Imparcialidade temporal: o que é, e por que é importante

Luciano Carlos Cunha[1]

Sumário:

1. Introdução

A maneira como nossas decisões podem afetar os seres sencientes que viverão no futuro distante ainda é uma questão muito negligenciada, mas que tem começado a receber atenção[2].

A seguir, veremos uma das razões centrais pelas quais essa questão tem sido negligenciada (a presença do viés temporal) e as razões para adotarmos uma abordagem centrada na imparcialidade temporal[3]. Veremos também que rejeitar a imparcialidade temporal não é suficiente para descartar uma preocupação forte com o modo como nossas decisões afetarão os seres sencientes futuros.

2. O viés temporal

Um dos fatores que contribui para que as pessoas negligenciem o impacto de suas decisões sobre os seres futuros é o viés temporal. Vieses cognitivos são padrões sistemáticos de raciocínio falho, ou atalhos mentais que confundem nosso julgamento. O viés temporal consiste na tendência de darmos maior importância a um evento dependendo do quão próximo do presente ele se encontra.

Para entender por que essa tendência é um viés, basta lembrar que o momento que agora é presente já foi futuro e que os próximos momentos futuros também chegarão a acontecer, assim como esse momento aconteceu. Um exemplo de viés temporal seria pensar que não deveríamos nos preocupar há 10 anos atrás com garantir que o momento que estamos vivendo agora não fosse negativo para nós, apenas porque naquela época ele estava longe no tempo.

O quanto devemos nos empenhar em buscar ou evitar certo acontecimento deveria depender do quão bom ou ruim ele é, e não, do quão próximo ou distante está do presente. Assim, rejeitar o viés temporal implica aceitar que cada momento no tempo, por si só, não tem um status superior ou inferior (o que importa é o quão bom ou ruim seria o evento). Isso pode ser melhor entendido a partir da ideia de imparcialidade temporal, que é uma implicação da ideia mais geral de imparcialidade. Veremos algo sobre esses conceitos a seguir.

3. Imparcialidade

  • Imparcialidade: é a consideração não tendenciosa dos afetados por nossas decisões.

A imparcialidade[4] implica que prejuízos e benefícios de igual magnitude devem receber o mesmo peso, independentemente de fatores arbitrários como raça, gênero, espécie dos afetados pela decisão ou de qualquer outro fator que seja resultado da loteria natural.

Isso implica também que alguém é desfavorecido tendenciosamente não apenas quando é totalmente desconsiderado, mas também quando, com base em fatores arbitrários, o seu bem recebe um peso menor.

Como veremos a seguir, a imparcialidade temporal é um caso específico de aplicação dessa ideia geral de imparcialidade.

4. Imparcialidade temporal

Para entendermos a ideia de imparcialidade temporal, é útil compará-la com a ideia de imparcialidade espacial.

Vimos acima que a imparcialidade implica rejeitar distinções arbitrárias, como, por exemplo, dar graus diferenciados de consideração moral com base na espécie, raça ou gênero dos afetados pela decisão. Outro exemplo de distinção arbitrária seria dar graus diferenciados de consideração moral dependendo do local onde alguém se encontra. Assim, a imparcialidade implica a imparcialidade espacial:

  • Imparcialidade espacial: é a consideração não tendenciosa dos afetados por nossas decisões, independentemente do local em que se encontram .

Uma implicação da imparcialidade espacial é que não há justificativa para se dar um peso menor ao bem de um ser senciente só porque ele se encontra longe de nós.

Perceba que a imparcialidade espacial não é uma ideia diferente da imparcialidade geral: é apenas uma implicação da mesma. Entretanto, a imparcialidade também implica o mesmo em relação ao tempo:

  • Imparcialidade temporal: é a consideração não tendenciosa dos afetados por nossas decisões, independentemente da época em que eles existem.

