Luciano Carlos Cunha[1]
Sumário:
- 1. Introdução
- 2. O quão grave é a situação?
- 3. O quanto do problema é possível tentar resolver?
- 4. Quantas pessoas já se preocupam com o problema?
- 5. Escolhendo as melhores soluções
- 6. Conclusão
1. Introdução
Existem muitas causas no mundo, cada uma lidando com problemas importantes. Como escolher a quais delas se dedicar e quais problemas priorizar dentro dessas causas?
As respostas a seguir são muito comuns:
(1) Devemos priorizar causas que visam ajudar humanos
(2) Cada pessoa deveria escolher as causas e problemas que mais simpatizar.
(3) Todas as causas e problemas são igualmente importantes (então devemos dividir nossa dedicação igualmente para cada causa e para cada problema dentro de cada causa).
Em contraste a todas essas respostas, existe outra possibilidade:
(4) Ter a meta de tornar o mundo um lugar menos ruim da maneira mais eficiente possível, isto é, causar o maior bem possível, dados os recursos de que dispomos (dinheiro e tempo gasto, por exemplo).
Se adotarmos essa meta, precisaremos avaliar quais causas priorizar, quais problemas priorizar dentro dessas causas, e quais as melhores estratégias para abordá-los[2]. Isso por conta do seguinte:
- Diferentes causas lidam com problemas que afetam quantidades diferentes de vítimas, com sofrimentos de diferentes magnitudes e taxas de mortalidade diferentes.
- Além disso, as diferentes causas são negligenciadas em maior ou menor grau, o que reflete no número de ativistas e na quantidade de recursos de que dispõem.
- Por fim, dependendo de se aplicamos certo recurso nesse ou naquele problema, e de se usamos essa ou aquela estratégia para tentar resolver o problema que selecionamos, causaremos um bem maior ou menor.
Essa é uma decisão das mais importantes pois, dependendo de como decidamos, seremos eficientes em maior ou menor grau em diminuirmos o que há de ruim no mundo. Além disso, caso não façamos uma boa escolha, corremos até mesmo o risco de. sem querer, aumentarmos ainda mais o sofrimento no mundo.
Veremos a seguir alguns critérios que podem nos auxiliar nesse tipo de decisão.
2. O quão grave é a situação?
Um primeiro tipo de critério para escolher quais causas priorizar e quais problemas priorizar dentro dessas causas é o quão grave é cada situação abordada. É claro, as pessoas discordam sobre quais critérios utilizar para avaliar o quão grave é uma situação. Entretanto, dois critérios são amplamente aceitos: a quantidade de vítimas e o quão ruim é a situação das vítimas. Por essa razão, os exemplos a seguir usam esses dois critérios, mas é importante lembrar que podem existir outros (como os níveis de desigualdade entre as vítimas, por exemplo).
Uma dificuldade que surge quando temos mais de um critério para avaliar a gravidade de uma situação é que eles podem apontar na mesma direção em certas circunstâncias, mas em direções opostas em outras. Por exemplo, por vezes o problema que tem a maior quantidade de vítimas é também aquele no qual as vítimas estão na pior situação. Entretanto, essas coisas nem sempre coincidem. Quando não coincidem, como proceder? Há várias possibilidades. A seguir veremos como exemplo três delas:
(1) Uma possibilidade é escolher com base em apenas um dos parâmetros. Entretanto, uma crítica a esse método é que parece arbitrário escolher um dos dois. Se for a quantidade de vítimas, por que não a gravidade da situação das vítimas, e vice-versa? Outra crítica possível é apontar que conseguimos imaginar, tanto situações onde parece preferível ajudar um número muito maior de vítimas, mesmo que não estejam na pior situação de todas, quanto situações onde parece preferível ajudar vítimas que estão em uma situação bem pior, mesmo não sejam a maioria.
(2) Outra possibilidade é simplesmente multiplicar a quantidade de vítimas pela gravidade da sua situação. Entretanto, uma crítica a esse método é que, dependendo do quão maior for o número de vítimas, é possível que tal método nos leve a considerar mais grave uma situação onde as vítimas tem um dano muitíssimo mais leve, desde que sejam muito mais vítimas.
(3) Uma terceira possibilidade é comensurar os dois fatores. Nesse caso, temos de fazer duas perguntas:
- O quão pior precisa ser a situação da minoria para que tenham prioridade?
- O quão maior precisa ser a quantidade de vítimas que não estão na pior situação para que tenham prioridade?
Teremos de perguntar também:
- Há um ponto a partir do qual nenhum aumento no outro fator pode fazer a balança pender para o outro lado?
Por exemplo, haveria um ponto onde o dano é tão mais leve que nenhum aumento no número de vítimas pode fazer priorizarmos sua situação, dependendo do quão ruim é a situação de cada vítima do outro problema que tem menos vítimas?
