Luciano Carlos Cunha[1]
A natureza é indiferente ao sofrimento e morte dos animais. Os ecossistemas surgem, perduram e desaparecem com total indiferença ao destino dos animais. Há pessoas que acreditam que esse fato mostra que não devemos ajudar os animais que são vítimas dos processos naturais[2]. Por exemplo, o filósofo J. Baird Callicott mantém que a proposta de ajudar os animais[3] deveria ser rejeitada porque envolve não aceitar que sofrimento e morte fazem parte da vida: é uma visão que nega o modo como as coisas são e sempre foram[4].
Mas, será mesmo que os proponentes de ajudar os animais vítimas dos danos naturais não aceitam que sofrimento e morte fazem parte da vida? Ora, nenhum desses proponentes nega que na vida haja grandes quantidades de sofrimento e de mortes; que isso é assim desde tempos imemoriais; e que a natureza é indiferente ao sofrimento e às mortes (seja lá de quem for, incluindo de humanos). O que eles mantêm é que esse fato não nos diz nada sobre se devemos ou não minimizar os danos naturais. Se negassem que sofrimento e morte fazem parte da vida, não poderiam prescrever minimizar os danos naturais, uma vez que negariam que tais danos existem.
É possível, contudo, que o que a objeção queira dizer é que os proponentes de ajudar os animais não aceitam que sofrimento e morte devem fazer parte da vida. Nesse caso, a acusação pode ser verdadeira. Mas não é uma verdade óbvia que sofrimento e morte devem fazer parte da vida. Por exemplo, consideramos justificado evitar nosso próprio sofrimento e morte, mesmo sabendo que tais coisas fazem parte da vida, que a natureza é indiferente a isso, e que os ecossistemas surgem, perduram e desaparecem independentemente disso.
A objeção teria de apresentar outro argumento para defender que sofrimento e morte devem fazer parte da vida, pois simplesmente afirmar que tais coisas fazem parte da vida não fornece essa justificativa, uma vez que o fato de uma coisa acontecer não implica que seja boa, justa, desejável ou sequer aceitável. Além disso, se tudo o que acontecesse estivesse justificado, não se poderia objetar a coisa alguma, incluindo intervir na natureza para ajudar os animais. Portanto, esse argumento é auto-refutante.
Poderia ser objetado que somente aquilo que acontece naturalmente é que não deveríamos evitar. Mas, novamente, teria de ser explicado por que o fato de danos naturais acontecerem na vida implica que não devemos preveni-los, e o fato de danos antropogênicos acontecerem na vida não implica a mesma coisa. O que essa objeção faz é simplesmente assumir essa tese sem explicar. Mas, é exatamente isso o que a objeção se propõe a explicar. A objeção diz que não devemos prevenir os danos naturais porque eles acontecem na vida, mas diante da constatação de que danos antropogênicos também acontecem na vida, a objeção diz que nesse caso é diferente, pois os danos em questão não são naturais. Mas, então podemos perguntar novamente “por que não devemos prevenir os danos naturais?”, e assim infinitamente. Portanto, o argumento também comete a falácia da petição de princípio.
REFERÊNCIAS
ANIMAL ETHICS. Introduction to wild animal suffering: A guide to the issues. Oakland: Animal Ethics, 2020.
CALLICOTT, J. B. Animal Liberation: A Triangular Affair. Environmental Ethics, v. 2, n. 4, p. 311-338, 1980.
CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022a.
ÉTICA ANIMAL. A situação dos animais na natureza. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 23 out. 2016a.
ÉTICA ANIMAL. Ajudando os animais na natureza. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 23 out. 2016b.
ÉTICA ANIMAL. Biologia do bem-estar. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 8 jul. 2019b.
ÉTICA ANIMAL. Petição de princípio. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 22 out. 2015d.
FARIA, C.; HORTA, O. Welfare biology. In: FISCHER, B. (org.). The routledge handbook Of animal ethics. New York/London: Routledge – Taylor & Francis group, 2020, p. 455-66.
HORTA, O. Debunking the Idyllic View of Natural Processes: Population Dynamics and Suffering in the Wild. Télos, v. 17, p. 73-88, 2010b.
SORYL, A. A.; MOORE, A. J.; SEDDON, P. J.; KING, M. R. The Case for Welfare Biology. Journal of Agricultural and Environmental Ethics, v. 34, n. 7, 2021.
NOTAS
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Sobre a situação típica dos animais que se encontram na natureza, ver Ética Animal (2016a) Animal Ethics (2020) e Horta (2010b).
[3] Para os fundamentos filosóficos da proposta de ajudá-los, ver Cunha (2022a). Para exemplos de programas de ajuda aos animais selvagens, ver Ética Animal (2016b) e Animal Ethics (2020). Sobre o campo de pesquisa que envolveria investigar o modo como os animais são afetados positiva e negativamente em seus ecossistemas, ver Ética Animal (2019b), Faria e Horta (2020) e Soryl et. al. (2021).
[4] Ver Callicott 1980, p. 333-6)
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.
