Luciano Carlos Cunha[1]
- 1. Introdução
- 2. Utilitarismo
- 3. Quantidade de seres com bem-estar positivo e utilitarismo médio
- 4. Maximin
- 5. Prioritarismo
- 5.1. O que caracteriza o prioritarismo?
- 5.2. Diferenças em relação ao princípio da utilidade marginal decrescente
- 5.3. Objeções ao prioritarismo
- 6. Igualitarismo
- 6.1. O que caracteriza o igualitarismo?
- 6.2. A objeção da igualação por baixo (versão 1)
- 6.3. A objeção da igualação por baixo (versão 2)
- 7. Suficientismo
- 8. Versões negativas do utilitarismo, prioritarismo e igualitarismo
- 8.1. Comparando utilitarismo negativo com utilitarismo clássico
- 8.2. Comparando igualitarismo e prioritarismo negativos com utilitarismo negativo
- 8.3. O debate sobre as teorias negativas
- 9. Conclusão
1. Introdução
O objetivo do presente texto é comparar várias teorias da ética normativa que se assemelham por darem igual consideração a todos os indivíduos afetados pela decisão, mas divergem entre si em relação a quais critérios utilizam para avaliar o quão boa ou ruim é uma situação que apresenta vários indivíduos. O objetivo aqui não é defender essa ou aquela teoria, mas apenas apresentar diversas teorias normalmente pouco conhecidas.
Em todos os exemplos que veremos nesse texto, as letras representam indivíduos, e os números representam os seus respectivos níveis de bem-estar. Não assumiremos aqui nenhuma visão específica quanto a quais fatores são relevantes para se avaliar o bem-estar dos indivíduos(se são experiências positivas/negativas, se são preferências satisfeitas/frustradas, se são itens de uma lista objetiva etc.). Deixaremos isso em aberto e falaremos apenas do bem-estar dos indivíduos, pois toda discussão aqui vale igualmente seja lá que fatores acreditemos que sejam relevantes para se avaliar o bem-estar.
2. Utilitarismo
A meta do utilitarismo[2], em sua versão clássica, é maximizar a soma total agregada do bem-estar dos indivíduos afetados pela decisão. Vejamos um exemplo:
| Situação | A | B | C | D | Total negativo | Total positivo | Total geral |
| S1 | – 8 | +9 | – 12 | +3 | -20 | +12 | -8 |
| S2 | -2 | +3 | -10 | +5 | -12 | +8 | -4 |
Se nossas únicas opções forem S1 ou S2, o utilitarismo prescreverá escolher S2, pois apresenta o maior saldo total geral (isto é, o total positivo menos o total negativo).
3. Quantidade de seres com bem-estar positivo e utilitarismo médio
Outra possibilidade é afirmar que a quantidade de indivíduos com bem-estar positivo é valioso em si (e não apenas indiretamente à meta de maximizar o saldo total). A seguir, está um exemplo para ilustrar como essa visão determinaria a ação correta, e também para ilustrar a diferença entre ela e o utilitarismo médio. O utilitarismo médio é uma variante do utilitarismo que prescreve escolhermos não aquela situação que apresenta a maior soma total, mas, a maior média (isto é, a soma total dividida pela quantidade de indivíduos):
| Situação | A | B | C | D | Total negativo | Total positivo | Total geral | Média |
| S1 | +10 | -1 | -2 | -3 | -6 | +10 | +4 | +1 |
| S2 | +8 | +2 | -3 | -3 | -6 | +10 | +4 | +1 |
Para o utilitarismo, seja clássico ou médio, ambas as situações são igualmente boas, já que a soma total é igual (+4) e também a média (+1). Contudo, poderia ser dito que S2 é melhor em pelo menos um aspecto: nela, existem dois indivíduos com bem-estar positivo, enquanto que em S1 há apenas um. Considere agora as seguintes situações:
| Situação | A | B | C | D | Total negativo | Total positivo | Total geral | Média |
| S1 | +10 | -1 | -2 | -3 | -6 | +10 | +4 | +1 |
| S3 | +7 | +2 | -3 | -3 | -6 | +9 | +3 | +0.75 |
Utilitaristas clássicos e médios dirão que S1 é melhor do que S3, já que nela a soma total é maior e a média também. Já alguém que defenda que, quanto mais indivíduos com bem-estar positivo, melhor, dirá que S3 é melhor nesse aspecto, mesmo que a soma total e a média sejam menores, pois nela há dois indivíduos com bem-estar positivo, enquanto que em S1 há apenas um. Considerarão S3 melhor tudo considerado ou não, dependendo de que peso atribuirão ao fator “quantidade de indivíduos com bem-estar positivo” em comparação aos fatores “soma total” e “média”. Porém, a considerarão melhor pelo menos em um aspecto.
