Quais metas priorizar em longo prazo?

Luciano Carlos Cunha[1]

Sumário:

1. Diferentes metas que alguém poderia querer alcançar em longo prazo

Duas pessoas que concordam que devemos tentar ter o melhor impacto na história daqui para frente poderiam discordar quanto ao que significa “ter o melhor impacto” dependendo daquilo que priorizassem em termos de valores.

Por exemplo, algumas pessoas poderiam ter em mente impedir a extinção da espécie humana. Já outras pessoas poderiam visar prevenir que o futuro contenha quantidades astronômicas de sofrimento para os seres sencientes.

Estes são apenas dois exemplos de metas que alguém poderia querer alcançar no longo prazo. Mas, há muito mais metas possíveis. A seguir estão alguns exemplos:

(1) Prevenir sofrimento

(2) Prevenir mortes prematuras

(3) Proporcionar experiências positivas aos seres que existirão

(4) Fazer com que exista o máximo de seres com vidas positivas ao longo do tempo.

(5) Prevenir a extinção da humanidade

(6) Maximizar o potencial humano

(7) Prevenir a extinção da vida senciente

É possível que alguém considere que todas essas metas devem ser buscadas. Entretanto, também é possível alguém pensar que apenas algumas delas deveriam serem buscadas (ou mesmo que apenas uma).

Além disso, alguém pode acreditar que várias dessas metas (ou mesmo todas) são dignas de serem almejadas, mas com diferentes graus de importância. A seguir veremos alguns argumentos para priorizarmos as duas primeiras. Como deve estar claro, isso não implica necessariamente descartar as outras metas, pois o foco em uma meta e não em outra pode ser uma questão de grau.

De que depende então a escolha pelo foco nessa ou naquela meta? A seguir veremos essa discussão em relação ao foco em evitar sofrimento e, na sequência, falaremos do foco em evitar mortes prematuras.

2. Do que depende o foco em evitar sofrimento?

2.1. Calculando o quanto focar em evitar sofrimento

Considere as seguintes perguntas:

(1) Devemos ter um foco maior em prevenir sofrimento?

(2) Se sim, em que medida?

A resposta para essas perguntas dependem de que respostas damos à outras duas perguntas:

(1) Peso: qual peso dar à meta de prevenir sofrimento, frente a outras metas?

(2) Expectativa: o quão otimistas/pessimistas ser em relação ao futuro?

A relação entre esses dois fatores (peso e expectativa) se dá da seguinte maneira:

  • Quando mais otimista alguém é em relação ao futuro, mais peso tem que dar à meta de reduzir sofrimento para concluir que deve priorizar evitar sofrimento.
  • Analogamente, quanto mais alguém pensa que o futuro tem potencial de ter vastas quantias de sofrimento, menos precisa ter como meta principal a redução do sofrimento para concluir que deve priorizá-la.

Uma maneira de medir isso é com a seguinte fórmula[2]:

Grau de foco no sofrimento (GFS): PS x ES.

PS (Peso da meta de evitar sofrimento): quanto mais valorizamos evitar sofrimento frente a outras metas, maior o PS.

ES (Expectativa do sofrimento): quanto mais achamos que o futuro poderá ser cheio de sofrimento, maior o ES.

Quanto maior o resultado de GFS, seja porque damos um peso maior à evitar sofrimento (PS alto) e/ou somos pessimistas sobre o futuro (ES alto), mais focaremos em evitar sofrimento.

2.2. Aplicando o mesmo raciocínio a outras metas

Apesar de termos falado acima apenas do foco em evitar sofrimento, o mesmo raciocínio é aplicável a qualquer outra meta. Sempre é possível multiplicar o peso que damos a uma meta pelo quanto esperamos que aquilo que ela visa evitar/buscar ocorrerá.

