Luciano Carlos Cunha[1]
O que é biologia do bem-estar?
A falta de consideração pelos animais enquanto seres sencientes faz com que os animais selvagens sejam estudados principalmente enquanto exemplares de espécies e enquanto componentes de ecossistemas. Por isso, há muito menos dados sobre o que afeta os animais selvagens enquanto indivíduos que possuem um bem-estar.
Por essa razão foi proposta a criação do campo da biologia do bem-estar[2], que estudaria a maneira como os animais são afetados pelas interações que possuem com seus ambientes e entre si, do ponto de vista do que é melhor ou pior para eles enquanto indivíduos sencientes, que possuem um bem-estar.
À medida que aumentar o conhecimento proveniente da biologia do bem-estar, programas de ajuda aos animais[3] cada vez mais seguros e eficientes poderiam ser implementados.
O que significa dizer que a biologia do bem-estar é um campo crosdisciplinar?
A pesquisa em biologia do bem-estar é crosdisciplinar. Isso é diferente de pesquisas interdisciplinares e transdisciplinares. Quanto à sua disciplinaridade, os diferentes tipos de pesquisa podem ser classificados da maneira a seguir[4]. A intradisciplinar é aquela feita dentro de uma única disciplina. A multidisciplinar envolve várias disciplinas provendo diferentes perspectivas sobre um problema. A interdisciplinar integra os conhecimentos e métodos de diferentes disciplinas, fazendo uma síntese das abordagens. A transdisciplinar cria uma estrutura para além das perspectivas das disciplinas envolvidas. Por fim, a crosdisciplinar enxerga uma ou mais disciplinas a partir da perspectiva de outra.
A biologia do bem-estar envolveria em conjunto o conhecimento proveniente de várias disciplinas, como ecologia, ciência do bem-estar animal, zoologia e ciência veterinária. Trata-se de um campo crosdisciplinar de pesquisa, no sentido de que cada disciplina envolvida seria conduzida a partir da perspectiva da biologia do bem-estar. Isto é, todas focariam em investigar como os animais são afetados positiva ou negativamente.
O que diferencia a biologia do bem-estar de outras áreas?
A biologia do bem-estar é diferente da biologia da conservação[5], onde os animais são estudados enquanto exemplares de espécies ou componentes de ecossistemas. Também é diferente da conservação compassiva, que consiste em, ao se investigar os animais do ponto de vista da conservação, buscar métodos que não os prejudiquem[6]. Por fim, também é diferente do bem-estar da conservação[7], que investiga como o bem-estar dos animais também pode ser promovido quando medidas conservacionistas são implementadas.
A biologia do bem-estar estudaria o que afeta positiva ou negativamente os animais, independentemente de se esse conhecimento serve ou não à conservação. Os conhecimentos dessas outras áreas poderiam ser úteis à biologia do bem-estar, mas suas metas são distintas.
Quais animais seriam estudados pela biologia do bem-estar?
As investigações em biologia do bem-estar poderiam ser feitas sobre a situação de quaisquer animais. Contudo, já há muito mais dados disponíveis no caso dos animais que vivem sob controle humano. A maneira como os processos naturais afetam o bem-estar dos animais que se encontram na natureza é um tópico amplamente negligenciado. Por isso, a pesquisa em biologia do bem-estar tem razões para focar na situação desses animais. Porém, essa pesquisa poderia incluir os animais que não vivem sob controle direto humano e se encontram em ambientes semisselvagens, agrícolas, suburbanos e mesmo urbanos (como os pombos que vivem em cidades, por exemplo).
Criando as condições para o estabelecimento da biologia do bem-estar
Por vezes acredita-se que a proposta de ajudar os animais selvagens não é implementada porque ninguém tem ideia do que fazer na prática. Essa crença é equivocada. Várias coisas já vem sendo feitas para ajudar os animais que estão na natureza[8]. Já há também várias pesquisas em biologia do bem-estar[9] e também sabe-se algo sobre quais outros tipos de pesquisa seriam necessários.
Por que, então, a biologia do bem-estar ainda não se tornou um campo bem estabelecido de pesquisa, como outras áreas? A resposta é que, ao contrário daquela crença comum, os principais obstáculos não são práticos, mas ideológicos. Vejamos:
Devido ao especismo, os animais selvagens são normalmente reduzidos a componentes de ecossistemas e a exemplares de espécies. Não são vistos como indivíduos com quem devemos nos preocupar. Segundo essa visão, quando os animais selvagens são vítimas dos processos naturais, não devemos prevenir o seu sofrimento e suas mortes: o que importa é deixar a natureza seguir o seu curso, garantir o equilíbrio ecológico, a biodiversidade, a conservação dos ecossistemas, preservar espécies raras etc. Entretanto, quando os humanos são as vítimas, a visão predominante é exatamente a oposta. As objeções que são levantadas contra a proposta de ajudar os animais selvagens quase certamente não seriam levantadas se as vítimas fossem humanas. Assim, a predominância do especismo é uma das principais razões pelas quais a pesquisa em biologia do bem-estar ainda não é um campo consolidado.