4. Maximin
O maximin se preocupa diretamente com os níveis de bem-estar dos indivíduos (independentemente de qual é a soma, a média, ou a quantidade de indivíduos com bem-estar positivo). Prescreve escolher aquele curso de ação onde o nível mínimo de bem-estar é maior (daí o nome maximin, que vem de “maximizar o mínimo[3]”). Vejamos um exemplo:
| Situação | A | B | C | D | Total negativo | Total positivo | Total geral | Média | Vidas positivas |
| S1 | +6 | +4 | -5 | -1 | -6 | +10 | +4 | +1 | +2 |
| S2 | +8 | +2 | -4 | -2 | -6 | +10 | +4 | +1 | +2 |
Nesse exemplo, utilitaristas clássicos e médios, e mesmo quem se preocupa com a quantidade de indivíduos com bem-estar positivo, teriam de dizer que ambas as situações são igualmente boas. Contudo, proponentes do maximin diriam que S2 é melhor, pois nela quem está na pior situação (C=-4) está melhor do que quem está na pior situação em S1 (C=-5).
Novamente, assim como acontece em conflitos entre quaisquer outros fatores, em situações onde o nível mínimo for maior, mas os outros fatores diminuírem, a situação será ou não considerada melhor tudo considerado dependendo do peso dado ao maximin em comparação aos outros fatores. Há duas maneiras básicas de se proceder. A primeira é construir uma hierarquia fixa entre os fatores (nesse caso, também há duas possibilidades: ou ver um fator como um trunfo sobre outros, ou ver como tendo um peso maior, mas sem ser um trunfo). A segunda é manter que os diferentes fatores tem peso variável, podendo passar a ter maior ou menor peso dependendo do quão muito ou pouco tiverem sido cumpridos.
5. Prioritarismo
5.1. O que caracteriza o prioritarismo?
O prioritarismo[4] possui diferenças e semelhanças com o maximin, o utilitarismo e o igualitarismo (este último veremos no item 6). Comecemos comparando-o com o maximin. Considere as duas situações a seguir:
| Situação | A | B |
| S1 | -48 | -49 |
| S2 | -50 | -30 |
Segundo o fator maximin S1 é melhor, porque nela quem está pior (B=-49) está melhor do que quem está pior em S2 (B=-50). Isto é, S1 apresenta o maior nível mínimo de bem-estar. Contudo, uma objeção a dizer que, por isso, S1 é melhor tudo considerado é que, embora em S2 o nível mínimo de bem-estar seja mais baixo, há uma melhora considerável no bem-estar de um dos indivíduos. Em S1 temos dois indivíduos sofrendo muito, e em S2, pelo menos o sofrimento de um deles é consideravelmente menor do que seria em S1.
Uma maneira de tentar fundamentar que S2 é melhor é apelando ao princípio utilitarista: em S1 o total agregado é -97, enquanto que em S2 é -80. Contudo, outra maneira é apelar ao princípio prioritarista. O prioritarismo, assim como o utilitarismo, também busca maximizar o saldo total agregado. Contudo, diferentemente do que acontece no utilitarismo, onde cada unidade adicional de bem-estar tem o mesmo valor, independentemente do quão bem ou mal estava quem receberia essa unidade adicional, no prioritarismo, o valor de cada unidade adicional de bem-estar possui maior valor quanto pior for a situação de quem a receberia.