Por exemplo, poderíamos multiplicar, para saber o quanto focar em evitar mortes prematuras, o peso que damos a essa meta em comparação a outras metas, pelo quanto esperamos que o futuro provavelmente conterá de mortes prematuras.

Ambos os exemplos acima foram com focos em evitar coisas negativas (sofrimento e morte). Quando o foco é em buscar coisas positivas (por exemplo, proporcionar experiências positivas aos seres sencientes), apesar de permanecer igual o eixo do peso (isto é, quanto mais peso dermos à meta de proporcionar vidas positivas, mais focaremos em tal meta), o eixo da expectativa se dará de modo inverso (por exemplo, quanto menos esperamos que o futuro já conterá de experiências positivas, mais focaremos em tal meta).

3. Quem poderia aceitar o foco em prevenir sofrimento?

Poder-se-ia pensar que, para se aceitar um foco em prevenir sofrimento[3], é necessário ter como única preocupação a prevenção sofrimento (ou, pelo menos, considerar a prevenção do sofrimento como um trunfo sobre qualquer outra meta). Entretanto, como fica claro a partir do cálculo acima, isso não é assim. O foco em prevenir sofrimento pode ser aceito por um número muito maior de visões. Abaixo estão listadas as visões que podem aceitar esse foco:

(1) Pessoas cuja única meta é evitar sofrimento.

(2) Pessoas que buscam também outras metas, mas para as quais evitar sofrimento é um trunfo. Para essas pessoas não importa o tamanho do ganho em outras metas com o uso de certo recurso, utilizá-lo para evitar sofrimento sempre teria prioridade.

(3) Pessoas que aceitam também outras metas, mas para as quais evitar sofrimento tem um peso maior (ainda que não seja um trunfo). Diferentemente das pessoas do item 2, para essas pessoas a balança pode pender para focar em outras metas se o ganho nelas for suficientemente grande com o uso de certo recurso. Entretanto, na maioria das situações essas pessoas tenderiam a focar em evitar sofrimento (especialmente se forem pessimistas em relação ao futuro).

(4) Pessoas que dão peso igual a outras metas podem priorizar prevenir sofrimento caso forem pessimistas em relação ao futuro.

(5) Pessoas que dão peso maior a outras metas podem ainda reconhecer que reduzir sofrimento é uma meta importante (e podem até mesmo priorizá-la, dependendo do quão pessimistas forem em relação ao futuro).

4. Alguns argumentos para dar um peso maior à meta de evitar sofrimento

A seguir veremos quatro argumentos que tem sido oferecidos para se dar um peso maior à meta de evitar sofrimento em comparação à meta de proporcionar experiências positivas[4]. É importante observar que esses argumentos não comparam a meta de evitar sofrimento com outras metas que também dizem respeito a evitar algo negativo (como a morte prematura, algo que abordaremos no item 6). Vejamos então os argumentos:

4.1. O exemplo da garantia (primeira versão)

Imagine que podemos garantir uma dessas duas coisas, mas não ambas:

  • Se estivermos em sofrimento extremo, passaremos para um sofrimento moderado.
  • Se estivermos em prazer moderado, passaremos para um prazer extremo.

Parece mais importante garantir a primeira coisa. Isso sugere que diminuir o sofrimento é mais importante do que aumentar o prazer.

4.2. O exemplo da garantia (segunda versão)

Imagine que podemos garantir uma dessas duas coisas, mas não ambas:

  • Se estivermos em sofrimento moderado, não passaremos para um sofrimento extremo.
  • Se estivermos em prazer extremo, não passaremos para um prazer moderado.

Novamente, parece mais importante garantir a primeira coisa. Isso sugere que evitar aumentos no sofrimento é mais importante do que evitar diminuições de prazer.

4.3. O exemplo da tortura

 Quando alguém é submetido à tortura, pode chegar a se voltar contra seus entes queridos ou outros inocentes, trair causas nas quais acredita, desistir de sua liberdade ou mesmo de sua vida. Porém, muitas dessas pessoas não fariam essas mesmas coisas em troca de um prazer gigantesco. Isso sugere que o sofrimento é muito mais insuportável do que a falta de prazer.

