Mudando o debate público, as formas de ativismo e as instituições políticas

Luciano Carlos Cunha[1]

Sumário:

1. Política e riscos-s

Riscos-s são riscos de no futuro o sofrimento vir a ser multiplicado enormemente, a ponto de exceder várias ordens de magnitude o sofrimento existente atualmente.

No capítulo 9 de seu livro Avoiding the Worst Final, Tobias Baumann[2] fala da importância de mudanças na política se nossa meta é a prevenção de riscos-s. Nesse texto veremos um resumo das ideias que o autor apresenta em tal capítulo, bem como discutiremos alguns temas adicionais sobre como incorporar as mudanças necessárias no debate público dentro do ativismo nas diferentes causas, em especial no ativismo em defesa dos animais.

O termo política é normalmente associado apenas às instituições, mas, em termos mais gerais, diz respeito a todas as atividades feitas publicamente que dizem respeito ao modo como a sociedade deveria estar organizada para alcançar suas metas. Os resultados da política dependem não apenas das instituições, mas também de como acontece a discussão pública, isto é, o debate sobre questões éticas e políticas na sociedade, incluindo a forma como os movimentos sociais fazem ativismo.

Uma política disfuncional pode incentivar a polarização, impedir esforços para reduzir riscos-s, aumentar o risco de agentes malévolos chegarem ao poder e mesmo impedir a discussão sobre qualquer questão ética. Então, tentar melhorar a política é crucial para evitar os riscos-s.

2. O ideal de dois passos

Para melhorar a discussão pública, Baumann sugere o ideal de dois passos[3], que consiste em:

Passo normativo: clarificar as metas que deveriam guiar a política (debater para refinar os valores que formariam os pilares das decisões coletivas),

Passo empírico: perguntar quais políticas melhor alcançariam essas metas.

Pensaríamos como filósofos em nível normativo e como cientistas em nível empírico. A forma como se dá a discussão pública atualmente confunde aspectos empíricos e normativos, o que impede o pensamento claro.

A estrutura sugerida por Baumann permite que percebamos em quais pontos discordamos e onde há concordância, o que pode resultar em compromissos mútuos e até mesmo progresso moral.

Para alcançar tal ideal, é preciso perceber os vieses que nos impedem de abordar questões políticas com uma mente aberta, como o viés de confirmação e o raciocínio motivado[4]. Se buscarmos discutir argumentos morais e evidências empíricas honestamente, podemos reduzir o excesso de confiança em visões políticas. Por exemplo, isso nos inclinaria a tentar entender como uma certa política funciona antes de apoiá-la ou rejeitá-la.

Um debate político mais bem embasado reduziria a probabilidade de polarização e de demagogos com traços malévolos ascenderem ao poder. Então, o ideal de dois passos aumentaria a probabilidade de evitar riscos-s.

3. Natureza tribal e polarização

O desejo de pertencer a um grupo está entre os fatores que mais determinam nossos julgamentos políticos[5]. Isso faz com que o interesse de muitas pessoas não seja analisar criteriosamente os prós e contras de diferentes propostas políticas, mas sinalizar lealdade (a um partido, a um movimento social etc.).

Nossos cérebros tendem a processar as questões políticas e os indivíduos de maneira emocionalmente carregada e em termos de “zero ou um”. Instintivamente, tendemos a ver nossa tribo política e líderes de maneira excessivamente positiva e a demonizar o outro lado.

Isso nos conduz a uma confiança excessiva nos ideais de nosso grupo e hostilidade aos grupos rivais. Incerteza e nuances não se encaixam nessa mentalidade, muito menos o reconhecimento da possibilidade de, apesar das discordâncias, adotarmos compromissos mútuos. Segundo essa mentalidade, qualquer argumento, e mesmo os fatos, precisam favorecer o “nosso lado”. A possibilidade de estarmos enganados e de termos que aprimorar nossa visão (seja quanto aos fatos, seja quanto aos valores) não tem lugar nessa mentalidade.