Assim sendo, diferentemente do maximin, que se preocupa apenas em maximizar o nível mínimo, o prioritarismo se preocupa também com a quantidade de benefício possível de ser causado em cada curso de ação. E, diferentemente do utilitarismo, para o prioritarismo importa saber quem teria o seu bem-estar melhorado (quanto pior alguém estiver, mais valor tem melhorar o bem-estar desse alguém).
Para entendermos melhor essa diferença em relação ao utilitarismo, comparemos o princípio prioritarista com o princípio da utilidade marginal decrescente, presente no utilitarismo.
5.2. Diferenças em relação ao princípio da utilidade marginal decrescente
As prescrições do utilitarismo, em uma grande gama de casos (mas não em todos), coincidem com favorecer quem está na pior situação. Contudo, isso acontece no utilitarismo porque fazê-lo geralmente é mais eficiente para maximizar o saldo total, devido ao princípio da utilidade marginal decrescente, explicado a seguir:
O princípio da utilidade marginal decrescente afirma que, quanto menor a quantia que alguém possui de certo recurso, mais bem-estar gera para esse alguém uma unidade adicional desse recurso. Por exemplo, se alguém tem apenas um quilo de arroz, dar um quilo adicional a essa pessoa fará uma diferença positiva maior para ela do que para outra que já tem dez quilos de arroz. Assim, o que esse princípio diz é que recursos possuem utilidade marginal decrescente.
Por exemplo, suponhamos que inicialmente temos A=+10; B=+1 (total = +11), e que temos um recurso que, se for dado para A, aumentará o seu bem-estar em dois pontos (A=+12, B=+1, total = +13), e se for dado para B, aumentará seu bem-estar em quatro pontos, pois B está em uma situação pior (A=+10, B=+5, total = +15). Assim, o utilitarismo prescreveria dar o recurso para B porque assim o resultado terá um maior saldo total agregado.
Isso é diferente de ter como meta melhorar a situação de quem está pior. Se, em outra situação, dar o recurso para quem já está melhor for mais eficiente para maximizar a soma total, o utilitarismo prescreverá favorecer quem já está melhor. Vejamos um exemplo:
imaginemos a mesma situação: A=+10; B=+1 (total = +11). Suponhamos desta vez que A, mesmo já estando melhor do que B, ainda teria o seu bem-estar aumentado em mais pontos se recebesse o recurso em questão. Imagine, por exemplo, que A é fã de pinhão e que B gosta de pinhão, mas não tanto quanto A, e que se dermos um saco de pinhão para A o seu bem-estar será aumentado em três pontos (A=+13, B=+1, total = +14), e que se dermos o pinhão a B, o seu bem-estar será aumentado em dois pontos (A=+10, B=+3, total = +13). Nesse caso, o utilitarismo prescreveria favorecer quem já está melhor, pois seria mais eficiente em maximizar a soma total.
Em resumo, segundo o princípio da utilidade marginal decrescente, uma unidade adicional de recurso é mais eficiente em maximizar o total agregado se for dada a quem tem menos desse recurso. Já segundo o prioritarismo, uma unidade adicional de bem-estar possui mais valor quanto menor o nível de bem-estar de quem receberia essa unidade adicional. Parfit (1995, p. 105) resume a diferença dessa maneira: “assim como os recursos possuem utilidade marginal decrescente, a utilidade possui valor marginal decrescente”. Vejamos um exemplo:
| Situação | A | B | Total: |
| Situação inicial | +20 | -10 | +10 |
| S1 | +25 | -10 | +15 |
| S2 | +20 | -5 | +15 |
Imaginemos que, a partir da situação inicial, é possível aumentarmos em +5 o bem-estar de um dos dois indivíduos. Em S1 aumentamos em +5 o bem-estar de A, que já está com +20. Em S2 aumentamos em +5 o bem-estar de B, que está com -10. Segundo o utilitarismo ambas as situações são igualmente boas, pois o total é o mesmo (+15). O prioritarismo, por sua vez, diria que S2 é melhor, uma vez que nela o benefício de +5 vai para quem está pior. Isto é, prioritaristas diriam que aumentar em +5 o bem-estar de B, que está em uma situação pior, tem mais valor do que aumentar em +5 o bem-estar de A, que está melhor.