4.4. O argumento de que evitar sofrimento é mais eficiente para maximizar o saldo positivo

Esse último argumento não é um argumento para se dar maior peso a prevenir sofrimento, mas sugere que priorizar prevenir sofrimento é mais eficiente para alcançar a meta de maximizar o saldo total positivo (isto é, a soma total agregada de prazer menos sofrimento).

Há visões para as quais uma unidade adicional de bem-estar possui o mesmo grau de importância, seja lá se for um aumento no bem-estar de quem está sofrendo ou de quem já está bem[5]. Segundo essas visões, o que devemos fazer é tentar maximizar o saldo total positivo.

Entretanto, normalmente utilizar determinada quantia de recurso para melhorar a situação de quem está sofrendo é mais eficiente para maximizar o saldo total positivo[6]. Por exemplo, se alguém só tem cinco quilos de arroz, dar-lhe um quilo adicional fará uma diferença mais positiva no seu bem-estar do que para alguém que já tem, por exemplo, vinte quilos de arroz.

Assim, quanto pior a situação de alguém, mais uma unidade adicional de recurso faz uma diferença positiva para o seu bem-estar. Portanto, mesmo alguém que dá peso igual a produzir o que é positivo (em comparação a prevenir sofrimento) tem ainda razões para priorizar prevenir sofrimento, pois isso seria mais eficiente para maximizar o saldo total.

5. O quão pessimistas precisamos ser sobre o futuro para focarmos no sofrimento?

Agora discutiremos alguns argumentos que defendem que devemos ser otimistas em relação ao futuro[7]. Veremos também que, para priorizarmos evitar sofrimento, não é necessário que sejamos altamente pessimistas em relação ao futuro (é necessário somente que reconheçamos que a possibilidade de o futuro conter vastas quantias de sofrimento não é insignificante).

5.1. O argumento de que a tecnologia tornará desnecessário causar sofrimento

Por vezes é alegado que a tecnologia tornará fácil alcançar o que as pessoas querem sem precisar causar sofrimento. A ideia é a de que, se as pessoas se preocupam pelo menos um pouco em evitar sofrimento, e o custo de evitá-lo for baixo, o evitarão. Um exemplo é a crença de que a carne celular tornará a exploração animal obsoleta, mesmo que as pessoas não se preocupem muito com os animais.

Esse argumento pode fazer em sentido em relação a práticas que produzem sofrimento, mas o sofrimento não é almejado por si (como o consumo de animais). Porém, a tecnologia também pode aumentar o poder dos indivíduos cuja meta é causar sofrimento nos outros. Portanto, a possibilidade de a tecnologia vir a reduzir os riscos de sofrimento não almejado não é suficiente para sermos otimistas em relação ao futuro, especialmente dada a tendência de indivíduos com traços malevolentes estarem em posições de poder[8].

5.2. O argumento de que as coisas tendem a melhorar

Outro argumento a favor do otimismo em relação ao futuro é a alegação de que as coisas tenderam a melhorar nos últimos séculos: declínio da violência, melhorias na saúde como curas de doenças, aumento da expectativa de vida etc.

Entretanto, esse julgamento só faz sentido de um ponto de vista antropocêntrico. Por exemplo, houve um aumento gigantesco do número de animais explorados desde a revolução industrial. Esse número continua aumentando muito, sobretudo sobre animais aquáticos e invertebrados.

Já em relação ao sofrimento dos animais selvagens, é incerto se este aumentou ou diminuiu a longo do tempo. Por exemplo, a substituição de áreas verdes por urbanização normalmente causa sofrimento e mortes aos animais que ali vivem mas, dada a maneira como os processos naturais tipicamente afetam os animais[9], a urbanização também previne que uma quantidade gigantesca nasça apenas para sofrer em tais locais[10].