Tentar limitar a influência dessa tendência evitaria a polarização excessiva (que é um fator de risco para os riscos-s). Assim, aumentar os padrões do discurso público é uma maneira promissora de reduzir os riscos-s.

Reduzir o tribalismo abre as portas para a cooperação e compromissos mútuos. Todos os lados têm a ganhar se pensarmos em termos de resultados, em vez de “acabar com o outro lado”.A sinalização de lealdade cria uma aparência de grande discordância mesmo quando a discordância é limitada. Essa é também uma razão para focarmos o discurso mais em políticas do que em partidos ou indivíduos (especialmente em políticas mutuamente benéficas).

O risco de polarização existe não apenas em relação à política em termos de partidos. Existe também, por exemplo, dentro das causas sociais. Por exemplo, dentro do movimento de defesa animal a polarização entre grupos que buscam diferentes estratégias de ativismo pode dar a entender equivocadamente que há uma diferença de objetivos mesmo quando a divergência for somente estratégica e impedir a adoção de compromissos mútuos.

4. Aumentando o padrão do debate público

Baumann (2022, p. 67-70) sugere as seguintes estratégias para aumentar os padrões do debate público são:

1) Pensar em termos de nuance. Consiste em reconhecer grãos de verdade e de erro em cada perspectiva, e pensar em termos de graus de confiança em vez de certezas rígidas. Isso evitaria pensamentos do tipo “zero ou um”, “nós x eles” etc. Evitaria também a tendência de se demonizar quem pensa diferente.

2) Discutir os argumentos de maneira séria e intelectualmente honesta, sem distorcer a posição e os argumentos de quem discorda, e reconhecendo que podemos estar enganados quanto a muitas coisas.

3) Conversas mais respeitosas também diminuem a probabilidade dos piores cenários. Isso não implica “amaciar” a mensagem (dizer, por exemplo, que o especismo é menos grave do que realmente é). Implica apenas discutir os argumentos de forma honesta e aberta.

Como acréscimo a essas sugestões, sugerimos aqui outras três estratégias:

4) Focar em discutir a plausibilidade do argumento independentemente de quem o pronunciou. Como consequência da polarização, no discurso público atual (incluindo nos movimentos sociais) tudo o que parece importar é quem deu o argumento. Se a pessoa pertence ao “nosso lado” ou ao grupo que queremos defender, o seu argumento é aceito, por pior que seja. Se pertence ao “outro lado”, o seu argumento é rejeitado, mesmo que seja sólido e aponte um problema sério com nossa visão. Essa tendência tem impedido o debate sério sobre qualquer questão, e infelizmente tem crescido até mesmo nos meios acadêmicos.

5) Aplicar um método similar ao do véu da ignorância à discussão de argumentos e de propostas políticas. Uma maneira de tentar contornar o problema mencionado no item anterior é discutir os argumentos e as propostas políticas sem saber quem são seus proponentes. Mesmo quando isso não é possível, ainda podemos fazer perguntas como “se não soubéssemos quem deu o argumento ou quem fez a proposta, manteríamos a mesma visão?”, ou “se o argumento ou a proposta em questão tivessem sido apresentados pelo lado oposto, manteríamos a mesma posição?”.

6) Adotar a estratégia da abordagem de leque amplo[U4] , que será explicada em detalhes no item a seguir.

5. A estratégia da abordagem de leque amplo

Evitar confrontos desnecessários aumenta as chances de que as metas que almejamos sejam metas comuns, e não, questões controversas. Podemos diminuir a probabilidade de rejeição e antagonismo adotando uma abordagem de leque amplo. Veremos mais sobre ela a seguir.

A abordagem de leque amplo consiste em tentar buscar com que a meta que queremos alcançar possa ser aceita pelo maior número de pessoas, independentemente de elas concordarem ou discordarem de nós em relação a outros pontos. Se concordar com determinada ideia adicional não é necessário para que alguém aceite o que estamos propondo, então pode ser bastante positivo enfatizar que, mesmo que haja discordância sobre outras coisas, ainda poderia haver concordância em relação ao que estamos propondo.