5.3. Objeções ao prioritarismo
Uma possível objeção ao prioritarismo é apontar que, dependendo do quão maior fosse o benefício possível de ser dado a quem já está muito melhor, ele ainda teria que priorizar beneficiar quem já está muito melhor, mesmo dando um peso maior às unidades de benefício proporcionalmente ao quão mal alguém se encontra. Uma teoria que aparentemente não tem essa implicação é o igualitarismo. A seguir, veremos as diferenças e semelhanças entre prioritarismo e igualitarismo, bem como o debate em torno do igualitarismo.
6. Igualitarismo
6.1. O que caracteriza o igualitarismo?
Considere as seguintes situações:
| Situação | A | B | Total | Desigualdade |
| S1 | +25 | -10 | +15 | -35 |
| S2 | +20 | -5 | +15 | -25 |
O utilitarismo clássico diria que S1 e S2 são igualmente boas, pois o saldo total é igual. O maximin diria que S2 é melhor, pois o nível mínimo de bem-estar é mais alto. Prioritaristas diriam que S2 é melhor porque os +5 que B ganha têm mais valor do que os -5 que A perde, uma vez que a situação de B é muito pior. Igualitaristas[5] também diriam que S2 é melhor, mas, por outro motivo: em S2 o nível de desigualdade é menor.
Nesse exemplo que acabamos de ver, o saldo total é o mesmo em ambas as situações. Contudo, igualitaristas diriam também que certas situações que possuem um menor saldo total podem ser melhores tudo considerado do que outras que possuem um saldo total maior. Vejamos um exemplo:
| Situação | A | B | Total | Desigualdade |
| S1 | +25 | -10 | +15 | -35 |
| S3 | +15 | -1 | +14 | -16 |
Novamente, o maximin diria que S3 é melhor do que S1 porque o nível mínimo é mais alto. Prioritaristas diriam que S3 é melhor porque, devido a B estar em uma situação pior, os +9 que ganha são mais valiosos do que os +10 que A perde. Igualitaristas, por sua vez diriam que S3 é melhor porque o nível de desigualdade é muito menor do que em S1.
6.2. A objeção da igualação por baixo (versão 1)
Uma das principais objeções ao igualitarismo é a objeção da igualação por baixo. Discutiremos a seguir duas versões dessa objeção. Considere as seguintes situações:
| Situações | A | B | Total: | Desigualdade |
| S1 | +14 | +15 | +29 | -1 |
| S2 | +1 | +1 | +2 | 0 |
A primeira versão da objeção afirma que o igualitarismo teria de dizer que S2 é melhor do que S1, pois em S2 não há desigualdade, e em S1 há um pouco. Contudo, conclui a objeção, isso é absurdo, uma vez que em S2 não há ninguém que se encontre melhor do que em S1; na verdade, todos ficam muito pior.
Antes de vermos como igualitaristas poderiam responder a essa objeção, é importante observar que ela não afeta o prioritarismo, nem o maximin e nem o suficientismo (que veremos no item 7). Assim, a objeção da igualação por baixo não oferece razões para se rejeitar diminuições da desigualdade quando fazê-lo melhorar a situação de quem está pior.
