Luciano Carlos Cunha[1]
Por vezes é alegado que o critério da senciência exclui os insetos da esfera de consideração moral[2]. Segundo essa posição, se devemos dar consideração moral aos insetos, então devemos rejeitar o critério da senciência e adotar, em seu lugar, o critério da vida biológica.
Alguém poderia endereçar esse argumento por pensar que insetos são capazes de experiências positivas (que viriam de cheirar, ouvir, degustar etc.), mas que não seriam capazes de sentir dor. Nesse caso, o que se está a afirmar é que insetos são sencientes, mas que não são capazes de experiências negativas. Se esse fosse o caso, tais animais não seriam excluídos pelo critério da senciência. A senciência diz respeito a toda e qualquer experiência que alguém poderia ter, e não somente as negativas. Assim, o critério da senciência também leva em conta danos pela privação das experiências positivas, e não apenas pela presença de experiências negativas.
Embora haja dúvida na comunidade científica em torno da senciência de alguns tipos de insetos[3], qualquer teoria moral responsável prescreve dar o benefício da dúvida onde houver dúvida razoável. Portanto, devemos tratar os insetos como seres sencientes até prova contrária.
Além disso, mesmo que apenas uma pequena porcentagem dos insetos fosse senciente, seria gigantesca a quantidade de insetos que o critério da senciência prescreveria considerar. De acordo com algumas estimativas, existem em torno de 10 quintilhões de insetos em um dado momento[4]. Mesmo se apenas 0,01% desses insetos for senciente, ainda assim seriam 100 quatrilhões de indivíduos. Além disso, como veremos mais adiante, há fortes razões para se pensar que a porcentagem dos insetos que é senciente não é baixa.
A objeção em questão também pode ser criticada por assumir que insetos deveriam ser considerados mesmo que não fossem sencientes. Isso não explica o que há de errado com o critério da senciência (em vez disso, já assume de antemão que ele está errado; mas é exatamente isso que o argumento deveria mostrar). Suponhamos que nenhum inseto fosse senciente. Por que haveríamos de considerá-los, se não haveria alguém naqueles corpos, e seja lá o que acontecesse, lhes seria indiferente? A intuição de que insetos são dignos de consideração moral parece vir, ao contrário, da possibilidade de tais animais serem sencientes. E, há boas evidências para pensarmos que pelo menos uma grande quantidade deles são, de fato, sencientes[5]. Vejamos:
Evidências de senciência em insetos
Há uma quantidade crescente de evidências sobre senciência em invertebrados, incluindo em insetos[6]. Um tipo de evidência é comportamental. O comportamento desses animais é flexível, apresentando tomadas de decisão em contextos de mudança de circunstâncias, comportamento adaptativo e generalização cognitiva. O seu comportamento apresenta também aprendizagem, integrando diferentes tipos de informação[7].
Há boas evidências fisiológicas também. Os insetos possuem sistemas nervosos centralizados com cérebros. Uma das regiões de seus cérebros é o protocerebrum. Essa região inclui os chamados corpos de cogumelo, que contêm entre cem mil e um milhão de neurônios[8]. Em seus cérebros foi registrada atividade elétrica com uma resposta entre 20Hz e 30Hz[9].
O mapa das conexões neurais é chamado de conectoma. O conectoma de alguns insetos é comparável às redes de trato de fibra encontradas em primatas, apresentando a chamada organização de pequeno mundo. Essa organização apresenta uma alta conectividade entre regiões vizinhas combinadas com conexões de atalho para regiões distantes[10].
Os corpos de cogumelo dos insetos recebem e integram vários tipos de informações multissensoriais. Isso permite que aprendam com as experiências anteriores, lembrem-se delas e integrem as informações[11]. Os corpos de cogumelo são, portanto, um centro especializado para processar informações espaciais e para organizar o movimento[12].
Se o que essas evidências sugerem estiver correto, então esses animais não são meros “corpos vivos”: há alguém nesses corpos, muito provavelmente com a capacidade de sofrer e desfrutar. Portanto, de acordo com o critério da senciência, devem receber o mesmo grau de consideração que deve receber qualquer outro ser senciente.
REFERÊNCIAS
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NOTAS
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Ver, por exemplo, Naconecy (2007, p. 119, 120).
[3] Ver, por exemplo, Allen-Hermanson (1980).
[4] National Museum of Natural History & Smithsonian Institution (2008); Tomasik (2014).
[5] Para um resumo dessas evidências e para uma defesa da consideração moral por insetos, ver Cunha (2023).
[6] Sobre evidência de senciência em invertebrados ver Kavaliers et. al. (1983), Lockwood (1988), Smith (1991), Mather (2001), Mather; Anderson (2007), Cabanac et. al. (2009); Carere; Mather (2019) e Ética Animal (2019, 2021, 2022b).
[7] Sobre isso, ver EFSA (2005b); Mendl et. al. (2011) e Adamo (2016).
[8] Kaas (2016).
[9] Polilov (2012).
[10] Kaiser (2015).
[11] Gronenberg; López-Riquelme (2004); Collett; Collett (2018).
[12] Barron; Klein (2016).
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.
