Uma introdução às teorias do bem-estar

Luciano Carlos Cunha[1]

1. O que as teorias do bem-estar visam investigar?

As teorias do bem-estar investigam o que é bom/ruim, melhor/pior para os indivíduos[2]. Isto é, dizem respeito a avaliar se um indivíduo está bem ou mal, melhor/pior e em que medida.

O que essas teorias visam descobrir, antes de tudo, é quais coisas são boas/ruins em si para os indivíduos, e não apenas instrumentalmente (isto é, enquanto meio). Isso se dá por motivos óbvios: só podemos saber se algo é bom enquanto meio se ele conduz a coisas boas em si ou evita coisas ruins em si . Para isso, precisamos investigar quais coisas são boas;ruins em si.

Existem três fatores principais em discussão no debate sobre quais coisas são boas/ruins em si em relação ao bem-estar dos indivíduos: experiências, preferências e bens objetivos. Vejamos cada um deles separadamente, para em seguida ver as teorias que são baseadas neles:

2. Fatores na avaliação do bem-estar dos indivíduos

2.1.Experiências

Algumas visões defendem que experiências positivas (que também são referidas pelos termos felicidade, prazer, desfrute etc.) são algo bom em si e/ou que as experiências negativas (que também são referidas pelos termos dor e sofrimento) são algo ruim em si.

Quanto a esse parâmetro, haveria duas maneiras básicas de alguém ser prejudicado: quando tem uma experiência negativa (isto é, quando sofre) e quando é impedido de ter uma experiências positiva (como quando morre, por exemplo). Analogamente, haveria duas maneiras básicas de alguém ser beneficiado: quando tem uma experiência positiva (isto é, quando sente prazer) ou quando é impedido de ter uma experiência negativa (quando tem uma dor aliviada, por exemplo).

É importante observar que se está aqui a falar que as experiências negativas são ruins em si e que as experiências positivas são boas em si. Isso não é negar que experiências negativas por vezes são boas instrumentalmente (quando evitam algo negativo ou conduzem a algo positivo) e que experiências positivas por vezes são negativas instrumentalmente (quando conduzem a algo negativo ou evitam algo positivo). Vimos exemplos disso em outro texto.

2.2. Preferências

Algumas visões defendem que a satisfação de preferências (entendidas como estados mentais na forma de desejos) é algo bom em si  (isto é, independentemente de se satisfazê-las conduz ou não à experiências positivas) e/ou que a frustração de preferências é algo ruim em si (isto é, que frustrá-las é algo ruim, independentemente de se isso resulta ou não em sofrimento).

As visões desse tipo distinguem-se entre si de acordo com os tipos de desejos cuja satisfação consideram boa em si e/ou sua frustração ruim em si: todo e qualquer desejo que o indivíduo tiver? Somente dos desejos que alguém teria se tivesse as informações relevantes para o seu bem-estar? Somente dos desejos que alguém teria se fosse racional e tivesse as informações relevantes para o seu bem-estar?

2.3. Bens objetivos

Algumas visões defendem que certas coisas são bens objetivos, no sentido de serem algo bom em si, independentemente de gerarem ou não experiências positivas ou de estarem ou não de acordo com as preferências de quem os teria.

Por exemplo, há quem defenda que a amizade verdadeira, apesar de ser preferida pela maioria das pessoas, e apesar de normalmente proporcionar experiências positivas, seria boa em si (isto é, seria boa mesmo que não fosse preferida por ninguém e mesmo que não proporcionasse experiências positivas).

Outros itens frequentemente listados como bens objetivos são o conhecimento e o desenvolvimento dos talentos. Cada visão desse tipo elabora listas com itens diferentes. Essas visões defendem que o que é ruim em si é a ausência desses bens objetivos.

3. Teorias do bem-estar monistas e pluralistas

Quanto à assumirem que um ou mais dos três fatores acima são relevantes em si para determinar o bem-estar, as teorias podem ser classificadas como monistas ou pluralistas.

As três principais teorias do bem-estar são o experiencialismo[3], o preferencialismo[4] e as teorias de lista objetiva[5].

3.1. Experiencialismo

Para o experiencialismo, o que é bom em si são as experiências positivas e o que é ruim em si são as experiências negativas. O valor de todo o restante é somente instrumental a essas coisas.