O ponto é: levando em conta todos os seres sencientes, não sabemos se as coisas estão piorando ou melhorando no total.

5.3. A probabilidade dos riscos-s não é insignificante, e isso é suficiente

Para se dar um grande foco a evitar sofrimento não é necessário ter uma visão pessimista do futuro. É suficiente acreditar que a probabilidade de o futuro conter vastas quantias de sofrimento não é insignificante. Essa probabilidade não é muito insignificante por três razões:

(1) O sofrimento em escala astronômica no futuro pode surgir de muitas maneiras, e é muito difícil prever o futuro. A probabilidade de algumas dessas maneiras ocorrerem (inclusive algumas das quais sequer vislumbramos atualmente) não é insignificante.

(2) Exceto se houver uma desestabilidade em nível global, é provável que a tecnologia continue a se desenvolver. Os indivíduos que detêm o poder normalmente têm uma consideração insuficiente pelos afetados por suas decisões.

(3) Até o momento as tecnologias proporcionaram desde cura de doenças até armas químicas, bombas nucleares e a pecuária industrial. Então, não é garantido que os desenvolvimentos futuros serão utilizados de maneira benéfica.

Este foi um breve resumo do debate sobre o foco na meta de prevenir sofrimento. A seguir discutiremos a meta de evitar mortes prematuras.

6. A meta de evitar mortes prematuras

Normalmente, a discussão sobre evitar danos para os seres sencientes futuros gira em torno da meta de evitar sofrimento. Entretanto, outra possível meta é evitar mortes prematuras. Que razões existem a favor dessa meta? Como pesá-la em comparação à meta de evitar sofrimento? Isso é o que discutiremos a seguir.

6.1. O quão afortunado ou desafortunado alguém foi com a vida que teve?

Uma das razões para se pensar que evitar mortes prematuras é uma meta importante tem a ver com a avaliação sobre o quão afortunado ou desafortunado alguém foi com a vida que teve[11]. Em que parâmetros deveríamos nos basear para fazer tal avaliação?

Um primeiro fator que logo vêm à mente é investigar o quanto de sofrimento a vida em questão conteve. Certamente que esse é um fator relevante. Entretanto, o exemplo a seguir sugere que não é o único fator relevante:

Suponhamos que pudéssemos medir a quantidade de sofrimento que alguém teve durante sua vida. Isso seria obtido somando-se os instantes de sofrimento e multiplicando-os pela intensidade do sofrimento em cada momento (sendo “s” a unidade para medir sofrimento). Imaginemos que avaliamos as vidas de Ana e Bia: Ana teve 200.000s e Bia teve 400.000s.

Se olharmos apenas para o sofrimento, diremos que Bia foi mais desafortunada com a vida que teve do que Ana. Entretanto, imaginemos que o sofrimento de Ana representou mais de 95% das experiências que teve durante toda a vida, enquanto que a vida de Bia, apesar de ter o dobro de sofrimento, teve muito mais experiências positivas, a ponto de o sofrimento de Bia não chegar nem a 50% do total das experiências que teve durante a vida.

Esse exemplo sugere que, para se avaliar o quão afortunado ou desafortunado alguém foi com a vida que teve, é importante não apenas levar em conta a quantidade de sofrimento que experimentou, mas também a quantidade de experiências positivas. Em outras palavras, se o objetivo é avaliar o quão boa ou ruim foi uma vida para quem a viveu, tem-se que levar em conta os eventos negativos e os positivos, e não só os negativos.

Entretanto, pode ser enganoso nos basearmos na proporção entre esses dois fatores. O que importa é a quantidade desses eventos (algo que depende de quanto tempo alguém viveu). Para isso ficar mais claro, considere o exemplo a seguir.