Isso tem a vantagem de diminuir a polarização (pois mostra-se que, apesar das muitas divergências, pode haver uma meta comum) e também de aumentar a probabilidade de um número muito maior de pessoas aceitar o que estamos propondo.

Considere metas como:

Essas metas podem ser aceitas sem necessariamente nos comprometermos com uma visão específica, seja em ética ou política. Então é melhor enfatizar isso do que defender uma teoria ética específica (como por exemplo o utilitarismo, uma teoria de direitos, o igualitarismo, uma ética de virtudes etc.) ou uma vertente política, pois assim é maior o potencial de aceitação dessas metas por parte de pessoas que possuem as mais variadas posições éticas e políticas.

Assim, em vez de defender que devemos adotar uma visão específica em ética ou política e que uma implicação dessa visão é aceitar aquelas metas, é preferível mostrar que aquelas metas deveriam ser aceitas por todos, independentemente de qual visão em ética ou política considerarem mais plausíveis. Defender posições específicas pode passar uma impressão errada de que, para se aceitar tais metas, é necessário aceitar tais visões (e, então, o resultado ser quem não aceita tais visões rejeitar essas metas).

É claro que, se uma pessoa adere a uma visão específica em ética ou política, considerará que o melhor mundo é aquele onde as metas de sua visão específica são realizadas, e não apenas aquelas metas gerais citadas acima. Mas, dado o problema mencionado acima, alcançar o ideal pode aumentar muito as chances de não se garantir nem o mínimo. Então, se baixamos um pouco o que desejamos alcançar, e focamos nas metas comuns, aumentamos as chances de conseguir o mínimo e talvez muito mais. Essa é uma situação similar à do dilema do prisioneiro[9].

Você pode encontrar exemplos de como a abordagem de leque amplo se aplica a casos específicos aqui.

7. Melhorando as instituições

Em relação aos riscos-s, metas importantes são:

(1) Prevenir polaridade excessiva

(2) Prevenir atos de agentes malévolos

(3) Prevenir o totalitarismo.

As instituições políticas influenciam tanto quanto a cultura política em aumentar ou diminuir a probabilidade desses fatores de risco para os riscos-s. Portanto, vale a pena investigar o que poderia ser feito institucionalmente para prevenir tais fatores de risco. Dentre as sugestões que Baumann (2022, p.73-74) faz nesse sentido, estão:

Proteger a democracia

A democracia previne que um único indivíduo consiga muito poder, e então, reduz a influência de agentes malévolos. Inversamente, sistemas onde o poder é mais concentrado aumentam a probabilidade de agentes malévolos e estratégicos conseguirem poder. Nem sempre isso é garantido, mas funciona melhor do que em outros sistemas. Assim, fortalecer as instituições democráticas pode ser promissor em termos de reduzir os riscos-s.

Em termos de riscos-s, é mais importante evitar catástrofes institucionais do que tentar alcançar as melhores instituições possíveis[10]. Por exemplo, em termos de riscos-s, a diferença entre uma democracia e um regime totalitário é muito maior do que entre uma democracia funcional e uma democracia falha.

As democracias liberais modernas oferecem proteção aos direitos humanos e liberdades civis, como a liberdade de expressão, que são uma precondição para se levantar preocupações morais. Por isso, a sua supressão é um fator de risco para os riscos-s.

Como melhor promover a democracia? Segundo Baumann (2022, p.74) não está claro se o melhor é tentar instalar democracias liberais em nações não democráticas, salvaguardar as democracias existentes contra retrocessos, ou fortalecer a democracia em estados semi democráticos. Entretanto, ele enfatiza que é essencial garantir que a promoção da democracia não seja utilizada como pretexto para buscar interesses econômicos, pois isso pode desacreditar a ideia de instalar democracias. e até mesmo contribuir para um conflito maior.