O experiencialismo também é conhecido como hedonismo. Entretanto, aqui não usaremos esse nome porque na linguagem comum ele significa algo bem diferente do que essa teoria propõe. Na linguagem comum, um hedonista é alguém que busca os prazeres momentâneos sem se preocupar com o seu bem-estar em longo prazo. Já a teoria hedonista do bem-estar (isto é, o experiencialismo) diria que tal indivíduo não está agindo racionalmente para maximizar o seu bem-estar, pois tal comportamento fará com que sua vida tenha provavelmente mais experiências negativas e/ou menos experiências positivas.

3.2. Preferencialismo

Já para o preferencialismo (também conhecido como teoria baseada em desejos) o que é bom em si é a satisfação de preferências, e o que é ruim em si é a frustração de preferências. O valor de todo o restante é somente instrumental a essas coisas.

3.3. Comparando experiencialismo e preferencialismo

Comparemos essas duas teorias. O experiencialismo manterá que normalmente satisfazer preferências é algo bom, mas porque normalmente isso conduz à experiências positivas ou evita experiências negativas. Analogamente, o preferencialismo manterá que normalmente promover experiências positivas e evitar experiências negativas é algo bom, mas apenas porque fazê-lo coincide com o que os indivíduos preferem.

Entretanto, nem sempre essas coisas coincidem. Por exemplo, é possível que alguém tenha uma preferência por algo que lhes causará sofrimento, ou que não tenha uma preferência por algo que lhe causaria felicidade. No item 4 voltaremos em exemplos de situações desse tipo.

3.4. Versões negativas do experiencialismo e preferencialismo

Também são possíveis versões negativas do experiencialismo e do preferencialismo. Segundo a versão negativa do experiencialismo, as experiências negativas são ruins em si, mas as experiências positivas não são boas em si. Segundo essa versão, o que é bom para os indivíduos é apenas a ausência do sofrimento.

Analogamente, segundo a versão negativa do preferencialismo, ter desejos frustrados é ruim em si, mas ter desejos satisfeitos não é bom em si. Segundo essa versão, a satisfação de desejos só é boa porque não implica a sua frustração, mas o melhor para o indivíduo seria não ter desejos, para não correr o risco de não realizá-los. É importante observar que, por ser uma forma de preferencialismo, essa versão defende que ter desejos frustados é algo ruim em si, e não porque pode ocasionar sofrimento.

O que vimos acima são exemplos de teorias monistas do bem-estar, pois defendem que há apenas um aspecto com valor/desvalor em si.

3.5. Teorias de lista objetiva

As teorias de lista objetiva podem ser monistas ou pluralistas. Serão monistas quando constroem listas com um único item. Entretanto, normalmente as teorias de lista objetiva são pluralistas, pois afirmam que há vários itens que possuem valor em si de maneira independente (esses itens formam as diversas listas das várias teorias de lista objetiva).

3.6. Outras possibilidades de teorias pluralistas

É importante lembrar que também são possíveis outras combinações desses fatores. Por exemplo, afirmar que tanto experiências positivas quanto preferências satisfeitas são algo bom em si. Ou, que experiências positivas e também certos itens de lista objetiva são bons em si. Ou, que preferências satisfeitas e também certos itens de lista objetiva são bons em si. Ou ainda, que, tanto experiências positivas, quanto preferências satisfeitas e itens de lista objetiva são bons em si. As possibilidades são muitas.

Vejamos a seguir exemplos para vermos como as diversas teorias do bem-estar se aplicariam.

4. Exemplos para ilustrar as diferenças entre as abordagens

4.1. O caso da preferência prejudicial

Suponhamos que uma criança tenha um desejo cuja realização lhe será prejudicial (resultará em seu sofrimento posterior ou mesmo em sua morte). Imaginemos, por exemplo, que ela deseja colocar um saco plástico na cabeça cobrindo todo o seu rosto, por não saber que isso lhe sufocará.

O experiencialismo diria que, caso a preferência dessa criança seja realizada, ela não é beneficiada sob aspecto algum, pois tal realização resultará em experiências negativas e possivelmente na privação de experiências positivas (por exemplo, caso ela morra).

Já quanto ao preferencialismo, à primeira vista poder-se-ia pensar que tal teoria teria de dizer que a criança em questão é beneficiada se tiver sua preferência realizada, mesmo que sofra depois (e mesmo que morra). Contudo, um preferencialista poderia afirmar que, se a criança tiver essa preferência satisfeita, será beneficiada sob certo aspecto (teve uma preferência satisfeita) mas que, tudo considerado, será muito mais prejudicada do que beneficiada justamente porque a realização de sua preferência, nesse caso, ou resulta na frustração de outras preferências mais importantes que possui (como não sofrer) ou mesmo impede a realização de qualquer outra preferência que tiver (caso venha a morrer).

