Luciano Carlos Cunha[1]
Sumário:
- 1. Por que a maneira como afetaremos os seres sencientes futuros é pouco discutida?
- 2. Por que é importante promover a consideração por todos os seres sencientes
- 3. Riscos ao se defender a consideração pelos seres sencientes
- 3.1. Risco de rejeição e antagonismo
- 3.2. Risco de promover os valores opostos sem querer
- 4. Promovendo a preocupação com os riscos-s e com o futuro
- 5. Conclusão
1. Por que a maneira como afetaremos os seres sencientes futuros é pouco discutida?
A reflexão sobre como nossas decisões podem afetar os seres sencientes futuros é relativamente recente, e ainda pouco discutida. Isso se deve em parte aos dois fatores a seguir:
- Desconsideração por quem não é humano. Dada a vigência do especismo[2] antropocêntrico, a discussão sobre como nossas decisões podem afetar o futuro em longo prazo muitas vezes é limitada ao modo como os humanos serão afetados.
- Negligência quanto ao futuro. Quando as pessoas pensam em que problemas priorizar e sobre quais estratégias escolher para lidar com esses problemas, tendem a pensar nos seres que estão vivos agora (ou, no máximo, que viverão em um futuro próximo).
Esses dois fatores resultam em uma negligência dupla.
- Dado o primeiro fator, algumas pessoas que se preocupam com a maneira como nossas decisões afetam o futuro não levam em conta o impacto das mesmas sobre quem não pertence à espécie humana.
- Dado o segundo fator, a maioria das pessoas que já considera todos os seres sencientes costuma negligenciar o impacto de suas decisões sobre os seres sencientes que existirão no futuro.
Uma maneira de combater essa negligência dupla é, obviamente, defender a importância da consideração por todos os seres sencientes e também a importância da preocupação com o futuro em longo prazo [3]. Neste texto veremos mais sobre essas duas estratégias.
Estas são ambas estratégias amplas. Uma das vantagens das estratégias amplas é que sua eficácia não depende de sabermos como será o futuro. Por exemplo, aumentar a consideração por todos os seres sencientes e a preocupação com os riscos-s provavelmente têm a tendência de influenciar positivamente o futuro, independentemente de como for o futuro.
2. Por que é importante promover a consideração por todos os seres sencientes
Riscos-s são riscos de que surjam sofrimento de magnitude astronômica no futuro[4]. Muitos riscos-s se relacionam à desconsideração por seres não humanos. Por isso, promover a consideração moral de todos os seres sencientes (independentemente de espécie, de se são vítimas de práticas humanas ou de danos naturais[5], do seu grau de inteligência, do seu tamanho, da época em que existirão, de se serão ou não orgânicos etc.) pode ser uma importante estratégia ampla para reduzir um dos maiores fatores de risco para os riscos-s.
3. Riscos ao se defender a consideração pelos seres sencientes
Como acontece com toda estratégia, também há riscos relacionados à defesa da consideração por todos os seres sencientes. Dois exemplos estão listados a seguir. Entretanto, essa estratégia tem o potencial de ser vastamente positiva em prevenir riscos-s se esses riscos forem evitados. Vejamos:
3.1. Risco de rejeição e antagonismo
Um risco é a defesa da consideração pelos seres sencientes gerar rejeição e antagonismo. Isso pode ocorrer principalmente se ela estiver associada a ideias controversas. Aqui você pode ler algumas sugestões para evitar esse risco.
3.2. Risco de promover os valores opostos sem querer
Frequentemente, ativistas da causa animal utilizam argumentos antropocêntricos ou ambientalistas com o objetivo de convencer as pessoas a pararem de consumir os animais ou explorá-los de outras maneiras. O raciocínio por trás desse tipo de estratégia é o de que, como as pessoas são especistas, será mais fácil convencê-las a parar de explorar os animais com argumentos que não são centrados na consideração pelos animais.
Essa estratégia por vezes é defendida apontando-se que muitas pessoas defendem o especismo não porque acreditam que ele está correto, e sim, simplesmente porque gostam de consumir os produtos da exploração animal. Assim, se as pessoas pararem de consumir animais (mesmo que não seja por consideração aos animais), não têm mais uma razão autointeressada para defender o especismo, e então poderão aceitar mais facilmente a consideração por todos os seres sencientes.