Igualitaristas poderiam responder a essa primeira variante da objeção negando que precisem afirmar que S2 é melhor tudo considerado do que S1. O que igualitaristas têm que manter é que S2 é melhor em certo aspecto do que S1 (em S2, o bem total está melhor distribuído). Contudo, afirmar que uma situação é melhor em certo aspecto não implica ter de afirmar que necessariamente ela é melhor, tudo considerado (isto é, levando em conta tudo o que é importante). Isso é assim porque igualitaristas mantêm que a igualdade é importante em si. Mas, não mantêm que é a única coisa que importa, nem que sempre importa mais do que qualquer outra coisa. Igualitaristas concordariam que S2 é pior, tudo considerado. Diriam apenas que S2 é melhor sob o aspecto da igualdade (isto é, o valor está melhor distribuído) e que, portanto, uma maneira de melhorar S1 seria redistribuir o bem total da seguinte maneira: A=+14,5 e B=+14,5.
6.3. A objeção da igualação por baixo (versão 2)
Já a segunda versão da objeção nega que haja algum aspecto em que S2 seja melhor do que S1. Essa segunda versão defende que, para uma situação ser melhor do que outra em algum aspecto, ela precisa beneficiar alguém. Como em S2, comparada a S1, não há ninguém que se encontre melhor (ambos se encontram pior), então, não há nenhum aspecto no qual S2 é melhor do que S1, conclui a objeção.
Vejamos duas respostas que igualitaristas têm dado a essa segunda versão da objeção:
Temkin (2000, p. 137-146) defende que uma situação pode ser melhor do que outra em certo aspecto sem beneficiar ninguém. Por exemplo, se algum dos dois (ou ambos) merecer(em) o dano do qual padecem.
Já Horta (2010, p. 140-142) defende que há um aspecto no qual se pode dizer que uma situação como S2, sob certo aspecto é melhor para os indivíduos afetados. Para defender essa tese, ele distingue entre dimensões relacionais e não relacionais do valor. Vejamos um exemplo. Imaginemos que existam dois mundos e que as letras a seguir indiquem os níveis de bem-estar dos indivíduos pertencentes a dois grupos em cada mundo:
| Mundo | Grupo A | Grupo B |
| M1 | +40 | +20 |
| M2 | +19 | +19 |
Se nascemos em M1 e nascemos no grupo B, tivemos azar. Se nascemos em M2, podemos dizer que tivemos o azar de nascer em M2 e não em M1 (pois mesmo quem está pior em M1 está melhor do que quem está melhor em M2), mas não podemos dizer que tivemos azar de nascer no grupo em que nascemos (haja vista a distribuição igualitária).
Assim, haveria duas dimensões do valor: uma diria respeito à situação na qual alguém se encontra; já outra diria respeito à posição que alguém ocupa em relação aos outros, dada a situação em que se encontra. É nessa segunda dimensão que faria sentido dizer que S2 (onde A=+1, B=+1) é melhor em certo aspecto para alguém do que S1 (onde A=+14, B=+15): uma vez que alguém tem o azar de estar na situação S2, não há risco de se encontrar em uma situação pior do que a dos outros indivíduos que estarão em S2 também (isto é, o total está melhor distribuído).
7. Suficientismo
O suficientismo[6] tem como meta que todos os indivíduos tenham o suficiente, e se preocupará em diminuir a desigualdade e priorizar quem estiver pior no caso dos indivíduos que ainda não têm o suficiente.
No suficientismo, é estabelecido uma linha limite de bem-estar, a partir da qual a vida é suficientemente boa (CRISP, 2003, p, 762). Em relação aos que estão abaixo desse limite, o suficientismo estabelece a prioridade de acordo com três critérios: (a) dependendo do quão longe cada indivíduo está desse limite; (b) de quantos indivíduos forem beneficiados e; (c) do tamanho do benefício possível de ser causado (CRISP, 2003, p. 758).
Isso mostra que o suficientismo tem várias semelhanças com o prioritarismo e o igualitarismo, sendo a principal diferença que, em relação aos que estão acima da linha limite, o suficientismo não estabelece nenhum critério de prioridade (CRISP, 2003, p. 758).
