Luciano Carlos Cunha[1]
Sumário:
- 1. O que é longoprazismo?
- 2. O que veremos neste texto?
- 3. Por que adotar uma meta longoprazista?
- 4. Razões para se ter um foco prático longoprazista
- 5. O debate sobre o foco no longo prazo
- 5.1. É melhor deixar os problemas futuros para as gerações futuras?
- 5.2. Focar no presente têm mais influência?
- 5.3. A objeção de que o grau de certeza quanto ao presente é maior
- 5.4. A objeção de que o futuro é tão incerto que não temos como decidir
- 5.5. A objeção de que o foco no longo prazo implicaria negligenciar o presente
- 6. Conclusão
1. O que é longoprazismo?
A palavra longoprazismo[2] é utilizada para expressar diferentes ideias, dependendo do autor. Por vezes, ela é utilizada em referência a uma meta. Em outras, é utilizada em referência a um foco prático para tentar alcançar essa meta. A seguir, estão comparadas dois tipos de meta (uma longoprazista e outra curtoprazista) e dois focos práticos (um longoprazista e outro curtoprazista):
- Meta longoprazista: Almeja ter o melhor impacto possível na história daqui até o final dos tempos. Essa meta implica necessariamente dar igual peso a cada momento no tempo (isto é, implica a imparcialidade temporal).
Entretanto, duas pessoas que concordam com a meta longoprazista podem discordar quanto ao que deveríamos focar na prática para melhor alcançá-la. Assim, há pelo menos dois tipos de focos práticos para alcançar a meta longoprazista:
- Foco prático longoprazista: para termos o melhor impacto possível na história daqui até o final dos tempos, devemos focar no impacto que nossas decisões terão no futuro em longo prazo.
- Foco prático curtoprazista: para termos o melhor impacto possível na história daqui até o final dos tempos, devemos focar no impacto que nossas decisões terão no momento atual ou em um futuro próximo.
Considere agora a meta curtoprazista:
- Meta curtoprazista: Almeja ter o melhor impacto possível no presente ou no futuro próximo. Essa meta dará um peso menor (ou mesmo negligenciará totalmente) o futuro distante (isto é, rejeita a imparcialidade temporal).
Como a meta curtoprazista não busca ter impacto no futuro em longo prazo, para alcançá-la só há um tipo de foco prático:
- Foco prático curtoprazista: para termos o melhor impacto possível no presente ou no futuro próximo, devemos focar no impacto que nossas decisões terão no momento atual ou em um futuro próximo.
Assim, temos as seguintes possibilidades:
- Meta longoprazista com foco prático longoprazista
- Meta longoprazista com foco prático curtoprazista
- Meta curtoprazista com foco prático curtoprazista
2. O que veremos neste texto?
No item 3 veremos a razão central para se adotar uma meta longoprazista. No item 4 veremos argumentos para se adotar um foco prático longoprazista. No item 4 veremos as principais objeções ao foco prático longoprazista e como essas objeções podem ser respondidas.
3. Por que adotar uma meta longoprazista?
A razão central para se adotar uma meta longoprazista é a seguinte: se o que nos importa é o bem de todos os seres que poderemos afetar, a pergunta que faremos não será “como podemos ter o melhor impacto no mundo atual ou do futuro próximo?”, e sim “como podemos ter o melhor impacto na história daqui para frente?”.
Clique aqui para ver uma defesa mais detalhada dessa meta.
4. Razões para se ter um foco prático longoprazista
Como vimos, o foco prático no longo prazo defende que, para termos o melhor impacto na história daqui para frente, devemos focar nas consequências de longo prazo de nossas decisões.
A principal razão a favor do foco no longo prazo é que, a menos que haja uma extinção em massa da vida senciente, é muito provável que haverá muito maisseres sencientes no futuro distante do que no presente ou no futuro próximo, tanto diacronicamente quanto sincronicamente:
- Diacronicamente porque o futuro pode ter uma extensão vastíssima. Os indivíduos vivos agora ou no futuro próximo são pouquíssimos em comparação aos que viverão nos próximos séculos, milênios, eras etc.
- Sincronicamente porque poderá haver um aumento da população de seres sencientes em cada momento. Por exemplo, a colonização espacial poderia multiplicá-los em muitas ordens de magnitude[3].
Em resumo, dependendo de como decidimos agora, afetaremos positiva ou negativamente uma quantidade gigantesca de seres que existirão ao longo do futuro.