Imaginemos que, ao avaliarmos as experiências que Clara e Dora tiveram durante suas vidas, temos o seguinte, em termos de proporção:

  • Clara: 70% experiências positivas e 30% experiências negativas
  • Dora: 60% experiências positivas e 40% experiências negativas

Se nos basearmos apenas na proporção, diremos que Clara foi mais afortunada com a vida que teve do que Dora. Contudo, imaginemos que Clara viveu 20 anos e que Dora viveu 80. Assim, 70% das experiências positivas de Clara são uma quantidade muito menor do que 60% das experiências positivas de Dora. Isso sugere que é relevante a quantidade de experiências positivas e negativas (algo que depende do quanto de tempo alguém viveu), e não somente a proporção.

Agora estamos em posição de entender por que razão mortes prematuras são eventos que temos fortes razões para prevenir, pois quanto mais prematura a morte, menor a oportunidade para a ocorrência de experiências positivas. É claro, só faz sentido querer que alguém tenha mais tempo de vida se houver a possibilidade de essa vida ser minimamente significativa. Por essa razão, a meta de prevenir sofrimento é sempre uma meta importantíssima. Entretanto, também faz sentido dizer que, se há possibilidade de uma vida ser significativa, a morte prematura é um fator que contribui para que alguém seja altamente desafortunado com a vida que teve.

6.2. Pesando a meta de evitar sofrimento e a meta de evitar a morte

Vimos que a meta de evitar mortes está relacionada diretamente com a meta de proporcionar eventos positivos. No item 4 vimos alguns exemplos que sugerem que evitar sofrimento tem peso maior do que obter experiências positivas. Entretanto, é importante observar que aqueles exemplos não sugerem que a meta de evitar sofrimento é um trunfo pois, dependendo do quão menor é o sofrimento e do quão maior é a experiência positiva, poderíamos achar que vale a pena passar pelo sofrimento para alcançar a experiência positiva (aprender a tocar um instrumento musical é um exemplo).

Além disso, os exemplos do item 4 pesaram essas duas metas em situações que referem-se apenas a um dado momento, pedindo-nos para imaginar se preferiríamos garantir evitar sofrimento ou obter prazer. Uma vez que inserimos o fator tempo na equação (que está diretamente relacionado a evitar a morte) então o peso das metas de evitar sofrimento e de obter experiências positivas já é mais incerto. Vejamos dois exemplos nesse sentido:

  • Há situações onde o sofrimento que experimentaríamos se continuássemos vivos é tão grande que acreditamos que não vale a pena continuar a viver. Esse é o caso de muitos pacientes terminais que pedem para morrer para terem o seu sofrimento aliviado, por exemplo[12].
  • Por outro lado, há situações onde acreditamos que vale a pena enfrentar sofrimentos consideráveis (por vezes, até muito grandes) se isso for necessário para salvar nossa vida (se houver, é claro, possibilidade de essa vida ser minimamente significativa dali para frente).

Esses casos sugerem que nenhuma dessas duas metas tem, em todas situações, prioridade sobre a outra. Porém, sugerem que ambas as metas são muito importantes.

7. Foco nos seres sencientes em geral x foco nos humanos

Acima falamos das metas de evitar sofrimento e mortes dos seres sencientes em geral (e não, por exemplo, do sofrimento e morte de humanos somente). Isso é assim porque não parece haver como justificar dar um peso maior ao bem dos humanos: de um ponto de vista não tendencioso, todo ser senciente conta por igual.

Entretanto, alguém poderia argumentar que, mesmo de um ponto de vista imparcial, pode fazer sentido priorizar beneficiar humanos se isso for mais eficiente para alcançar a meta de beneficiar todos os seres sencientes. Discutiremos a seguir dois dos principais argumentos que defendem essa tese.