O suficientismo também tem semelhanças e diferenças em relação à visão discutida no item 3, baseada na preocupação com a quantidade de indivíduos com bem-estar positivo. A semelhança é que ambas compartilham dessa mesma preocupação. A diferença é que alguém pode ter uma vida minimamente positiva e ainda não ter o suficiente para que ela seja boa. Desse modo, o suficientismo diferentemente da visão discutida no item 3, visará diminuir a desigualdade e priorizar quem estiver pior quando estiverem abaixo da linha limite.
8. Versões negativas do utilitarismo, prioritarismo e igualitarismo
Igualitarismo, prioritarismo e utilitarismo possuem também versões negativas. Comparemos as versões negativas dessas teorias com suas versões tradicionais:
8.1. Comparando utilitarismo negativo com utilitarismo clássico
A meta do utilitarismo negativo é alcançar a situação onde haja o menor agregado total negativo e, diferentemente do utilitarismo clássico, mantém que não há nenhuma quantidade de experiências positivas que possa compensar o sofrimento. Vejamos um exemplo:
| Situação | A | B | C | D | Total negativo | Total positivo | Total geral |
| S1 | +100 | -70 | -20 | +30 | -90 | +130 | +40 |
| S2 | -2 | -4 | +10 | +20 | -6 | +30 | +24 |
Utilitaristas clássicos diriam que S1 é melhor, pois o saldo total é maior. Já utilitaristas negativos diriam que S2 é melhor, pois há muito menos sofrimento.
8.2. Comparando igualitarismo e prioritarismo negativos com utilitarismo negativo
Assim como o utilitarismo negativo, o prioritarismo e o igualitarismo negativos também visam a reduzir o sofrimento e mantêm que a felicidade não pode compensar o sofrimento, mas, diferentemente do utilitarismo negativo, para esses dois últimos importa não apenas a soma total de sofrimento evitado. Vejamos um exemplo para ilustrar:
| Situação | A | B | Total negativo | Desigualdade |
| S3 | -1 | -19 | -20 | -18 |
| S4 | -9 | -11 | -20 | -2 |
Utilitaristas negativos diriam que não há razões para se preferir S3 ou S4, uma vez que o total negativo é o mesmo. Já prioritaristas negativos e igualitaristas negativos diriam que S4 é melhor. Prioritaristas negativos diriam que S4 é melhor porque há uma melhora considerável para quem estaria pior. Igualitaristas negativos, por sua vez, diriam que S4 é melhor porque há menor desigualdade: em S3 temos um indivíduo com uma dor leve e outro sofrendo terrivelmente; em S4 o fardo é dividido, e temos dois indivíduos com dores mais moderadas.
8.3. O debate sobre as teorias negativas
A objeção central à todas as teorias negativas são as implicações de elas não levarem em conta o que é positivo para os indivíduos. Por exemplo, se a meta é apenas evitar o que é negativo para os indivíduos, então todas essas teorias parecem implicar que é sempre melhor morrer (pois então elimina-se tudo o que é negativo), mesmo quando a outra opção for ter uma vida maravilhosa, mas com um único instante de sofrimento bem leve.
Uma maneira de responder a essa crítica é reconhecer que ela pode fazer sentido quando se está a falar de felicidade versus sofrimento em um mesmo indivíduo, mas que isso não afeta essa comparação em indivíduos diferentes. Isto é, mesmo se aquilo que a crítica aponta fizer sentido, ainda continua fazendo sentido manter que nenhuma quantidade de felicidade para certos indivíduos pode compensar o sofrimento de outros indivíduos.
Uma maneira de adaptar tais teorias para contornar a crítica no que diz respeito a avaliações sobre felicidade x sofrimento em um mesmo indivíduo é defender que buscar o que é positivo também é importante, mas que evitar o que é negativo é mais importante sem chegar a ser um trunfo. Quanto mais peso derem a evitar o que é negativo, mais se aproximarão das versões negativas. Quanto mais próximos forem os pesos de produzir o que é positivo versus evitar negativo, mais se aproximarão das versões clássicas dessas teorias, não negativas.
