguém é prejudicado. Por exemplo, suponhamos que uma mulher está a decidir sobre se engravida ou não e, caso decidir engravidar, se é melhor engravidar neste ou no próximo mês. Caso decida engravidar neste mês, parece que não faz sentido dizer que o indivíduo que existiria se o óvulo do mês seguinte tivesse sido fecundado foi prejudicado por não ter chegado a existir. Analogamente, caso decida engravidar no mês seguinte, também parece que não faz sentido dizer que o indivíduo que nasceria se o óvulo deste mês fosse fecundado foi prejudicado por não ter chegado a existir. Igualmente, caso decida não engravidar, parece que não faz sentido dizer que cada um dos indivíduos que nasceriam, seja do óvulo deste mês, do mês seguinte, ou de qualquer um dos óvulos futuros, foram prejudicados por não chegarem a existir.

Em resumo, em qualquer um dos casos, temos apenas meras possibilidades de indivíduos futuros que não chegam a se realizar. Isso é diferente, por exemplo, de matar um ser que já é senciente. É somente nesse caso que há um indivíduo que já existe e que, portanto, é prejudicado com a morte. É por isso, conclui a objeção, que não temos deveres em relação a possíveis seres sencientes futuros.

O que a objeção aponta quanto aos fatos está correto. Entretanto, isso não implica a conclusão de que não temos deveres em relação a possíveis seres sencientes futuros. Isso se dá por duas razões:

Em primeiro lugar, alguém poderia aceitar tudo o que a objeção diz e, ainda assim, defender que temos um dever de fazer com que a história de mundo daqui para frente contenha o máximo possível de seres sencientes com vidas positivas. Esse dever não seria um dever para com essa ou aquela possibilidade futura de ser senciente, e sim, um dever impessoal de trazer à tona as melhores consequências[2].

Em segundo lugar, mais importante, mesmo que alguém negue a existência de deveres impessoais, há pelo menos duas maneiras de termos deveres para com indivíduos futuros específicos. Esses deveres podem ser resumidos assim:

Mesmo que neguemos um dever de fazer existir novos seres sencientes, ainda teríamos de reconhecer deveres em relação a seres futuros em pelo menos dois tipos de situações:

  • Não fazer existir novos seres sencientes para viverem vidas repletas de sofrimento;
  • Uma vez que um ser senciente futuro existirá necessariamente, tentar fazer com que sua vida contenha menos sofrimento do que outra maneira teria.

Ambos os deveres poderiam ser reconhecidos mesmo por quem rejeita um dever de fazer com que possibilidades futuras de seres sencientes cheguem a se realizar[3]. E, ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, como será explicado no próximo item, esses dois deveres são os focos centrais do veganismo, das tentativas de fazer com que os animais explorados sofram menos, da proteção a animais abandonados e também da causa que visa diminuir o sofrimento dos animais selvagens.

3. Normalmente a luta pelos animais é a luta por possíveis seres futuros

Vimos que a objeção que estamos a discutir assume que causas como o veganismo, as tentativas de fazer com que os animais explorados sofram menos, a proteção a animais abandonados e a causa que visa diminuir o sofrimento dos animais selvagens fazem sentido porque “são sobre seres sencientes que já existem”. Enquanto isso, mantém a objeção, a preocupação com o futuro em longo prazo não faz sentido porque “é sobre seres que ainda não existem (e que talvez não cheguem a existir)”.

Entretanto, isso é equivocado. Cada uma daquelas causas também é majoritariamente sobre a consideração por seres futuros. Veremos esse ponto a seguir em cada uma delas:

O objetivo central do veganismo não é sobre ajudar animais que já existem. O objetivo central do veganismo é diminuir a quantidade de animais que nasceria para ter uma vida repleta de sofrimento e para ser assassinado. Portanto, o veganismo é um reconhecimento do dever de não fazer existir novos seres sencientes para viverem vidas repletas de sofrimento.

Considere agora as tentativas de regulamentar a exploração animal para que os animais sofram menos. Para efeito de argumentação, deixemos de lado a questão sobre se essas regulamentações realmente diminuem o sofrimento de tais animais. Suponhamos que diminuam. Mesmo se esse for o caso, na vasta maioria das vezes quando uma regulamentação chega a vigorar, os animais que serão cobertos por tal regulamentação não serão aqueles que já haviam nascido quanto a proposta de regulamentação foi feita. É claro, pode haver algumas exceções, como no caso de vacas e porcas que são exploradas por vários anos. Entretanto, a vasta maioria dos animais são mortos em questão de dias ou meses no máximo. Assim, os ativistas que tentam tais regulamentações estão reconhecendo um dever de, uma vez que um ser senciente chegará a existir no futuro, tentar fazer com que sua vida contenha menos sofrimento do que outra maneira teria.

Passemos agora a considerar o caso da proteção a animais abandonados como cães e gatos. Novamente, aqui é possível que algumas ações sejam direcionadas a beneficiar animais que já existem, como no caso de oferecer comida, abrigo, tratamento médico, vacinação ou adoção responsável. Entretanto, um dos focos do ativismo nessa área é justamente a esterilização, visando evitar que nasçam mais animais em tais situações. Tal foco é, novamente, o reconhecimento do dever de não fazer existir novos seres sencientes que teriam vidas repletas de sofrimento.

