Luciano Carlos Cunha[1]
Certos seres vivos não sencientes apresentam determinados comportamentos. Por exemplo, as plantas absorvem nutrientes do solo, realizam a fotossíntese, algumas fecham e abrem mediante estímulos de toque ou de luminosidade etc. Também há estudos que sugerem que o crescimento de plantas é afetado por estímulos sonoros, como a fala e a música[2]. É possível que algumas pessoas acreditem esses comportamentos mostrem que tais organismos são sencientes, ou ainda, que possuem uma intencionalidade e uma vontade de permanecer nesse ou naquele estado, mesmo que não tenham consciência.
Entretanto, a presença de comportamentos não necessariamente implica que há senciência ou valorização. Por exemplo, um termostato reage à variações na temperatura, mas isso não implica que o termostato valorize se encontrar nesta ou naquela temperatura, ou tenha uma vontade de ficar nesse ou naquele estado. Implica apenas que há essa reação mediante certo estímulo. Na verdade, existem robôs que apresentam comportamentos muito parecidos com os de humanos. Mas, isso por si só não mostra que são seres que valorizam certos estados ou que possuem uma vontade. O mesmo vale para o caso de certas plantas que se fecham ao serem tocadas ou que crescem mediante certos sons: isso não implica necessariamente que a planta gosta ou quer ficar nesse ou naquele estado. É possível explicar esses comportamentos como resultado de reações físico-químicas.
Por vezes, os termos que são utilizados em certos estudos sobre vegetais ou fungos podem ser ambíguos, e sugerir equivocadamente que plantas ou fungos são sencientes, quando na verdade não é isso que o estudo mostra. Por exemplo, certas espécies de fungos emitem sinais elétricos, e em um estudo as sequências desses sinais foram decodificadas e chamadas de “linguagem”[3]. Quando ouvimos a palavra linguagem, normalmente já subentendemos que há um indivíduo, um ser consciente, que entende os símbolos e atribui significado a estes, e que usa-os para comunicar o que se passa em sua mente. No mesmo estudo é afirmado que “a atividade elétrica é utilizada pelos fungos para se comunicarem”. Isso pode dar a entender que os sinais são usados intencionalmente pelos fungos, que fungos são alguém, que possuem consciência etc. Contudo, o termo “linguagem”, tal como utilizado no estudo, é o mesmo sentido usado em inteligência artificial: fala apenas de algo que, apesar de bastante complexo, pode muito bem ocorrer sem ser acompanhado de consciência alguma. Nesse sentido, os sinais elétricos são “utilizados pelos fungos” no mesmo sentido em que um programa de computador “utiliza” os dados inseridos para desempenhar certas atividades. Isso não implica necessariamente consciência.
Poderia ser objetado que, assim como é possível explicar tais comportamentos como resultado de reações físico-químicas, também é possível explicá-los partindo do pressuposto de que há uma vontade ou consciência nesses seres. Entretanto, o fato de uma explicação ser possível não mostra que necessariamente ela está correta. O ponto aqui é que tais comportamentos podem ser explicados sem ter-se que pressupor que tais organismos são sencientes. Isso é diferente do que ocorre, por exemplo, no caso de animais invertebrados[4] como insetos, crustáceos e aracnídeos, Em seu caso, é muito difícil explicar seus comportamentos sem pressupor que são sencientes. Além disso, tais animais, diferentemente de plantas ou fungos, possuem uma estrutura física (um sistema nervoso centralizado) que desempenha a função de processar as informações que chegam ao organismo e criar as condições para o aparecimento da consciência[5]. Já no caso de seres sem um sistema nervoso (ou algo que desempenhe uma função análoga), há razões para supormos que seu comportamento é resultado de reflexos. Vejamos por que a seguir:
Os seres sencientes apresentam certos comportamentos porque experimentam certos estados como positivos e outros como negativos. Experimentar as coisas como positivas ou negativas é aquilo que os torna capazes de valorizar certos estados em detrimento de outros. Entretanto, o inverso não é verdadeiro: o fato de que há certo comportamento não é suficiente para se concluir que há valorização por parte de um organismo. Mesmo no caso dos seres sencientes, é possível que em certo momento sua senciência esteja ausente (por exemplo, mediante anestesia geral) e, ainda assim, o corpo continue a exibir reflexos.