Vejamos uma analogia para entendermos melhor o foco no longo prazo. Imaginemos que alguém precise escolher, ou evitar ter certo sofrimento agora, ou evitar ter certo sofrimento daqui a vinte anos. Entretanto, imagine que o sofrimento que ocorreria daqui a vinte anos seria muito mais intenso e prolongado. Se a pessoa escolhe evitar o sofrimento do momento atual, fará com que sua vida contenha mais sofrimento do que se tivesse escolhido a outra opção.
Analogamente, se o que almejamos é a melhor história do mundo daqui para frente para todos os seres sencientes, precisamos dar igual peso a cada momento. Porém, como o futuro em longo prazo conterá muito mais seres sencientes do que o momento presente ou do que o futuro em curto prazo, temos fortes razões para priorizar como nossas decisões afetam o futuro em longo prazo — essa é a ideia básica do foco prático no longo prazo.
Curiosamente, mesmo se fosse dado um peso cada vez menor ao bem de cada ser senciente dependendo do quão longe no futuro viverão, a quantidade de seres sencientes que poderão existir no futuro em longo prazo é tão vasta que ainda teríamos que concluir por priorizá-los, se nosso objetivo é a melhor história completa de mundo. Assim, mesmo quem rejeita a imparcialidade temporal, mas ainda dá alguma consideração aos seres futuros, teria que priorizá-los.
É claro, por quanto tempo o futuro conterá seres sencientes e qual será a população de seres sencientes em cada momento é algo altamente incerto. Mas, os seres futuros sobrepassam vastamente os atuais em expectativa (isto é, multiplicando-se sua quantidade pela sua probabilidade de virem a existir), e isso é suficiente para termos fortes razões para nos preocuparmos com eles. Esse problema da incerteza será discutido a seguir no item 5.3.
5. O debate sobre o foco no longo prazo
A seguir serão discutidas algumas das objeções mais comuns ao foco prático no longo prazo[4]:
5.1. É melhor deixar os problemas futuros para as gerações futuras?
Uma objeção ao foco prático no longo prazo defende que as gerações futuras estarão em melhor posição para resolver os problemas futuros: saberão quais riscos-s [5] (isto é, riscos de sofrimento de magnitude gigantesca) são mais sérios e quais as melhores estratégias para preveni-los. Pela mesma razão, temos uma vantagem em termos de conhecimento se focarmos no presente, conclui a objeção.
Uma possível resposta a essa objeção é observar que não é garantido que as gerações futuras saberão como resolver tais problemas. Por exemplo, se deixarmos para as gerações futuras decidirem, pode ser tarde demais para impedir os piores cenários[6]. Portanto, o quanto antes começarmos a trabalhar nesses problemas, antes surgirão soluções para eles, e isso tornará melhor a história de mundo dali para frente.
Além disso, mesmo se as gerações futuras estiverem em melhores condições de resolver tais problemas, isso não significa que desejarão fazê-lo (pois isso dependerá do quanto considerarão os seres sencientes). Então, devemos tentar fazer com que venha a existir tanto a capacidade quanto a vontade de prevenir o sofrimento no futuro.
Por vezes é alegado que o futuro já será melhor devido ao progresso moral e que, portanto, não precisamos nos preocupar. Porém, isso não é garantido, pois depende crucialmente do que faremos agora para divulgar a consideração por todos os seres sencientes e do que continuará sendo feito ao longo do tempo.
5.2. Focar no presente têm mais influência?
Alguém poderia aceitar que o bem dos seres sencientes futuros conta igualmente mas rejeitar o foco prático no longo prazo por acreditar que vivemos em uma época crucial para determinar tudo o que acontecerá daqui para frente. Por exemplo,certos eventos que provavelmente ocorrerão no século XXI (como o surgimento de inteligências artificiais super inteligentes) poderiam ter uma influência desproporcional dali para frente. Com base nisso, poderia ser defendido que, para termos o melhor impacto na história de mundo daqui para frente, devemos focar no presente (ou, pelo menos, no futuro próximo).
Uma possível resposta aqui é apontar que simplesmente não sabemos qual será o grau de influência que cada um desses possíveis eventos terá na história dali para frente. Por exemplo, não sabemos se esses é que serão os eventos cruciais, se serão outros ainda desconhecidos, ou se as mudanças serão graduais, sem eventos cruciais. Se focarmos em determinados eventos e eles acabarem não tendo muita influência no futuro, desperdiçaremos esforços[7]. Assim, parece melhor focar em investigar como nossas decisões podem influenciar o futuro positivamente independentemente do que vier a ocorrer. Isso pode ser feito, por exemplo, por por meio da investigação sobre fatores de risco para os riscos-s e planejando estratégias amplas para lidar com sua prevenção.