O mesmo ocorre em relação à causa que visa diminuir o sofrimento dos animais selvagens[4]. Novamente, várias ações que visam ajudar animais selvagens são direcionadas a ajudar animais que já existem, como  vacinação e tratamento de doenças, a ajuda a animais em incêndios e em outros desastres naturais, a assistência a animais órfãos, o resgate de animais presos e programas para atender as necessidades básicas dos animais. Entretanto, a vasta maioria do sofrimento dos animais selvagens e de suas mortes prematuras ocorre por conta das enormes taxas de reprodução[5]. A maioria das espécies de animais na natureza se reproduz em ninhadas que contém desde milhares até muitos milhões de filhotes. Por exemplo, uma única ninhada de uma rã comum possui em torno de 25 mil filhotes[6]; a de polvos, centenas de milhares[7]; as de salmão, bacalhau e atum, milhões[8], e a do peixe-lua chega a 300 milhões[9]. Invertebrados terrestres também podem colocar centenas, milhares ou mesmo milhões de ovos de uma única vez[10]. Em períodos de aproximada constância populacional, a média de sobreviventes de cada ninhada é de apenas dois filhotes (isto é, um descendente por progenitor). Todo o restante normalmente nasce para experimentar o sofrimento de morrer, sem nenhuma experiência positiva. Por essa razão, o foco principal da proposta de diminuir o sofrimento e as mortes prematuras de animais selvagens é também fazer com que menos indivíduos cheguem a nascer em tais condições. É, também, portanto, o reconhecimento do dever de impedir que novos seres sencientes cheguem a existir para terem vidas repletas de sofrimento.

Assim, em todas essas lutas, o foco principal é, ou tentar fazer com que seres que existirão no futuro tenham menos sofrimento, ou tentar impedir que novos seres sencientes cheguem a existir para ter vidas repletas de sofrimento. Em resumo, a causa animal é normalmente sobre seres futuros. Se é assim, então não há razão para defender que não devemos nos preocupar com o futuro em longo prazo, apontando que tal preocupação diria respeito a seres que ainda não existem e que podem ou não chegar a existir. Na preocupação com o futuro em longo prazo, igualmente, a meta também é tentar fazer com que seres que existirão no futuro tenham menos sofrimento e tentar fazer com que novos seres não cheguem a existir para ter vidas repletas de sofrimento (e, adicionalmente, dependendo da vertente, a meta de fazer com que novos seres cheguem a existir para ter vidas positivas). Isso será assim seja lá se estivermos a falar de possíveis seres sencientes futuros orgânicos ou não orgânicos.

REFERÊNCIAS

BAUM, E. T.; MEISTER, A. L. Fecundity of Atlantic Salmon (Salmo salar) from two Maine rivers. Journal of the Fisheries Research Board of Canada, v. 28, p. 764-767, 1971.

BOYLE, P.; RODHOUSE, P. Cephalopods: Ecology and fisheries. Oxford: Blackwell, 2005. 

BRUELAND, H. Highest lifetime fecundity. In: WALKER, T. J. (org.). University of Florida book of insect records. Gainesville: University of Florida, 1995, p. 41-43.

CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022a.

FROESE, R.; LUNA, S. No relationship between fecundity and annual reproductive rate in bony fish. Acta Ichthyologica et Piscatoria, v. 34, p. 11-20, 2004.

HINCKLEY, S. The reproductive biology of walleye pollock, Theragra chalcogramma, in the Bering Sea, with reference to spawing stock structure. Fishery Bulletin, v. 85, p. 481-498, 1987.

HORTA, O. Debunking the Idyllic View of Natural Processes: Population Dynamics and Suffering in the Wild. Télos, v. 17, p. 73-88, 2010b.

RASTOGI, R. K. et al. Ovarian activity and reproduction in the frog, Rana esculenta. Journal of Zoology, v. 200, p. 233-247, 1983.

SINGER, P. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002 [1993].

VIŠAK. T. Killing Happy Animals: Explorations in Utilitarian Ethics. The Palgrave Macmillan Animal Ethics Series, 2013.


Notas

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Essa posição é conhecida como ponto de vista total. Ver Singer (2002[1993], p. 111-115) e Višak (2013, p. 71-8).

[3] Essa posição é conhecida como ponto de vista da existência prévia. Ver Singer (2002[1993], p. 111-115) e Višak (2013, p. 71-8).

[4] Para os fundamentos filosóficos dessa causa, ver Cunha (2022).

[5] Para uma explicação detalhada sobre isso, ver Horta (2010).

[6] Rastogi et al. (1983).

[7] Boyle e Rodhouse (2005).

[8] Baum e Meister (1971); Hinckley (1987).

[9] Froese; Luna (2004).

[10] Brueland (1995).


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.

Uma resposta para “A objeção de que seres futuros são apenas seres em potencial”.

  1. […] Uma resposta a essa objeção é apontar que nossas decisões podem fazer com que tais possibilidades cheguem a se tornar indivíduos reais no futuro, e também podem fazer com que suas vidas sejam mais positivas ou mais negativas. Por exemplo, mesmo quem defende que não há dever de produzir novos seres sencientes para terem vidas positivas pode reconhecer que há um dever de não produzir novos seres sencientes para terem vidas negativas. E também pode reconhecer que, se um ser necessariamente existirá no futuro independentemente do que decidirmos, devemos decidir agora de modo a evitar prejudicá-lo e a buscar beneficiá-lo. Esses pontos são discutidos em mais detalhes neste texto. […]

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