Essas dificuldades não devem nos levar a pensar que não há como avaliar qual situação é mais grave. Mesmo que não consigamos nenhuma precisão nessas avaliações, tentar fazê-las tende a ter melhores resultados do que decidir a esmo.
Além disso, mesmo que não chegássemos a nenhuma conclusão satisfatória em situações onde os parâmetros conflitam, há muitas situações onde o problema que apresenta o maior número de vítimas é também o problema no qual as vítimas estão na pior situação (as diversas situações onde se encontram os animais não humanos, sejam os que são explorados pelos humanos[3] ou os que vivem na natureza[4], são bons exemplos disso na atualidade).
3. O quanto do problema é possível tentar resolver?
Suponhamos que tivéssemos chegado a uma conclusão sobre quais problemas são mais graves. Temos então já uma resposta sobre quais situações priorizar? Ainda não, pelo seguinte motivo: é possível que não haja nada possível de ser feito para ajudar certa quantidade de vítimas de uma situação. Isso é ilustrado pelo exemplo a seguir.
Considere as três informações a seguir:
- O problema A afeta 900 mil vítimas.
- O problema B afeta 500 mil vítimas.
- Todas as vítimas de A e B estão em situações igualmente ruins.
Se nos basearmos apenas no quão grave é cada situação, priorizaremos o problema A.
Contudo, adicionemos agora as seguintes informações:
- Em relação às 900 mil vítimas de A, o melhor que conseguiríamos fazer com os recursos de que dispomos é ajudar 400 mil delas: não há nada que possamos fazer para ajudar as outras 500 mil (infelizmente, elas já estão condenadas).
- Já em relação às 500 mil vítimas de B, é possível ajudar 450 mil delas, proporcionando a elas a mesma quantidade de benefício que causaríamos às 400 mil vítimas do problema A com o mesmo recurso.
Assim, levando em conta a parte de cada situação que é possível melhorar, temos uma razão para priorizar o problema B pois, apesar de A ser uma situação pior, é B que apresenta a pior situação possível de ser melhorada.
4. Quantas pessoas já se preocupam com o problema?
Suponhamos que chegássemos a uma conclusão sobre quais situações apresentam as piores situações possíveis de serem melhoradas. Seria isso suficiente para decidirmos quais problemas priorizar? Ainda não. Outro fator importante é saber o que as outras pessoas com poder de ajudar estão fazendo e provavelmente farão.
Quanto maior a quantidade de pessoas já envolvidas em tentar resolver determinado problema, maiores as probabilidades de o problema ser minimizado (ou mesmo resolvido) sem a nossa ajuda. Assim, tudo o mais sendo igual, quanto menor a quantidade de pessoas se importando com uma situação grave, mais fortes as razões para apoiarmos a causa que lida com ela. Tudo o mais sendo igual porque, é claro, esse fator tem de ser pesado em relação a outros fatores importantes, como o quão grave é a situação que cada causa lida. E, novamente, esses fatores podem apontar para a mesma direção em certas circunstâncias (os piores problemas serem os mais negligenciados), mas não em outras.
Por que saber o quão negligenciado é um problema é importante para escolhermos quais problemas priorizar, se nosso objetivo é ajudar da maneira mais eficiente possível? A razão é que, quando uma causa é ainda bastante negligenciada, cada pessoa adicional faz mais diferença do que em causas que já possuem mais adeptos. Quanto mais pessoas já envolvidas em tentar resolver um problema, mais difícil para cada indivíduo ter um grande impacto. Quando poucas pessoas trabalharam em um problema, há muitas grandes oportunidades para cada indivíduo fazer uma diferença significativa.
Um ponto importante a se observar sobre isso é que os problemas mais negligenciados (exatamente aqueles em que cada um de nós teria o maior impacto) a maioria das pessoas talvez nem saiba que existam, pois os problemas noticiados na mídia são os que muito mais pessoas já estão focando.
5. Escolhendo as melhores soluções
A importância da quantidade de benefício que poderíamos causar
Se nosso objetivo é ajudarmos da maneira mais eficiente possível, os três critérios acima são importantes, mas falta levar em conta um fator crucial: a quantidade de bem que conseguiríamos produzir com uma mesma quantidade de recurso muda, dependendo de se escolhemos investir nesse ou naquele problema[5]. Veremos a seguir um exemplo de como esse fator se relaciona com os critérios que vimos antes para selecionar os problemas mais importantes.
Considere o seguinte:
- O problema A tem 100 vítimas, cada uma com um sofrimento de -50.
- O problema B tem 90 vítimas, cada uma com um sofrimento de -40.