Existe outra variante do preferencialismo que manteria que a criança não seria beneficiada sob aspecto algum se tiver realizada essa preferência. Essa variante afirma que as preferências que importam para o bem-estar não são aquelas que de fato temos, mas as que teríamos se tivéssemos disponíveis as informações relevantes para o nosso bem-estar. Entretanto, mesmo tendo as informações disponíveis, ainda podemos ter preferências que são irracionais (por termos feito deduções equivocadas, por exemplo). Por isso, uma variante dessa posição defende que as preferências que importam para o bem-estar são as que teríamos se fôssemos racionais e tivéssemos disponíveis as informações relevantes para o nosso bem-estar[6].

Outra abordagem possível é manter uma perspectiva pluralista segundo a qual tanto as experiências positivas são consideradas boas em si (e as experiências negativas ruins em si) quanto a satisfação das preferências é considerada boa em si (e a frustração de preferências ruim em si). Nesse caso, essa visão pluralista dirá que a criança em questão foi beneficiada sob um aspecto (teve uma preferência satisfeita) mas que, tudo considerado, foi muito mais prejudicada (pois em seguida teve experiências negativas ou o impedimento de experiências positivas, e também teve frustradas outras preferências que possuía, ou as preferências que possuiria se fosse racional e com as informações relevantes disponíveis). Essa posição pluralista, caso incluísse também itens de lista objetiva, poderia dizer que tal criança seria prejudicada caso a realização desse desejo impedisse ela de desfrutar de algum desses itens.

4.2. O caso da preferência do moribundo

Suponhamos que alguém esteja à beira da morte e tenha um último desejo: que seu corpo seja enterrado ao lado do corpo dos pais.

Segundo as visões que dizem que apenas experiências são diretamente relevantes para o bem-estar, tal indivíduo não será beneficiado se esse desejo for satisfeito, nem será prejudicado se não for. Como é um desejo que só poderá ser realizado depois que ele morrer, a realização desse desejo não aumentará as experiências positivas desse indivíduo nem diminuirá suas experiências negativas, nem sua frustração fará com que tenha alguma experiência negativa nem impedirá nenhuma experiência positiva (assumindo aqui que não há vida após a morte).

Já as visões que defendem que a satisfação de preferências é algo bom em si dirão que o indivíduo em questão será beneficiado se o desejo em questão for satisfeito, e que será prejudicado se não for, mesmo que o indivíduo não exista mais. Por exemplo, poderiam dizer que algumas preferências são orientadas para o futuro, e que seu portador é beneficiado se elas forem satisfeitas, mesmo que já tenha morrido quando isso ocorrer. Isso vale tanto para as visões que defendem que as preferências são tudo o que importa (como no preferencialismo) quanto para as que defendem que as preferências também importam (como em visões pluralistas).

4.3. O caso da verdade dolorosa e que alguém não deseja saber

Suponhamos agora que uma pessoa descobre que alguém que estimava muito já faleceu. Imaginemos que essa pessoa tem um sofrimento intenso por descobrir a verdade, e que também desejava não ter descoberto a verdade.

As teorias centradas em experiências e as centradas em preferências (e as teorias que combinam ambas as coisas) diriam que essa pessoa não foi beneficiada sob aspecto algum por ter descoberto a verdade.

Agora, imaginemos que uma teoria de lista objetiva mantenha que conhecer a verdade é bom em si. Essa teoria diria que essa pessoa foi beneficiada sob certo aspecto: descobriu a verdade.

À primeira vista, poderíamos pensar que tal teoria de lista objetiva tem de necessariamente afirmar que essa pessoa tudo considerado foi beneficiada por descobrir a verdade. Contudo, isso é assim somente se a teoria em questão afirmar que a única coisa que possui valor em si é a verdade (ou, que saber a verdade é um trunfo sobre todos os outros fatores).

Entretanto, imaginemos que a teoria em questão reconhecesse que ter experiências positivas e ter preferências satisfeitas também são coisas boas em si.  Nesse caso, essa teoria diria que, apesar de tal pessoa ter sido prejudicada sob dois aspectos (teve uma experiência negativa e teve uma preferência frustrada), foi beneficiada em pelo menos um aspecto: descobriu a verdade (que, nessa teoria, é algo visto como bom em si).

