Luciano Carlos Cunha[1]
Sumário:
- 1. A estratégia de usar argumentos antropocêntricos ou ambientalistas
- 2. Alguns problemas com o uso de argumentos antropocêntricos e ambientalistas
- 3. Por que motivações diferentes têm consequências diferentes
- 4. Argumentos indiretos facilitam aceitar considerar os seres sencientes?
- 5. Riscos do uso de argumentos não centrados na consideração por seres sencientes
- 5.1. O risco de dar a entender que os animais não importam
- 5.2. O risco de fortalecer visões contrárias à consideração pelos animais
- 5.3. O risco de aumentar a exploração animal
- 5.4. O risco de aumentar o sofrimento dos animais selvagens
- 6. Conclusão
1. A estratégia de usar argumentos antropocêntricos ou ambientalistas
Há muitas possibilidades de se fazer a defesa da consideração moral de todos os seres sencientes. Essas possibilidades incluem não apenas apresentar argumentos para se rejeitar o especismo e outras discriminações contra seres sencientes, mas também quaisquer outras formas de ativismo que promovam essa consideração, mesmo que indiretamente.
Um exemplo é a estratégia de argumentar contra a exploração animal, mas com argumentos não centrados na consideração pelos animais. Exemplos são defender:
- Que a pecuária tem um impacto ambiental negativo.
- Que os produtos de origem animal são prejudiciais à saúde humana.
- Que consumir animais não é natural para os humanos
- Que torturar animais é um treino para torturar humanos.
- Que a maneira como os produtos de origem animal é feita é nojenta.
- Que a experimentação animal apresenta riscos para os humanos.
- Que a pecuária tem relação com a fome dos humanos.
- Que a alimentação vegetal era o modo original de alimentação de certos povos.
…e assim por diante.
Essa estratégia está fundada em duas premissas:
- A primeira é a crença de que as consequências para os animais são as mesmas, quer as pessoas parem de explorá-los por consideração a eles, quer por outros motivos (“para os animais o que importa é que parem de explorá-los: o motivo não importa”).
- A segunda é a crença de que esses argumentos antropocêntricos ou ambientalistas são mais eficientes para conduzir as pessoas a não explorarem os animais porque, como as pessoas são especistas, se convenceriam mais facilmente com eles.
No presente texto, discutiremos essa estratégia[2]
2. Alguns problemas com o uso de argumentos antropocêntricos e ambientalistas
Existem pelo menos duas maneiras pelas quais é possível questionar as duas premissas acima:
- Não é só a exploração sobre os animais que importa. Também importam os danos padecidos pelos animais na natureza em decorrência dos processos naturais[3] e as novas formas de sofrimento que poderão surgir no futuro [4]. Como veremos no item a seguir, os argumentos antropocêntricos e ambientalistas, além de não abordarem esses problemas, podem aumentá-los.
- Ao contrário do que pode parecer inicialmente, as diferentes motivações para deixar de explorar os animais não têm as mesmas consequências.
Ambos os pontos serão explicados em mais detalhes no item a seguir.
3. Por que motivações diferentes têm consequências diferentes
No planejamento de uma estratégia precisamos levar em conta todas as prováveis consequências que conseguimos estimar, e não apenas algumas. Assim, temos de levar em conta não apenas o impacto direto do uso de produtos de origem animal mas também, crucialmente, o impacto da visão de mundo que fortalecemos.
A influência que cada pessoa tem por meio de seu consumo dura até o final de sua vida. Já os efeitos decorrentes da visão de mundo que passa adiante se estendem ao longo de séculos ou milênios, pois afetam o modo como outras pessoas vão decidir e como vão influenciar outras pessoas a decidirem. Os valores que as pessoas adotam guiam a maneira como tomam todas as decisões ao longo da vida, e também determinam quais valores passam às outras pessoas, incluindo às gerações futuras.
Tendo isso em vista, parece que os argumentos centrados na consideração pelos animais teriam um melhor impacto, especialmente em longo prazo, pois ajudam a aumentar a consideração moral pelos seres sencientes, algo que qualquer outro argumento não faria. Na verdade, como veremos nos itens 5 e 6, o uso de argumentos não centrados na consideração pelos animais poderia até mesmo aumentar os danos para os seres sencientes.
4. Argumentos indiretos facilitam aceitar considerar os seres sencientes?
Poderia ser objetado que frequentemente o especismo é defendido não porque as pessoas acreditam que ele esteja correto, e sim como uma desculpa, simplesmente porque gostam do sabor dos produtos de origem animal. Assim, em defesa do uso de argumentos antropocêntricos ou ambientalistas, poderia ser dito que, se as pessoas pararem de consumir animais, seja lá por que motivo, será mais fácil para depois aceitarem uma visão antiespecista.
O mesmo valeria para outras formas de exploração animal, como a experimentação animal. Segundo essa visão, as pessoas que a defendem não o fazem porque a consideram justa, mas simplesmente porque não querem descartar os benefícios que obtiveram com ela (por exemplo, terem construído carreiras científicas fazendo experimentos em animais).
Por isso, segundo essa visão, conseguir, seja lá de que maneira, que as pessoas deixem de explorar os animais pode ser mais eficiente para conseguir um mundo onde os seres sencientes recebem consideração do que a própria defesa dessa consideração.