O problema A é mais grave, seja do ponto de vista da quantidade de vítimas, seja do quão ruim é a situação de cada vítima.
Agora considere o seguinte:
- Tanto o problema A quanto o problema B são igualmente negligenciados.
- É possível ajudar todas as vítimas de um e de outro.
Contudo, imagine que, com uma mesma quantidade de recursos, nossas únicas opções sejam:
- Ou passar todas as vítimas do problema A de -50 para -49 (ou seja, dar-lhes um alívio muito leve).
- Ou passar todas as vítimas do problema B de -40 para -10 (ou seja, uma melhora considerável).
Nesse caso, priorizando o problema B causaríamos um bem muito maior com a mesma quantidade de recursos.
O fator quantidade de benefício é sempre o mais importante?
O que vimos acima não significa que necessariamente o tamanho do benefício será sempre o fator decisivo. Por exemplo, dependendo da situação, poderíamos preferir causar um benefício total um pouco menor, mas que fosse direcionado à vítimas que estão em uma situação bem pior, ou que ajudasse uma quantidade muito maior de vítimas. Por exemplo, suponhamos que, no exemplo acima, a decisão fosse entre:
- Ou passar as 100 vítimas do problema A de -50 para -30. Benefício total = 2.000,
- Ou passar as 90 vítimas do problema B de -40 para -10. Benefício total = 2.700.
Nesse caso, algumas pessoas já diriam que devemos escolher a primeira opção (pois nesse caso o benefício vai para as vítimas que estão na pior situação e beneficiaria um número maior de vítimas), mesmo que na segunda opção produzamos um benefício maior (seja em termos de benefício para cada vítima, seja em termos de benefício total, multiplicando-se o número de vítimas pelo benefício que cada uma teria).
Mas, como saber quando pesa mais a quantidade de benefício e quando pesa mais a gravidade da situação? Há várias maneiras possíveis de se proceder. Uma possibilidade, por exemplo, seria buscar maximizar os benefícios, mas defender que uma unidade de benefício tem mais valor quanto mais grave for o problema ao qual seria direcionado esse benefício.
Para causar o maior bem possível, é necessário levar em conta o longo prazo
Outro ponto importante é que, se o objetivo é causar o maior bem possível, então temos de levar em conta as consequências de longo prazo de cada estratégia.
Por exemplo, comparando-se duas estratégias, é possível que uma cause mais benefícios inicialmente, mas que, levando em conta os efeitos de longo prazo de cada uma, seja a outra que causará um benefício total maior ao longo do tempo.
Além disso, também é possível que uma estratégia que cause grandes benefícios em curto prazo tenha desdobramentos negativos em longo prazo, podendo até mesmo ter um saldo total negativo. Por essa razão, é crucial tentar estimar os potenciais efeitos de longo prazo, mesmo que isso seja algo difícil de ser estimado com precisão.
6. Conclusão
Vimos acima alguns critérios que podem nos ajudar a escolher quais causas e problemas priorizar e quais estratégias adotar para lidar com eles.
As dificuldades em pesar os distintos critérios não devem nos fazer pensar que é impossível de se chegar a alguma conclusão satisfatória sobre esses problemas. Por exemplo, como veremos em outro texto , a causa animal parece cumprir muito bem os critérios de prioridade, bem como vários problemas relacionados ao futuro . Há uma incerteza maior quanto às melhores estratégias mas, mesmo quanto a isso, também podemos constantemente reavaliá-las[6].
Como você certamente percebeu, os critérios que vimos não fornecem uma resposta pronta e simples. Isso é esperável, pois essas questões são bastante difíceis. Entretanto, esses critérios oferecem orientação para avaliarmos essas questões com a seriedade que o assunto merece.
REFERÊNCIAS
DICKENS, M. Evaluation frameworks (or: when importance / neglectedness / tractability doesn’t apply). Philosophical Multicore, 10 jun. 2016.
ÉTICA ANIMAL. A importância do futuro. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 24 out. 2018.
ÉTICA ANIMAL. A situação dos animais na natureza. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 23 out. 2016a.
ÉTICA ANIMAL. Animais usados por humanos. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 26 abr. 2016c.
REESE, J. Summary of Evidence for Foundational Questions in Effective Animal Advocacy. Sentience Institute. 24 dez. 2019.
ŠIMČIKAS, S. Effective animal advocacy resources. Rethink Priorities, 24 out. 2019.
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Para vários textos e links sobre esse tema, ver Šimčikas (2019).
[3] Ver Ética Animal (2016c).
[4] Ver Ética Animal (2016a).
[5] Sobre isso, ver Dickens (2016).
[6] Para uma lista de discussão sobre vários tópicos em relação a estratégias, ver Reese (2019).
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.