É claro, nesse caso, saber se ter descoberto a verdade foi melhor ou pior tudo considerado dependerá de como comparar o peso do valor das preferências, das experiências e dos itens da lista objetiva (e de se isso é possível). Discutimos algumas maneiras de comparar em outro texto.

4.4. O caso da violação inconsciente

Imaginemos que alguém é violentado enquanto está totalmente inconsciente. Por estar totalmente inconsciente, esse alguém não teve nenhuma experiência negativa ao ser violentado. Imagine também que o fato de ser violentado não lhe impedirá de desfrutar de nenhuma experiência positiva, e nem lhe trará experiências negativas posteriores. Quando acordar, sequer saberá que foi violentado.

De acordo com visões que unicamente valorizam em si ter experiências positivas e evitar experiências negativas, tal indivíduo não foi prejudicado. Em defesa de tal visão, seus proponentes poderiam oferecer o seguinte contraexemplo: imaginemos que alienígenas com uma tecnologia superavançada estejam a fazer exatamente isso conosco há vários anos toda vez que vamos dormir. Se nada disso nos prejudicou até agora, diriam os proponentes desse contraexemplo, é porque não há como prejudicar alguém sem lhe proporcionar experiências negativas nem lhe impedir experiências positivas.

Já de acordo com visões centradas em preferências, a resposta pode variar. Aquelas centradas nas preferências que o indivíduo de fato possui diriam que, se alguém prefere que isso não aconteça consigo, então será prejudicado se acontecer, mesmo que isso não afete suas experiências. Entretanto, terão que dizer também que alguém que não formou ainda uma preferência por não ser violentado enquanto está inconsciente (por exemplo, uma criança pequena) não seria prejudicado caso isso acontecesse. Já aquelas centradas nas preferências que alguém teria se tivesse as informações relevantes e fosse racional poderiam dizer que tal indivíduo foi prejudicado independentemente de já ter ou não uma preferência quanto a isso, pois provavelmente formaria uma preferência por não ser violentado se soubesse do que iria lhe acontecer.

Por fim, quanto às visões centradas em itens objetivos, a resposta dependerá de que itens elas valorizam em si. Se elas valorizarem, por exemplo, as decisões autônomas que alguém teria sobre o que vai acontecer com o próprio corpo, provavelmente diriam que tal indivíduo foi prejudicado por não poder escolher nesse caso. Entretanto, elas teriam que dizer que os indivíduos incapazes de tomar decisões autônomas não seriam prejudicados se isso ocorresse.

4.5. O caso da máquina de felicidade

Um dos experimentos de pensamento mais utilizados contra a ideia de que somente as experiências importam para o bem-estar é conhecido como o caso da máquina de felicidade[7]. A seguir reconstituiremos o exemplo, e em seguida o discutiremos.

O exemplo consiste em pensar que, se tudo o que importa é ter experiências positivas e/ou evitar experiências negativas, então seríamos beneficiados se pudéssemos viver em um mundo que nos proporcionasse somente experiências maravilhosas, mas que fosse totalmente virtual, como no filme Matrix. Por exemplo, você come sua sobremesa favorita e o gosto dela é delicioso, mais delicioso do que no mundo real, mas a sobremesa em questão é virtual.

O objetivo desse exemplo é sugerir que, se não gostaríamos de viver em tal máquina, então é porque achamos que importa não apenas que as experiências sejam positivas, mas que o estímulo que as faz surgir seja real. A seguir veremos um resumo do debate sobre esse experimento.

Uma primeira maneira de responder a esse experimento é simplesmente defender que seríamos beneficiados se tivéssemos que viver em tal máquina. Um contraexemplo que poderia ser dado nesse sentido é o seguinte: imaginemos que descobrimos que desde que nascemos até o momento, já estamos em tal máquina. Tudo o que experimentamos até hoje foi virtual. Imaginemos também que descobrimos uma maneira de sairmos dessa realidade virtual e ir para a realidade efetiva, mas que a realidade efetiva será muito pior para nós do que é nossa vida atual, virtual: teremos apenas sofrimento excruciante. Isso sugere que, do nosso ponto de vista, é melhor a realidade virtual.