9. Conclusão
Neste artigo comparamos várias teorias da ética normativa. Segundo entendo, todas elas trazem fatores relevantes para avaliarmos o quão boa ou ruim é uma situação que apresenta vários indivíduos. Entretanto, vimos que essas todas teorias podem fazer e receber críticas mútuas devido a uma não levarem em conta o fator que a outra considera relevante.
Uma possibilidade é defender alguma dessas teorias, e tentar mostrar que são apenas os fatores que ela leva em conta que são relevantes. Entretanto, outra possibilidade é tentar levar em conta todos os (ou, pelo menos, vários dos) fatores trazidos por cada uma dessas teorias e construir uma abordagem pluralista (isto é, com vários princípios).
No caso da abordagem pluralista, a dificuldade principal será que em muitos casos esses princípios irão conflitar. Será necessário então investigar se há boas razões para se construir uma hierarquia entre os vários princípios e, em caso positivo, como justificar tal hierarquia. Outra possibilidade é não estabelecer uma hierarquia e o peso de cada princípio ser variável dependendo do quão bem ou mal o valor em questão já se encontra realizado. Nesse caso, a dificuldade será justificar onde traçar a linha limite onde um fator passa a ter prioridade no lugar de outro.
REFERÊNCIAS
CRISP, R. Equality, Priority, and Compassion. Ethics, v. 113, p. 745-763, 2003.
FARIA, C. Equality, priority and nonhuman animals. Dilemata, v. 14, p. 225-236, 2014.
GOMPERTZ, L. Moral inquiries on the situation of man and of brutes. London: Open Gate, 1997 [1824].
HOLTUG, N. Equality for animals. In: RYBERG, J.; PETERSEN, T. S.; WOLF, C. (orgs.) New waves in applied ethics. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2007, p. 1-24.
HORTA, O. Egalitarianism and animals. Between the species, v. 19, n. 1, p. 109-145, 2016.
HORTA, O. Igualitarismo, igualatión a la baja, antropocentrismo y valor de la vida. Revista de Filosofía da Universidad Complutense de Madrid, v. 35, n. 1, p. 133-152, 2010.
MATHENY, G. Utilitarianism and Animals. In: SINGER, P. (org.). In Defense of Animals: The Second Wave. Malden: Blackwell, 2006, p. 13-25.
PARFIT, D. Equality or Priority? Kansas: University of Kansas, 1995.
RAWLS, J. A Theory of Justice. 2. ed. Harvard: Harvard University Press, 1999 [1971].
REGAN, T. The Case for Animal Rights. Los Angeles: University of California Press, 1983.
RYDER, R.D. Painism: A Modern Morality. Opengate Press, 2001.
SINGER, P. Ética Prática. 3. ed. Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
TEMKIN, L. S. Equality, Priority, and the Levelling Down Objection. In: CLAYTON, M.; WILLIAMS, A. (orgs.). The Ideal of Equality. New York: Macmillan and St. Martin’s Press, 2000, p. 126-161.
NOTAS
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Ver, por exemplo, Singer (2002 [1979] e Matheny (2006).
[3] Um proponente do maximin é Rawls (1999 [1971]). Alguns autores propuseram princípios similares ao maximin. Por exemplo, Ryder (2001) com o princípio do painism, que dá prioridade ao sofredor máximo, e Regan (1983, p. 307-12), com o princípio worse-off, que prioriza não violar os direitos dos membros da minoria se estes forem prejudicados em maior grau do que qualquer um dos membros da maioria.
[4] Ver por exemplo Parfit (1995) e Holtug (2007).
[5] Ver por exemplo Gompertz (1997[1824]), Faria (2014) e Horta (2016).
[6] Ver por exemplo Crisp (2003).
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.