Representação política de todos os seres sencientes

Outra maneira de melhorar as instituições é tentar instituir representantes para seres sencientes que não podem representar a si próprios (como os animais não humanos e os seres futuros).  Essa proposta é conhecida como senciocracia, ou democracia sencientista.

8. Por que uma pequena melhora já faria uma grande diferença

Em relação às sugestões que fez para melhorar as instituições e a cultura política, Baumann (2022, p. 76) apresenta as seguintes conclusões:

É difícil saber quais são as instituições ideais ou a cultura política ideal, mas, o status quo político (seja em termos de instituições, seja em termos do debate público) é tão ruim que, para melhorá-lo, não é preciso saber essas respostas.

Embora muitas pessoas tentem exercer influência política, poucas estão trabalhando para melhorar a cultura política e as instituições. Além disso, aspectos relacionados a riscos-s, especialmente relacionados aos seres sencientes não humanos, são ainda mais negligenciados. Então, mesmo uma melhora marginal na cultura política ou nas instituições pode ser altamente benéfica.

É realista esperar sermos menos enviesados e menos tribais, esperar que as instituições possam funcionar melhor etc. Podemos aumentar o grau com que a política seja baseada em valores refletidos e em evidências empíricas, mesmo que não consigamos mudá-la em sua totalidade.

Outra vantagem das propostas acima é que elas são benéficas não apenas para reduzir os riscos-s, mas para várias outras metas (o que aumenta a probabilidade de cooperação).

É importante buscar tais ideais mesmo que sua adoção em larga escala não seja possível em curto prazo. Melhoras modestas e contínuas podem, depois de um tempo longo o suficiente, contribuirem para uma mudança transformadora.

Um bom ponto de partida é seguir o ideal de dois passos no nosso próprio pensamento e comunicação, e dar o exemplo seguindo os princípios do raciocínio intelectualmente honesto.

REFERÊNCIAS

BAUMANN, T. Avoiding the worst final: how to prevent a moral cathastrophe. Center for Reducing Suffering, 2022.

CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022.

ÉTICA ANIMAL. A importância do futuro. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 24 out. 2018.

ÉTICA ANIMAL. Introdução ao sofrimento dos animais selvagens. Oakland: Ética Animal, 2023 [2020].

ÉTICA ANIMAL. Raciocínio motivado e viés de confirmação. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 12 mar. 2019.

HORTA, O. A seleção de causas: longoprazismo e animais. Youtube, 27 mar. 2023.

KUHN, S. Prisoner’s Dilemma. In: ZALTA, E. N. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. 2019.

SIMLER, K., HANSON, R. The Elephant in the Brain: Hidden Motives in Everyday Life. Oxford University Press, 2017.

TOMASIK, B. Why digital sentience is relevant to animal activists. Animal Charity Evaluators. 03 fev. 2015.


Notas:

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Ver Baumann (2022, p. 65-76).

[3] Baumann (2022, p. 65-7).

[4] Sobre como esses vieses afetam o ativismo na causa animal, ver Ética Animal (2019).

[5] Para um estudo sobre isso, ver Simler e Hanson (2017). Para uma discussão sobre a relação disso com riscos-s, ver Baumann (67-70).

[6] Para uma introdução ao longoprazismo, ver Ética Animal (2018) e Horta

[7] Para uma discussão detalhada sobre esse tópico, ver Cunha (2022) e Ética Animal (2023 [2020]).

[8] Assim como o antropocentrismo é uma forma de especismo, que discrimina contra quem não pertence à espécie humana, o carbonismo é uma forma de substratismo, que discrimina contra quem não é orgânico. Se no futuro for possível a existência de seres sencientes não orgânicos, é possível que sejam prejudicados devido ao carbonismo. Para uma discussão sobre esse tópico, ver Tomasik (2015).

[9] Essa é uma situação como no exemplo do dilema do prisioneiro. Sobre o dilema do prisioneiro, ver Kuhn (2019).

[10] Novamente, aqui acontece algo similar ao dilema do prisioneiro.


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.