Uma possível resposta a esse contraexemplo é defender que ele mostra apenas que é mais importante evitar ter experiências negativas e buscar experiências positivas, mas isso não mostra que é tudo o que importa. Nesse sentido, poderia ser defendido que, se pudéssemos comparar duas realidades, uma virtual e outra efetiva, onde ambas fossem iguais em termos de experiências positivas e negativas, e fosse melhor para nós escolher a efetiva, então parece que as experiências não são tudo o que importa.

Novamente, uma resposta a esse segundo exemplo é dizer que, nesse caso, tanto faz. Outro contraexemplo que poderia ser dado nesse sentido é pensar no seguinte: imagine sua sobremesa favorita. Imaginemos que você descubra que a última vez que você a comeu, ela era virtual. A questão é: do ponto de vista de sua experiência, isso faz diferença? A experiência não foi tão boa por causa disso? A sobremesa foi menos gostosa por causa disso? Parece que não.

Uma resposta possível a esse contraexemplo consiste em primeiro reconhecer que o valor de algumas coisas (muitas coisas, talvez) parece residir unicamente no tipo de experiência que proporcionam, mas em seguida defender que isso não seria assim para todas as coisas. Pode não fazer diferença saber se a sobremesa que comemos é virtual ou não, desde que proporcione o mesmo prazer. Entretanto, suponhamos que descobríssemos que todos os indivíduos que amamos na verdade não são sencientes: são apenas simulações virtuais dos indivíduos reais. Imagine que também descobrimos que os indivíduos reais estão em outra realidade, e que podemos nos mudar para lá se quisermos. Entretanto, se nos mudarmos, o preço a pagar para estar com os seres reais que amamos é ter menos experiências positivas do que teríamos no mundo virtual.

Se decidimos que é melhor ter menos experiências positivas para poder ter interações com os indivíduos reais que amamos, e não com simulações, então não apenas valorizamos em si tais interações, como também as valorizamos em maior grau do que ter o máximo de experiências positivas. É claro, isso não significa que sempre valorizaremos mais tais interações. Por exemplo, se a escolha fosse entre permanecer no mundo virtual e manter experiências positivas, ou encontrar os seres reais que amamos mas às custas de termos que sofrer um tormento excruciante por muito tempo, já teríamos dúvidas sobre o que é melhor para nós.

Este foi um breve resumo do debate sobre o exemplo da máquina de experiências. Esse e os outros exemplos que vimos acima não deveriam dar a entender que as diversas abordagens sobre o bem-estar sempre discordarão. A seguir veremos vários pontos de convergência.

5. Em que medida essas abordagens divergem/convergem?

O que foi mostrado antes pode dar a impressão de que as diferentes abordagens sobre o bem-estar divergem fundamentalmente em todos os aspectos. Entretanto, essa impressão é equivocada: o grau de convergência é bem maior do que normalmente se imagina.

Vimos que a maioria das divergências se dá entre visões que veem apenas um dos três fatores (experiências, preferências e itens objetivos) como relevantes em si para o bem-estar. Entretanto, como vimos, não é necessário adotar uma visão desse tipo. Também é possível considerar que vários desses fatores são relevantes em si. Por exemplo, mesmo quem valoriza em si a satisfação de desejos ou bens objetivos também normalmente reconhece que o sofrimento é ruim em si e que a felicidade é boa em si.

Isso não se dá por acaso. O fato de o sofrimento ser, em si, uma experiência negativa mostra que o sofrimento é ruim em si. Analogamente, a felicidade ser, em si, uma experiência positiva mostra que é boa em si. Isso é algo muito forte em termos de prova[8]. Por exemplo, é mais forte do que qualquer prova que possamos dar referente a descrições de fatos sobre o mundo exterior. Não conseguimos provar que não estamos enganados quanto à nossa crença de que o mundo exterior existe de fato (pois se ele for virtual teremos exatamente as mesmas experiências). Em contrapartida, não é possível estarmos enganados quanto ao julgamento de que  sofrimento é negativo e que a felicidade é positiva, pois nesse caso, é o próprio fato de experimentá-las desse modo aquilo que torna tais experiências, respectivamente, negativas ou positivas.

Uma crítica a esse raciocínio é apontar que ele implica que a felicidade que um torturador sente ao torturar suas vítimas é algo bom em si. Entretanto, aqui é importante lembrar que estamos a falar de teorias do bem-estar, e não de teorias da ação correta. Tudo o que as teorias do bem-estar diriam que é o torturador em questão foi beneficiado por sentir tal felicidade (e que, obviamente, suas vítimas foram prejudicadas por serem torturadas). Tais teorias não diriam que é correto que o torturador faça isso, uma vez que não são teorias da ação correta: algo ser bom em si para o bem-estar de alguém não é o mesmo que ser uma ação correta em si.