7.1. A alegação de que devemos focar em riscos existenciais

Na ausência de agentes inteligentes com tecnologia à disposição, não haverá ninguém para diminuir o sofrimento no mundo. Com base nisso, poderia ser dito que, enquanto houver riscos de extinção humana ou de colapso da civilização ­— conhecidos como riscos existenciais, ou riscos-x (como, por exemplo, aquecimento global, uso de armas nucleares, pandemias etc.) — não deveríamos nos preocupar com os riscos de sofrimento futuro.

A força desse argumento depende do quão positivo ou negativo será o impacto da humanidade na história completa do mundo. No melhor cenário, a humanidade continuaria existindo e tentando prevenir o sofrimento. Mas, outra possibilidade é continuar a existir e não se importar em reduzir o sofrimento que já existiria naturalmente ou, pior ainda, produzir muito mais sofrimento do que já existiria naturalmente. Comparemos três possíveis cenários:

(1) A humanidade continuar e haver menos sofrimento do que se fosse extinta.

(2) A humanidade ser extinta.

(3) A humanidade continuar e haver mais sofrimento do que se fosse extinta.

Parece que 1 é o melhor dos três cenários, e que 3 é pior do que 2. A ideia por trás do foco em evitar sofrimento futuro para todos os seres sencientes (em vez de focar em prevenir a extinção humana) é que é mais importante evitar o pior cenário de todos.

Também é importante lembrar que essas metas podem ser uma questão de grau, e não necessariamente, de “tudo ou nada”. Assim, se alguém acredita que prevenir riscos existenciais é mais importante, isso não justifica pensar que reduzir sofrimento não é muito importante. Da mesma maneira, o fato de alguém priorizar evitar sofrimento não significa que pense que prevenir riscos existenciais não seja muito importante.

Além disso, um ponto de crucial importância é que uma estratégia que parece essencial para evitar o pior cenário (cenário 3) também parece essencial para aumentar a probabilidade do melhor cenário (cenário 1): divulgar da maneira mais eficiente possível a consideração por todos os seres sencientes. Isso parece crucial para garantir que, se a humanidade continuar a existir, tentará prevenir sofrimento em vez de aumentá-lo.

Algumas razões para focar mais em evitar sofrimento futuro do que em riscos existenciais são as seguintes:

(1) Os riscos de sofrimento futuro tem o potencial de ter um impacto astronomicamente maior do que os riscos existenciais, seja em termos de severidade (pois representa a possibilidade de sofrimento extremo durante vidas inteiras de futuros seres sencientes), seja em escopo (pois afetaria todos os seres sencientes no universo daqui até o final dos tempos).

(2) A probabilidade de ocorrer sofrimento astronômico no futuro não parece ser menor do que a dos riscos existenciais ocorrerem.

(3) Ao contrário do que poder-se-ia pensar inicialmente, há muito que poderia ser feito para tentar minimizar os riscos de sofrimento. É, portanto, também um problema tratável.

(4) Há muito mais pessoas preocupadas em evitar riscos existenciais do que riscos de sofrimento futuro.

Portanto, todos os critérios de prioridade parecem apontar para darmos uma grande importância aos riscos de sofrimento futuro.

7.2. A alegação de que conseguiremos mais recursos se priorizarmos humanos

Por vezes é defendido que, como as pessoas são especistas, as organizações que tem como meta beneficiar todos os seres sencientes conseguiriam mais adeptos e recursos se focassem em causas humanas, em vez de focarem na preocupação com todos os seres sencientes.

Um problema central com esse argumento é que ele parece não levar em conta que um dos principais fatores pelos quais existe uma quantidade astronômica de sofrimento acontecendo e há um grande risco de que seja vastamente multiplicado no futuro é justamente a predominância de uma visão antropocêntrica.

Essa é uma razão fortíssima para priorizar defender a consideração moral por todos os seres sencientes, e o quanto antes, já que a não aceitação dessa ideia é o principal obstáculo a se conseguir evitar o sofrimento massivo no mundo, tanto o sofrimento atual quanto o futuro. Por exemplo, imagine que a consideração por todos os seres sencientes tivesse começado a ser difundida em larga escala há dois mil anos atrás. Provavelmente haveria muito menos sofrimento do que há hoje.

