Se há necessidade da ética ambiental, então o critério da senciência está errado?

Luciano Carlos Cunha[1]

Há um argumento que defende que, se existe a necessidade de se desenvolver uma ética ambiental (isto é, princípios que orientem nossas decisões que afetam o meio ambiente), e se as questões abordadas em ética ambiental fazem sentido (isto é, não são questões absurdas), então entidades não sencientes como ecossistemas ou espécies têm valor em si, e não, valor meramente enquanto recurso para os seres sencientes[2].

Entretanto, haver necessidade de se desenvolver uma ética ambiental não implica que entidades não sencientes possuam valor em si. Algo que pode contribuir para parecer que sim é que o termo ética ambiental é usado comumente em dois sentidos distintos. Vejamos:

O primeiro sentido refere-se ao ambientalismo, isto é, à posição que afirma que certas entidades não sencientes possuem valor em si. Já o segundo sentido refere-se à determinada área da ética prática que trata da moralidade de nossas ações que afetam o meio ambiente. Dentre as questões centrais abordadas nessa área, uma das principais é exatamente esta: “entidades não sencientes possuem valor em si ou meramente valor enquanto recurso?”. Certamente que essa e outras questões fazem sentido. Mas, o fato de uma questão fazer sentido não implica que a resposta para ela seja necessariamente afirmativa. Vejamos:

Questões como “há vida em Marte?” e “o Brasil venceu a copa do mundo de futebol de 2014?” fazem sentido. Não são perguntas absurdas. Mas, disso não se segue que as respostas certas sejam necessariamente afirmativas. Aliás, a resposta certa da segunda questão é “não”. Faz sentido perguntar, “o meio ambiente tem valor em si?”, mas, isso não garante que a resposta adequada seja afirmativa. É possível que a resposta adequada seja “não”.

O mesmo se aplica à afirmação de que é necessário desenvolver uma ética ambiental. Também é necessário desenvolver uma ética para lidar com a distribuição de renda, mas, isso não implica que a própria distribuição de renda possua valor em si (aliás, parece o contrário: que tal questão é importante porque afeta o bem dos indivíduos). Assim, a necessidade de uma ética ambiental não implica necessariamente que entidades não sencientes possuam valor em si (pode ser que haja necessidade de uma ética ambiental justamente porque os seres sencientes são afetados indiretamente de acordo com a maneira como afetamos os seus ambientes).

Ou seja, uma “ética ambiental” (a área que trata da moralidade das nossas ações que afetam o meio ambiente) não implica necessariamente uma “ética ambiental” (uma posição ambientalista). O fato de a posição ambientalista ser por vezes chamada de “ética ambiental” ou de “ética genuinamente ambiental” contribui para criar essa confusão. Por exemplo por vezes é defendido que apenas o ambientalismo é verdadeiramente uma “ética ambiental”, e que enxergar o meio ambiente apenas enquanto recurso para os seres sencientes é uma “ética do manejo do meio ambiente[3]“. Entretanto, utilizar tais nomenclaturas não é oferecer nenhum argumento a favor do ambientalismo. Ao invés, é já assumir de antemão que ele está correto. Mas é exatamente isso o que está em questão. É, portanto, um argumento circular.

É possível que a abordagem mais adequada para as questões da ética ambiental envolva rejeitar a tal “ética ambiental genuína” e acatar alguma forma de “ética do manejo ambiental” (por exemplo, manter ou modificar o meio ambiente de acordo com o que for melhor para os seres sencientes). É claro, isso também não garante necessariamente que a posição ambientalista seja inadequada. A conclusão que devemos retirar aqui é mais específica: o argumento da necessidade da ética ambiental, por ser circular, não mostra que o critério da senciência é inadequado.

REFERÊNCIAS

REGAN, T. The Nature and Possibility of an Environmental Ethic. Environmental Ethics, vol. 3, n. 1, p. 19-34, 1981.

SAPONTZIS, S. F. Morals, Reason and Animals. Philadelphia: Temple University Press, 1987.


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Esse argumento é oferecido por Regan (1981, p. 20, 24, 34). Para uma crítica detalhada, ver Sapontzis (1987).

[3] Ver, por exemplo, Regan (1981, p. 20).


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.