5.3. A objeção de que o grau de certeza quanto ao presente é maior
Outra objeção ao foco no longo prazo é que, quanto mais longo o prazo, mais difícil prever a probabilidade de um evento ocorrer. Por essa razão, conclui a objeção, devemos focar no curto prazo.
Entretanto, o grau de certeza não deveria determinar sozinho o quanto devemos focar em um cenário. Outro fator crucial é a magnitude do cenário (isto é, o quão bom ou ruim é). Dependendo do quão ruim é um cenário, ainda vale a pena priorizar evitá-lo, mesmo que estejamos mais incertos sobre se ele ocorrerá ou não. Uma maneira de levar em conta a magnitude e o grau de incerteza é multiplicar um fator pelo outro, e o resultado é chamado de valor esperado (ou, desvalor esperado, se o resultado for negativo). Vejamos um exemplo:
Imaginemos que temos de escolher, ou priorizar evitar um evento negativo que poderia ocorrer no futuro próximo ou um evento negativo que poderia ocorrer no futuro distante. Imaginemos que conseguimos estimar o quão negativo cada evento provavelmente seria, e que o evento do futuro próximo seria de -100 e do futuro distante seria de -1000. Entretanto, imaginemos que a probabilidade de o evento do futuro próximo ocorrer seja de 80% e que, devido à incerteza quanto ao futuro, a probabilidade de o evento do futuro distante ocorrer seja de apenas 10%.
O desvalor esperado do evento do futuro próximo seria de -100 x 0.8 = -80. Já o desvalor esperado do evento do futuro distante seria de -1000 x 0.1 = -100. Assim, de acordo com o cálculo do desvalor esperado, ainda teríamos razões para priorizar evitar o evento do futuro distante, mesmo que a probabilidade de ele ocorrer seja mais baixa.
Em resumo, o que essa resposta aponta é que a magnitude do futuro em longo prazo é tão vasta que, mesmo que haja grande incerteza quanto ao futuro, ainda valeria a pena priorizar tentar influenciá-lo.
Nesse ponto poderia ser objetado que o cálculo do desvalor esperado poderia nos conduzir a priorizar cenários que, caso ocorressem, seriam desastrosos, mas que a probabilidade de ocorrerem é remotíssima. Novamente, uma possível resposta a essa objeção é apontar que há estratégias de ação que tendem a influenciar positivamente o futuro sem que para isso seja necessário estimarmos a probabilidade de o futuro ser dessa ou daquela maneira. Vejamos:
As estratégias longoprazistas são divididas em dois grandes grupos: direcionadas e amplas. As direcionadas são focadas em prevenir cenários catastróficos específicos. Já as amplas são planejadas de modo a influenciar de modo positivo o futuro independentemente de quais cenários ocorrerem. Assim, a objeção em questão poderia fazer sentido apenas em relação às estratégias direcionadas, mas não atingiria as estratégias amplas.
Um exemplo de estratégia ampla é identificar fatores de risco para os riscos-s e tentar preveni-los. Veremos mais sobre isso a seguir.
5.4. A objeção de que o futuro é tão incerto que não temos como decidir
Uma objeção similar defende que o futuro em longo prazo é tão incerto que não temos a mínima ideia de como nossas decisões atuais o afetarão. Por exemplo, nossa influência será diluída pelas decisões dos muitos agentes futuros. Quanto mais longo o futuro, mais está em jogo, mas também menor a nossa influência. Assim, conclui a objeção, o fato de o futuro ser longo não é suficiente para embasar a conclusão de que devemos focar no longo prazo.
Entretanto, há coisas que podemos fazer agora que possuem a tendência de influenciar positivamente o futuro em longo prazo mesmo que tenhamos uma grande incerteza em relação ao futuro. Por exemplo, podemos identificar fatores de risco para os riscos-s e tentar fazer coisas que diminuam esses fatores de risco. Vejamos mais sobre isso a seguir:
O conceito de fatores de risco já é amplamente utilizado na medicina. Por exemplo, fumar, se alimentar mal e não fazer exercícios não são, em si, doenças, mas aumentam muito a probabilidade de várias doenças, ainda que não as impliquem necessariamente. Para saber que é algo bom evitar esses fatores de risco não é necessário saber como será a trajetória de saúde de cada indivíduo. Similarmente, podemos tentar identificar fatores de risco para os riscos-s e tentar identificar as ações que contribuiriam para evitá-los.