Assim, uma implicação da imparcialidade temporal é que não há justificativa para se dar um peso menor ao bem de um ser senciente só porque ele existirá no futuro (seja próximo ou distante). A conclusão prática importante é essa: de acordo com a imparcialidade temporal, o fato de um dano ocorrer no futuro distante não enfraquece as razões para preveni-lo.

A maioria das pessoas que almeja reduzir o sofrimento no mundo pensa nos indivíduos vivos atualmente (uma das razões para isso, além do viés temporal, é que é difícil ter empatia com indivíduos de um futuro distante). Entretanto, se o que vimos faz sentido, dar uma consideração menor a alguém dependendo da época em que existirá é análogo a discriminá-lo com base no lugar em que vive, sua espécie, cor da pele, gênero etc.

Essa é, em resumo, a ideia central da imparcialidade temporal.

5. A objeção de que seres futuros são apenas seres em potencial

Uma possível objeção à imparcialidade temporal consiste em defender que os indivíduos futuros são agora meras possibilidades que podem não chegar a existir, diferentemente dos indivíduos que já existem.

Uma resposta a essa objeção é apontar que nossas decisões podem fazer com que tais possibilidades cheguem a se tornar indivíduos reais no futuro, e também podem fazer com que suas vidas sejam mais positivas ou mais negativas. Por exemplo, mesmo quem defende que não há dever de produzir novos seres sencientes para terem vidas positivas pode reconhecer que há um dever de não produzir novos seres sencientes para terem vidas negativas. E também pode reconhecer que, se um ser necessariamente existirá no futuro independentemente do que decidirmos, devemos decidir agora de modo a evitar prejudicá-lo e a buscar beneficiá-lo. Esses pontos são discutidos em mais detalhes neste texto.

Assim, há pelo menos duas maneiras pelas quais nossas decisões podem afetar os seres futuros:

  • É possível que nossa decisão determine se um ser senciente futuro chegará a existir ou não, e se nascerá em um contexto onde provavelmente terá uma vida predominantemente negativa ou positiva.
  • É possível que nossa decisão não determine se um ser senciente futuro chegará a existir ou não, mas determine a quantidade de eventos negativos ou positivos que terá na vida.

Boa parte do ativismo da causa animal já é sobre seres futuros. Por exemplo, o veganismo é majoritariamente sobre tentar evitar que mais animais cheguem a nascer para ter uma vida repleta de sofrimento, e não, sobre animais que já existem. Essa também é a meta dos programas de esterilização, seja de animais selvagens ou de animais domesticados. Por sua vez, as regulamentações que tentam fazer com que os animais explorados sofram menos são sobre fazer com que os seres que necessariamente existirão tenham menos sofrimento em vida. Por fim, a difusão de uma visão de consideração por todos os seres sencientes almeja que, dali para frente, aumente a probabilidade de que os seres sencientes futuros tenham vidas com mais eventos positivos e menos eventos negativos. É claro, uma parte do ativismo da causa animal é sobre ajudar animais que já existem (como nos programas de vacinação e tratamento de doenças, a ajuda a animais em incêndios e em outros desastres naturais, a assistência a animais órfãos, o resgate de animais presos e programas para atender as necessidades básicas dos animais). Entretanto, como vimos, boa parte já advém do reconhecimento da consideração por seres futuros.

Uma maneira de entender que é arbitrário dar um peso menor ao bem de alguém dependendo do quão longe no futuro existirá é imaginar o que pensaríamos se gerações anteriores à nossa pensassem que não haveria problema algum com atitudes que nos prejudicassem enormemente, devido ao fato de, na época, nós não existirmos ainda.

O experimento de pensamento do véu da ignorância pode também ajudar a fundamentar a ideia de imparcialidade temporal[5]. Imaginemos que tivéssemos que decidir quais princípios de justiça as pessoas deveriam seguir, mas sem saber em que época nasceríamos (apenas sabendo que teríamos que nascer em alguma época). Sob tais condições, parece que defenderíamos dar igual consideração a todos os indivíduos que pudessem ser afetados pelas decisões dos agentes, não importando em que época existiriam.