Se defendemos priorizar os humanos, além de não estarmos divulgando a consideração por todos os seres sencientes, isso provavelmente teria o efeito de reforçar o especismo (ou, pelo menos, por não questioná-lo, ajudaria a atrasar mudanças em relação às atitudes especistas) e ser um impedimento a prevenir o sofrimento que ocorreria daqui para frente.

Em resumo, parece que o quanto antes (e o quanto mais) for divulgada a consideração pelos seres sencientes, provavelmente melhor a história de mundo daqui para frente. Uma das vantagens dessa estratégia é que, se feita de modo cuidadoso para não gerar rejeição, ela tende a influenciar de modo positivo o futuro, independentemente do que poderia vir a ocorrer. 

8. Conclusão

No presente texto vimos que há várias metas que alguém poderia querer alcançar em termos de ter o melhor impacto em longo prazo. Se a argumentação que vimos faz sentido, ainda que possa haver várias metas dignas de serem buscadas, parece que há razões para dar um peso extra às metas de prevenir sofrimento e de prevenir mortes prematuras para todos os seres sencientes.

REFERÊNCIAS

ALTHAUS, D., 2018. Descriptive Population Ethics and Its Relevance for Cause Prioritization. Effective Altruism Forum, 04 abr. 2018.

BAUMANN, T. Avoiding the worst final: how to prevent a moral cathastrophe. Center for Reducing Suffering, 2022.

CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022.

ÉTICA ANIMAL. Éticas focadas no sofrimento. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 10 jun. 2021.

ÉTICA ANIMAL. Introdução ao sofrimento dos animais selvagens. Oakland: Ética Animal, 2023 [2020].

ÉTICA ANIMAL. Utilitarismo. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 22 out. 2015.

RACHELS, J. The End of Life: Euthanasia and Morality. Oxford: Oxford University Press, 1987.

TOMASIK, B. Applied Welfare Biology and Why Wild-Animal Advocates Should Focus on Not Spreading Nature. Essays on Reducing Suffering, 03 jun. 2022.

VINDING, M. Suffering-focused ethics: Defense and implications, Copenhagen: Ratio Ethica, 2020a.

VINDING, M. Suffering and happiness: Morally symmetric or orthogonal?, Center for Reducing Suffering, 2020b.


Notas:

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Para esse cálculo, ver Althaus (2018) e Baumann (2022, p. 29-35). No original, essas siglas são NSR (normative suffering-to-happiness trade ratio) e ESR (expected suffering-to-happiness-ratio). Entretanto, aqui optei por adaptá-las sem enfatizar que necessariamente é uma comparação entre sofrimento e felicidade, pois, apesar de isso ser certamente possível, essa equação também permite comparar a meta centrada em evitar sofrimento com qualquer outra meta.

[3] Para uma introdução às éticas focadas no sofrimento, ver Ética Animal (2021). Para uma defesa de uma ética focada no sofrimento, ver Vinding (2020a).

[4] Para uma introdução a esses argumentos, ver Ética Animal (2021). Para uma análise mais detalhada, ver Vinding (2020b).

[5] Esse é o caso, por exemplo, do utilitarismo. Para uma introdução ao utilitarismo, ver Ética Animal (2015)

[6] Isso é chamado de princípio da utilidade marginal decrescente.

[7] Esses argumentos são discutidos em mais detalhes em Baumann (2022, p. 32-4).

[8] Sobre isso, ver Baumann (2022, p. 54-6).

[9] Para um relato detalhado sobre isso, ver Ética Animal (2023[2020]).

[10] Sobre isso, ver Tomasik (2022).

[11] Para uma análise sobre essa relação, ver Cunha (2022, p. 61-92).

[12] Para uma discussão ampla dessa questão, ver Rachels (1987).


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.