Esse argumento tem base em uma ideia que parece correta. Porém, se o argumento tiver êxito, a conclusão que se segue é que devemos combinar essa estratégia com a defesa da consideração pelos seres sencientes. Por que? Porque o argumento só indica que as argumentações não centradas na consideração pelos animais ajudariam na consideração pelos seres sencientes. Mas essa consideração continuaria sendo necessária para prevenir os danos no longo prazo. Mesmo se o argumento estivesse correto, o uso de argumentos não centrados nos animais no máximo facilitaria a expansão da consideração moral pelos animais. No entanto, se é assim, então faz sentido pensar que, para alcançá-la, é provavelmente mais eficiente difundi-la diretamente do que difundir outras ideias.
Além disso, é possível que as pessoas que defendem a exploração animal o façam simplesmente por darem muito pouca consideração aos animais não humanos (e não, que consideram a exploração como algo errado e a defendem simplesmente para disfarçar que não querem largar de consumir os produtos de origem animal). Se considerassem os animais, mesmo um pouco, a enorme quantidade de sofrimento e de mortes causados pela exploração animal já deveria ser uma razão mínima motivadora para tentarem abandonar o consumo. Agora, se essas pessoas chegariam a abandonar o consumo por razões antropocêntricas ou ambientalistas, então isso é um sinal de que acreditam fortemente em valores antropocêntricos e ambientalistas. Então, é no mínimo incerto se o fato de pararem de consumir animais por motivos antropocêntricos ou ambientalistas facilitaria aceitarem a consideração por todos os seres sencientes.
5. Riscos do uso de argumentos não centrados na consideração por seres sencientes
5.1. O risco de dar a entender que os animais não importam
Há também o risco de o uso de argumentos antropocêntricos e ambientalistas atrasar (ou mesmo impedir) a consideração pelos seres sencientes. Por exemplo, se mesmo quando o assunto é a exploração dos animais, os argumentos empregados para considerar a questão não têm a ver com o prejuízo para os animais, isso pode contribuir para enfatizar que o sofrimento e as mortes dos animais é algo que não importa muito (ou mesmo que não importa nada).
5.2. O risco de fortalecer visões contrárias à consideração pelos animais
Assim, o uso de argumentos não centrados na consideração pelos animais pode contribuir para fortalecer a visão especista, que é exatamente a causa da terrível situação na qual os animais se encontram. É claro, haveria que se examinar com estudos rigorosos até que ponto isto é assim ou não. Mas, já que o antropocentrismo e o ambientalismo envolvem valores diametralmente opostos à consideração pelos seres sencientes, há uma razão inicial para se pensar que o risco de tal estratégia é muito grande.
5.3. O risco de aumentar a exploração animal
Outro possível efeito do uso de argumentos não centrados nos animais é passar a ideia de que, se os animais estiverem a ser prejudicados sem afetar negativamente os humanos ou o meio ambiente, então tudo bem. Isso pode contribuir para incentivar a busca de formas mais sustentáveis de explorar os animais que podem ser ainda piores para eles, como confiná-los em espaços ainda menores, promover o consumo de animais aquáticos e de insetos, o que faria com que morresse um número vastamente maior de animais, pois são muito menores. Essas práticas podem, inclusive, ser benéficas para os humanos ou de um ponto de vista ambientalista.
Nesses casos, o uso de argumentos não centrados nos animais pode contribuir para aumentar consideravelmente o número de animais explorados, resultando em mais animais sendo mortos até mesmo do que se não tivesse sido dito nada contra a exploração animal.
5.4. O risco de aumentar o sofrimento dos animais selvagens
O uso de argumentos não centrados nos animais, por serem centrados em uma visão de mundo antropocêntrica ou ambientalista, também pode contribuir para uma negligência quanto ao sofrimento dos animais selvagens em decorrência dos processos naturais e uma rejeição da proposta de ajudá-los[5]. Além de, como vimos, isso ter o potencial de levar as pessoas a aprovarem formas de exploração animal sustentáveis ou vantajosas para os humanos, pode fazer com que as pessoas defendam práticas como a expansão do território natural, a colonização espacial e a desconsideração por seres sencientes futuros não orgânicos.
Para entender por que essas práticas representam um grande risco de maximizarem o sofrimento, clique aqui.
6. Conclusão
Uma das razões principais pelas quais há riscos de ser gerado sofrimento de magnitude astronômica no futuro é o fato de que aqueles que poderiam afetar positiva ou negativamente os seres sencientes não lhes dão consideração moral. Assim, para reduzir tais riscos, é essencial não adiar a defesa da consideração moral de todos os seres sencientes.
REFERÊNCIAS
BAUMANN, T. S-risks: An introduction. Reducing Risks of Future Suffering: Toward a responsible use of new technologies, 2017.
BAUMANN, T. Avoiding the worst final: how to prevent a moral cathastrophe. Center for Reducing Suffering, 2022.
CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022.
CUNHA, L. C. Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente. Curitiba: Appris, 2021.
ÉTICA ANIMAL. Introdução ao sofrimento dos animais selvagens. Oakland: Ética Animal, 2023 [2020].
GREIG, K. Effects of farmed animal advocacy messaging on attitudes towards policies and decisions affecting wild animal suffering. Animal Charity Evaluators, 05 abr. 2017.
TOMASIK, B. Risks of astronomical future suffering. Foundational Research Institute, 02 jul. 2019.
Notas:
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Para uma discussão mais detalhada, ver Cunha (2021, p. 210-223).
[3] Para mais sobre esse tópico, ver Cunha (2022) e Ética Animal (2023 [2020]).
[4] Para mais sobre esse tópico, ver Baumann (2017, 2022) e Tomasik (2019).
[5] Há um estudo que sugere que as pessoas que deixam de consumir produtos de origem animal por razões ambientalistas se tornam mais resistentes à proposta de ajudar os animais na natureza.Ver Greig (2017).
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.
