Seres vivos não sencientes são passíveis de serem prejudicados?

Luciano Carlos Cunha[1]

O biocentrismo é a visão de que tudo o que é vivo deveria receber consideração moral. Proponentes do biocentrismo[2] concordam que só faz sentido dar consideração moral para seres passíveis de serem prejudicados e beneficiados. Entretanto, discordam de que a senciência (isto é, a capacidade de ter experiências positivas e/ou negativas) seja necessária para que haja possibilidade de prejuízo/benefício. Em vez disso, defen­dem que seres vivos não sencientes (como plantas e fungos, por exemplo) são passíveis de serem prejudicados e/ou beneficiados.

Os biocentristas afirmam que tudo o que é vivo possui um bem próprio, que é evidenciado pelo fato de que florescem em certas circunstâncias e perecem em outras. Por exemplo, de acordo com essa visão, o fato de uma planta crescer ao ser regada é um sinal de que a planta valoriza a água. Observe que os biocentristas não estão a dizer que a planta é senciente, e que possui uma preferência por ser regada (eles reconhecem que a planta não é senciente). O que estão a defender é que, para haver valorização, não é necessário que haja alguém a habitar aquele corpo.

Contudo, do fato de que algo floresce em certas condições e não em outras, não se segue que para esse algo seja importante se encontrar nesse ou naquele estado e que, portanto, seja prejudicado ou beneficiado por se encontrar em certas circunstâncias e não em outras. Se o organismo em questão não experimenta certos estados como positivos e/ou outros como negativos, é difícil conceber como poderia valorizar estar nessa ou naquela condição. Não há alguém ali para experimentar coisa alguma: é um corpo vivo, mas vazio, que ninguém habita. São vidas que ninguém vive. Assim, uma possível crítica ao argumento biocêntrico é acusá-lo de saltar de um sentido metafórico para um sentido literal do termo “valorizar”[3].

Por vezes, o critério biocêntrico é defendido por meio de um apelo à linguagem comum. Na linguagem comum, utilizamos termos que fazem referência a um bem-estar para entidades não sencientes. Por exemplo, as seguintes expressões são frequentes na linguagem comum: “a planta gosta de água”; “isso foi bom para a espécie”; “a natureza quer o equilíbrio ecológico”, “o fungo quer umidade” etc.

Contudo, a linguagem comum pode ser enganadora. Quando dizemos “a planta ‘gosta’ de água”, ou “o fungo ‘quer’ umidade” (ou algum dos outros exemplos acima) estamos a utilizar esses termos em um sentido metafórico. Se afirmamos que isso mostra que entidades não sencientes possuem um bem próprio, há então um salto de um sentido metafórico para um sentido literal dos termos “gosta”, “foi bom” e “quer”. É como dizer (metaforicamente) “o carro quer gasolina”; “aquela música é triste”; “o mar está agitado” e depois concluir (literalmente) que o carro, a música e o mar possuem uma perspectiva de primeira pessoa, com uma vontade.

É difícil conceber como é possível um organismo valorizar certos estados em detrimento de outros sem que consiga experimentar certos estados como positivos e/ou outros estados como negativos. Isso nos dá razões para pensar que o critério adequado de consideração moral é a senciência, e não a vida meramente biológica.

REFERÊNCIAS

ATTFIELD. Biocentrism, Moral Standing and Moral Significance. Philosophica, n. 39,

p. 47-58, 1987b.

GOODPASTER, K. E. On Being Morally Considerable. Journal of Philosophy, n. 75, p. 308-25, 1978.

SCHWEITZER, A. Civilización y ética. Buenos Aires: Sur, 1962 [1923].

SINGER, P. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002 [1979].

TAYLOR, P. Respect for nature. Princeton: Princeton University Press, 1986.


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Para exemplos, ver Attfield (1987b, p. 51), Goodpaster (1978, p. 310), Schweitzer (1962 [1923], p. 342) e Taylor (1986, p. 75).

[3] Para essa crítica, ver Singer (2002  [1979], p. 420).


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.