Assim, apesar de ser um debate em aberto saber se há outras coisas para além das experiências negativas que são relevantes em si para o bem-estar, certamente que tais experiências são relevantes para o bem-estar. Parfit, proponente de uma teoria de lista objetiva, coloca a questão da seguinte maneira:

Em todas essas teorias, a felicidade e o prazer são pelo menos uma parte do que torna nossas vidas melhores para nós, e nosso tormento e dor são pelo menos uma parte do que faz nossas vidas piorarem. Essas afirmações seriam feitas por qualquer teoria de lista objetiva plausível. E, elas são implicadas por todas as versões da teoria da satisfação de desejos. Em todas as teorias, a teoria hedonista é pelo menos uma parte da verdade[9].

Assim, pelo menos nisso as diversas abordagens do bem-estar podem convergir. Além disso, na maioria dos casos aquilo que evita sofrimento e proporciona experiências positivas está de acordo com o que alguém prefere e também ajuda a alcançar as coisas que normalmente são consideradas bens objetivos. É claro, como vimos, por vezes esses fatores conflitam. Entretanto, parece que na maioria dos casos convergem.

As discussões sobre teorias do bem-estar (ou qualquer outro tópico filosófico) tendem a ser focadas nas divergências entre as diversas abordagens. Perceber tais divergências é importante para as avaliarmos. Entretanto, focar nas divergências também pode ofuscar o grau de convergência. Podemos achar que não há grau algum de convergência quando pode haver mesmo um grau grande de convergência, como parece ser o caso entre as diversas abordagens referentes ao bem-estar.

6. O grau mínimo de convergência e implicações para o bem-estar dos animais

Se toda teoria plausível do bem-estar precisa reconhecer o desvalor do sofrimento e o valor das experiências positivas, então todas elas precisam reconhecer que os animais não humanos são altamente prejudicados nas circunstâncias em que se encontram normalmente.

Seja lá se nascem na exploração animal, seja lá se nascem na natureza, a norma é que suas vidas sejam repletas de sofrimento e que morram prematuramente. O sofrimento é, em si, uma experiência negativa. A morte prematura impede que o indivíduo desfrute de experiências positivas (e quanto mais prematura, menos desfrutou até agora e mais teria pela frente para desfrutar).  

Portanto, seja lá qual teoria do bem-estar julguemos a mais adequada, precisamos reconhecer que os animais são altamente prejudicados por se encontrarem em tais situações.

REFERÊNCIAS

DALL’AGNOL, D. Valor Intrínseco: Metaética, Ética Normativa e Ética Aplicada em G. E. Moore. 2a ed. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.

CRISP, R. Reasons and Goods. Oxford: Clarendon Press, 2006.

CRISP, R. Well-Being. In: ZALTA, E. N. (org.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2021 Edition),

FLETCHER, G. The Philosophy of Well-Being: An Introduction. Londres: Routledge, 2016.

GRIFFIN, J. Well-Being. Its Meaning, Measurement, and Moral Importance. Oxford: Oxford University Press, 1986. 

KAGAN, S. Normative Ethics. Colorado: Westview Press, 1998.

NOZICK, R.  Anarchy, state and utopia. New York: Basic Books, 1974.

PARFIT, D. Reasons and persons. Oxford: Oxford University Press, 1984.

SANTOS, B. A. G. Três teorias sobre o bem-estar. Crítica na Rede. 11, jan. 2017.

SINGER, P. Ética Prática. 3. ed. Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002 [1979].

SOBEL, D. Full Information Accounts of Wellbeing. Ethics, v. 104, n. 4, p, 784-810, 1994.


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Para uma breve introdução sobre as correntes de teorias do bem-estar, ver Kagan (1998, p. 29-41) e Santos (2017). Para uma introdução detalhada, ver Fletcher (2016).

[3] Ver por exemplo Crisp (2006).

[4] Ver por exemplo Singer (2002 [1979]).

[5] Ver, por exemplo, Griffin (1986).

[6] Ver, por exemplo, Sobel (1994).

[7] Esse exemplo é apresentado por Nozick (1974, p. 42-45).

[8] Isso vem sendo conhecido como prova mostrativa. Sobre isso, ver Dall’Agnol (2014, p. 222, 234).

[9] Ver Parfit (1984, p. 4).


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.