6. Rejeitar a imparcialidade temporal justifica desconsiderar os seres futuros?

O que vimos acima sugere que há fortes razões para aceitarmos a imparcialidade temporal e darmos igual consideração aos seres que existirão no futuro.

Contudo, imaginemos que houvesse justificativa para darmos um peso maior ao bem dos seres sencientes que existem agora. Ora, isso não mostraria que há justificativa para desconsiderar os seres futuros: haveria apenas justificativa para dar-lhes um peso menor.

E mesmo se fosse esse o caso, ainda deveríamos dar uma importância enorme ao futuro em longo prazo, a ponto de priorizá-lo, em comparação ao presente ou ao futuro em curto prazo. Isso pode soar estranho à primeira vista, mas é fácil explicar por que há essa implicação. Vejamos:

O futuro poderá durar muitas eras e, portanto, a quantidade de seres sencientes que poderão existir ao longo do futuro seria também vastíssima. O ponto é: essa quantidade seria tão vasta que, mesmo que déssemos um peso cada vez menor ao bem de cada ser senciente dependendo do quão longe existirá no futuro, ainda teríamos que concluir por priorizar a preocupação com o futuro em longo prazo, dada a quantidade total de indivíduos afetados. Esse é um dos argumentos centrais a favor de um foco no longo prazo, que veremos em outro texto .

7. Conclusão

Se o que vimos acima faz sentido, então duas conclusões importantes se seguem, se nosso objetivo é fazer com que o mundo contenha menos sofrimento:

(1) Precisamos considerar todos os seres sencientes (incluindo os do futuro distante).

(2) Precisamos dar um grande peso ao futuro em longo prazo.

Dois fatores têm contribuído bastante para a negligência dessa importante questão. Um deles, como vimos, é o viés temporal. O outro é o especismo. A combinação desses dois fatores contribui para o seguinte resultado, que é uma negligência dupla:

(1) Devido ao especismo, quando a preocupação com o futuro em longo prazo aparece, geralmente é levado em conta apenas os humanos futuros.

(2) Devido ao viés temporal, aquelas pessoas que já aceitam considerar todos os seres sencientes (por exemplo, ativistas da causa animal) têm normalmente desconsiderado os seres sencientes futuros.

Se nosso objetivo é fazer com que haja menos sofrimento no mundo, precisamos rejeitar essa negligência dupla. A preocupação com o longo prazo precisa rejeitar o especismo e considerar todos os seres sencientes, e a preocupação com os seres sencientes precisa rejeitar o viés temporal e levar em conta o futuro em longo prazo[6].

REFERÊNCIAS

ÉTICA ANIMAL. A importância do futuro. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 24 out. 2018.

ÉTICA ANIMAL. Justiça plena: o que o véu da ignorância nos mostra sobre uma sociedade justa. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 31 dez. 2016.

ÉTICA ANIMAL. O argumento da imparcialidade. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 24 dez. 2015.      

PARFIT, D. Reasons and persons. Oxford: Oxford University Press, 1984.

O’BRIEN, G. D. The Case for Animal-Inclusive Longtermism. Journal of Moral Philosophy, [s.l.], p. 1–24, 2023.

ROWLANDS, M. Animal rights: Moral, theory and practice. 2. ed. New York: Palgrave Macmillan, 2009 [1998].


Notas:

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Para uma introdução ao tema da importância do futuro, ver Ética Animal (2018).

[3] Para uma discussão detalhada sobre esses temas, ver Parfit (1984, p. 351-443);

[4] Para uma introdução às implicações da imparcialidade para decisões que afetam seres sencientes não humanos, ver Ética Animal (2015, 2016). Para uma análise mais detalhada, ver Rowlands (2009 [1998], p. 118-175).

[5] Sobre o véu da ignorância, ver Ética Animal (2016).

[6] Para uma argumentação defendendo em detalhes essas duas teses, ver O’brien (2023).


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.