Dentre alguns fatores de risco para os riscos-s estão:
- Desconsideração por seres sencientes não humanos.
- Desconsideração por possíveis seres sencientes não biológicos futuros[8].
- Demanda por produtos e serviços cuja produção prejudica seres sencientes.
- Prevalência de valores ambientalistas em vez da preocupação com seres sencientes.
- Expansão humana e aumento do poder tecnológico.
- O progresso tecnológico ser muito mais rápido do que o progresso moral[9].
Cada um desses fatores de risco é abordado em mais detalhes aqui.
5.5. A objeção de que o foco no longo prazo implicaria negligenciar o presente
Outra objeção comum ao foco no longo prazo é apontar que ele parece ter a implicação de negligenciar o sofrimento presente ou do futuro próximo, pois este é muitíssimo menor em magnitude, em comparação ao possível sofrimento em longo prazo.
Uma possível resposta aqui é apontar que, novamente, há ações que podemos tomar que têm a tendência de influenciar positivamente toda a história daqui para frente (por exemplo, promover a consideração moral de todos os seres sencientes) e que, então, não há necessariamente um dilema entre, ou abordar o futuro em longo prazo, ou abordar o presente.
À primeira vista, isso poderia soar contraditório. Alguém poderia, por exemplo, perguntar: “não se está a defender então o foco prático no longo prazo?”. A resposta para isso é que algumas das estratégias mais promissoras para o foco prático no longo prazo (como defender a consideração moral de todos os seres sencientes), por tabela também ajudam a melhorar o curto prazo.
6. Conclusão
Vimos que o foco prático no longo prazo é uma possível resposta à pergunta “como ter o melhor impacto na história do mundo daqui para frente?”. Abordamos também algumas objeções a esse foco e as respostas que têm sido dadas e elas.
Parece haver boas razões a favor do foco prático no longo prazo. Entretanto, outra conclusão importante aqui é que, mesmo quem rejeita esse foco (e escolhe dar prioridade, por exemplo, ao presente ou ao futuro próximo), ainda tem fortes razões para considerar a preocupação com o futuro em longo prazo como algo muito importante.
REFERÊNCIAS
BAUMANN, T. Avoiding the worst final: how to prevent a moral cathastrophe. Center for Reducing Suffering, 2022.
BECKSTEAD, N. On the overwhelming importance of shaping the far future. Tese (Doutorado em Filosofia). New Brunswick: Rutgers University, 2013.
ÉTICA ANIMAL. A importância do futuro. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 24 out. 2018.
GREAVES, H. & MACASKILL, W. The case for strong longtermism. Global Priorities Institute, v. 7, set. 2019.
O’BRIEN, G. D. Directed Panspermia, Wild Animal Suffering, and the Ethics of World-Creation. Journal of Applied Philosophy, v. 39, n. 1, 2022.
O’BRIEN, G. D. The Case for Animal-Inclusive Longtermism. Journal of Moral Philosophy, [s.l.], p. 1–24, 2023.
PARFIT, D. Reasons and persons. Oxford: Oxford University Press, 1984.
TOMASIK, B. Risks of astronomical future suffering. Foundational Research Institute, 02 jul. 2019b.
TOMASIK, B. Why digital sentience is relevant to animal activists. Animal Charity Evaluators. 03 fev. 2015.
Notas:
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Para uma introdução ao longoprazismo, ver Ética Animal (2018). Para mais informações sobre longoprazismo, ver Parfit (1984, p. 351-443); Beckstead (2013) e Greaves e Macaskill (2019).
[3] Para uma explicação do porquê a colonização espacial representa um grande risco de maximizar o sofrimento, ver O’brien (2022).
[4] Para uma discussão sobre esses pontos, ver Baumann (2022, p. 22-28).
[5] Sobre riscos-s, ver Tomasik (2019b) e Baumann (2022).
[6] Isso vem sendo conhecido como time sensitive risks (riscos sensíveis ao tempo), ou seja, riscos de sofrimento futuro que devem ser tratados em um momento concreto, do contrário poderá ser tarde demais.
[7] Isso vem sendo conhecido como wasted years (anos perdidos), que são os anos desperdiçados, que poderiam ter sido empregues para adiantar uma causa (no caso, a causa que visa prevenir sofrimento).
[8] Sobre essa possibilidade, ver Tomasik (2015).
[9] Isso vem sendo conhecido como progresso diferencial.
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.

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