Apesar de ser importante levar essa possibilidade em conta, há também riscos grandes em relação ao uso dessa estratégia. Alguns dos principais são os seguintes:
Ela não muda a visão que as pessoas têm em relação aos animais, que é exatamente a causa de os animais se encontrarem na situação em que estão, e um dos fatores de risco para os riscos-s.
Ela reforça valores ambientalistas e antropocêntricos. Isso, por sua vez, é outro fator de risco para os riscos-s, pois poderá influenciar as pessoas a: (1) não quererem prevenir riscos-s, (2) aumentarem a natureza sem levar em conta o vastíssimo sofrimento que seria gerado, (3) colonizarem o espaço (4) gerarem seres sencientes digitais etc.
Para uma explicação do porquê esses cenários são riscos-s, clique aqui.
Você pode ler mais sobre os riscos relacionados a essa estratégia aqui.
Assim, parece mais seguro focar a argumentação na própria consideração pelos seres sencientes, e não nessas outras razões.
4. Promovendo a preocupação com os riscos-s e com o futuro
O que vimos acima parece mostrar que é de importância crucial promover a consideração por todos os seres sencientes. Entretanto, outra coisa essencial é promover a preocupação com o futuro em longo prazo e com evitar riscos-s. Isso envolveria aumentar o grau com que as pessoas e os movimentos sociais são motivados a reduzir os riscos-s e são capazes de fazê-lo.
Especialmente em relação a esse último ponto, é essencial que os ativistas mantenham a mente aberta e queiram sempre aprender mais. É importante sempre lembrar que todos nós podemos estar enganados quanto a muitas coisas. Por exemplo, a maioria dos ativistas da causa animal até agora deu pouca atenção ao sofrimento dos animais selvagens, à vasta quantidade de invertebrados, ao futuro em longo prazo e à possibilidade de senciência não orgânica[6]. É bastante provável que existam muitas outras coisas importantes que ninguém percebeu ainda. Por isso, é sempre importante a revisão constante de nossas visões (não só sobre estratégias, mas sobre prioridades, valores etc.).
5. Conclusão
O que vimos acima sugere que buscar aumentar a consideração pelos seres sencientes e a preocupação com o futuro em longo prazo tem um grande potencial para reduzir riscos-s, se feita com cuidado.
Isso não significa, contudo, que não possam existir outras estratégias tão cruciais quanto ou até mesmo mais cruciais. Para descobrir se esse é ou não o caso, temos que comparar o tempo que seria necessário para esses valores serem assimilados em larga escala com o grau de eficácia de outras intervenções durante o mesmo período de tempo.
Infelizmente, atualmente não temos esses dados. O fato é: simplesmente não sabemos, no estágio atual, qual a maneira mais eficiente de prevenir riscos-s. Por isso a importância crucial de mantermos uma atitude de mente aberta e mudarmos de posição diante de novas evidências.
REFERÊNCIAS
BAUMANN, T. Avoiding the worst final: how to prevent a moral cathastrophe. Center for Reducing Suffering, 2022.
CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022.
ÉTICA ANIMAL. A importância do futuro. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 24 out. 2018.
ÉTICA ANIMAL. Introdução ao sofrimento dos animais selvagens. Oakland: Ética Animal, 2023 [2020].
HORTA. O que é o especismo? Ethic@, v. 21, n. 1, p. 162-193, 2022
O’BRIEN, G. D. The Case for Animal-Inclusive Longtermism. Journal of Moral Philosophy, [s.l.], p. 1–24, 2023.
TOMASIK, B. Risks of astronomical future suffering. Foundational Research Institute, 02 jul. 2019.
TOMASIK, B. Why digital sentience is relevant to animal activists. Animal Charity Evaluators. 03 fev. 2015.
Notas:
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Sobre o conceito de especismo, ver Horta (2022).
[3] Para uma introdução à esse tópico, ver Ética Animal (2018). Para uma defesa desses dois pontos, ver O’brien (2023).
[4] Sobre riscos-s, ver Tomasik (2019) e Baumann (2022).
[5] Sobre a maneira como os processos naturais tipicamente prejudicam os animais em larga escala, ver Cunha (2022) e Ética Animal (2023 [2022]).
[6] Sobre isso, ver Tomasik (2015).
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.