Isso funciona assim por conta do que é conhecido como arcos reflexos[6]. Considere a martelada no joelho que é dada no exame para tirar carteira de motorista. Quando a informação da batida chega no sistema nervoso, percorre dois caminhos. Um deles, mais curto e direto, vai da medula espinhal para os músculos. Outro, mais longo e indireto, vai da medula espinhal para o cérebro, onde a informação é processada e transformada em experiência. É por essa razão que o reflexo do joelho é instantâneo, e a sensação chega um pouquinho depois.
Existem determinados sistemas nervosos que operam de maneira semelhante aos arcos reflexos, mas sem a parte da sensação. Por exemplo, existem certos animais, como as águas-vivas e os pepinos-do-mar, que possuem sistemas nervosos, mas não possuem nenhum cérebro ou qualquer outro órgão que desempenhe sua função[7]. Esses animais exibem reflexos (e por vezes comportamentos relativamente complexos), mas isso não é um indicador de que tenham experiências. Um mecanismo similar aparece em certos organismos que não possuem sistema nervoso, como as plantas carnívoras e plantas dormideiras, por exemplo.
Assim, a falta de uma estrutura física nesses organismos que desempenhe a função de criar as condições para dar lugar à experiências, e ao mesmo tempo a presença de reflexos, é uma forte razão para se concluir que a existência de comportamentos não é, por si só, suficiente para se concluir que o organismo em questão é senciente, está a valorizar certos estados ou a exprimir uma vontade.
REFERÊNCIAS
ADAMATZKY, A. Language of fungi derived from their electrical spiking activity. Royal Society Open Science, v. 9, n. 4, 2022
BROOM, D. M. Sentience and animal welfare. Wallingford: CABI, 2014.
ELWOOD, R. W.; BARR, S.; PATTERSON, L. Pain and stress in crustaceans? Applied Animal Behaviour Science, v. 118, p. 128-136, 2009.
ÉTICA ANIMAL. Critérios para reconhecer a senciência. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 24 out. 2015a.
ÉTICA ANIMAL. O problema da consciência. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 24 out. 2015c.
ÉTICA ANIMAL. Que seres não são conscientes? Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 19 out. 2015e.
ÉTICA ANIMAL. Senciência em invertebrados: uma revisão da literatura neurocientífica. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 20 ago. 2019a.
ÉTICA ANIMAL. Senciência em invertebrados: uma revisão das evidências comportamentais. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 20 jul. 2022b.
ÉTICA ANIMAL. Uma fisiologia ilustrada do sistema nervoso de invertebrados. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 3 set. 2021d.
HASSANIEN, R.; HOU, T; LI, Y.; LI, B. Advances in Effects of Sound Waves on Plants. Journal of Integrative Agriculture, v. 13, n. 2, p. 335-348, 2014.
MATHER, J. A. Animal suffering: An invertebrate perspective. Journal of Applied Animal Welfare Science, v. 4, p. 151-156, 2001.
MATHER, J. A.; ANDERSON, R. C. Ethics and invertebrates: A cephalopod perspective. Diseases of Aquatic Organisms, v. 75, p. 119-129, 2007.
SMITH, J. A. A question of pain in invertebrates. ILAR Journal, v. 33, p. 25-31, 1991.
NOTAS
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Ver Hassanien et. al. (2014).
[3] Para o estudo, ver Adamatzky (2022).
[4] Para uma revisão dos estudos sobre senciência em animais invertebrados, ver Ética Animal (2019a, 2021d, 2022b). Para mais estudos sobre senciência em invertebrados, ver Smith (1991); Mather (2001); Mather; Anderson (2007); Elwood; Barr; Patterson (2009) e Broom (2014).
[5] Sobre o papel do sistema nervoso em criar as condições para o aparecimento da consciência, ver Ética Animal (2015a).
[6] Ver Ética Animal (2015c).
[7] Ver Ética Animal (2015e).
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.