Outro obstáculo é a visão idílica da natureza[10], isto é, a ideia de que, se deixarmos a natureza seguir o seu curso, o resultado será predominantemente positivo para os animais. Esse viés faz com que o problema do sofrimento dos animais selvagens seja negligenciado até mesmo no ativismo de defesa animal, simplesmente porque boa parte dos ativistas não sabe o quanto os animais selvagens são prejudicados pelos processos naturais[11].
Por fim, um terceiro obstáculo é a veneração pelo que é natural. Essa veneração faz muitas pessoas terem uma visão idílica da natureza. Também faz com que muitas pessoas se oponham a prevenir o sofrimento e as mortes dos animais selvagens, mesmo quando sabem que a visão idílica da natureza é falsa. É claro, normalmente essa veneração pelo que é natural é subordinada ao especismo, pois não é aplicada quando os humanos são as vítimas.
Assim, desafiar esses obstáculos ideológicos é crucial para que os meios disponíveis sejam, de fato, utilizados para ajudar os animais e para que mais conhecimento seja buscado nesse sentido.
REFERÊNCIAS
ANIMAL ETHICS. Introduction to wild animal suffering: A guide to the issues. Oakland: Animal Ethics, 2020.
BEAUSOLEIL, N. J. I Am a Compassionate Conservation Welfare Scientist: Considering the Theoretical and Practical Differences Between Compassionate Conservation and Conservation Welfare. Animals, v. 257, n. 10 (2), 2020.
BEKOFF, M. (org.). Ignoring nature no more: The case for compassionate conservation. Chicago: University of Chicago Press, 2013.
ÉTICA ANIMAL. A situação dos animais na natureza. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 23 out. 2016a.
ÉTICA ANIMAL. Ajudando animais selvagens por meio da vacinação: isso poderia acontecer em relação a coronavírus como o SARS-CoV-2?. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais. 03 Jul. 2020a.
ÉTICA ANIMAL. Ajudando os animais na natureza. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 23 out. 2016b.
ÉTICA ANIMAL. Biologia do bem-estar. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 8 jul. 2019b.
ÉTICA ANIMAL. Efeitos negativos e positivos sobre os animais da fragmentação do habitat. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 23 Out. 2020b.
ÉTICA ANIMAL. Identificando preditores da abundância de insetos. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 3 Mai. 2022a.
ÉTICA ANIMAL. O potencial para reduzir o sofrimento dos animais na natureza utilizando amostragem de eDNA. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 21 Set. 2022b.
ÉTICA ANIMAL. Pesquisa em biologia do bem-estar: competição sexual. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais. 10 Jul. 2019a.
ÉTICA ANIMAL. Por que a mortalidade específica por idade é relevante para a biologia do bem-estar. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 16 Mar. 2022c.
ÉTICA ANIMAL. Por que a visão popular dos animais que vivem na natureza está errada? Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 24 fev. 2017.
ÉTICA ANIMAL. Quais tecnologias podem ser utilizadas para ajudar os animais selvagens? Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 28 Nov. 2022d.
ÉTICA ANIMAL. Trabalho em biologia do bem-estar sobre como os incêndios prejudicam os animais selvagens e o que fazer a respeito. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 6 Mai. 2021a.
ÉTICA ANIMAL. Uma introdução à pesquisa em ecologia do bem-estar urbana. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 26 Mar. 2021b.
FARIA, C.; HORTA, O. Welfare biology. In: FISCHER, B. (org.). The routledge handbook Of animal ethics. New York/London: Routledge – Taylor & Francis group, 2020, p. 455-66.
HORTA, O. Debunking the Idyllic View of Natural Processes: Population Dynamics and Suffering in the Wild. Télos, v. 17, p. 73-88, 2010b.
SORYL, A. A.; MOORE, A. J.; SEDDON, P. J.; KING, M. R. The Case for Welfare Biology. Journal of Agricultural and Environmental Ethics, v. 34, n. 7, 2021.
SOULÉ, M. E. What is Conservation Biology? BioScience, v. 35, n. 11, p. 727-34, 1986.
STEMBER, M. Advancing the social sciences through the interdisciplinary enterprise. The Social Science Journal, v. 28, n., p. 1-14, 1991.
NOTAS
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Sobre biologia do bem-estar, ver Faria e Horta (2020) e Soryl et al. (2021). Por vezes a biologia do bem-estar é chamada de ciência do bem-estar dos animais selvagens.
[3] Para exemplos de programas de ajuda a animais selvagens, ver Ética Animal (2016b).
[4] Sobre isso, ver Stember (1991, p. 4).
[5] Sobre biologia da conservação, ver Soulé (1986).
[6] Sobre conservação compassiva, ver Bekoff (2013).
[7] Sobre bem-estar da conservação, ver Beausoleil (2020).
[8] Sbre essas formas de ajuda podem ser encontrados, ver Ética Animal (2016b) e Animal Ethics (2020).
[9] Para exemplos de pesquisas em biologia do bem-estar, ver Ética Animal (2019a, 2020a, 2020b, 2021a, 2021b, 2022a, 2022b, 2022c, 2022d).
[10] Para uma explicação do porquê a visão idílica da natureza está errada, ver Ética Animal (2017).
[11] Sobre a situação típica dos animais que se encontram na natureza, ver Ética Animal (2016a) Animal Ethics (2020) e Horta (2010b).
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.
