Luciano Carlos Cunha[1]
Os proponentes de ajudar os animais que vivem na natureza[2] por vezes são acusados de pensarem que uma questão é da área da ética, quando na verdade seria da área da ecologia: “estão fazendo julgamentos de valor onde tais julgamentos não cabem: precisam é de noções básicas de ecologia”. Fará sentido essa crítica? É o que discutiremos neste texto.
Descrever o que acontece nos ecossistemas naturais é uma tarefa para a ecologia. Entretanto, os proponentes de ajudar os animais selvagens reconhecem isso, e se baseiam justamente nesses conhecimentos para terem uma ideia da quantidade de sofrimento e de mortes que existem na natureza e de como se dão as interações nos ecossistemas para, em seguida, com base em princípios éticos, prescrever o que deve ser feito com relação a isso. Assim, não faz sentido sugerir aos proponentes de ajudar os animais na natureza estudarem ecologia, pois é exatamente isso que também estão a fazer. A proposta da criação do campo da biologia do bem-estar[3] é um bom exemplo disso.
Como vimos, descrever o que acontece nos ecossistemas naturais é uma tarefa para a ecologia. Entretanto, investigar quais coisas possuem valor em si e quais possuem valor apenas enquanto recurso é uma questão para a teoria do valor. Fundamentar quais metas deveríamos buscar é uma questão para a área da ética. São essas duas áreas que nos proporcionarão as ferramentas para refletirmos sobre se o que deveríamos buscar garantir é o bem dos seres sencientes ou se entidades não sencientes como espécies e ecossistemas possuem valor em si e, caso tenham, como pesar isso em relação ao bem dos seres sencientes. Esse é um debate sobre o que tem valor e sobre o que deveríamos fazer. Nenhuma ciência descritiva tem a resposta para essas questões. Portanto, quem comete o erro de tratar uma questão de uma área como se fosse de outra é quem pensa que áreas descritivas fundamentam o que devemos valorizar e como devemos agir.
Além disso, não são apenas os proponentes de ajudar os animais na natureza que estão a fazer juízos morais em relação ao que acontece nos ecossistemas. Dizer “não devemos ajudar os animais que vivem na natureza” é também um julgamento moral. O mesmo acontece quando alguém defende que nossas metas deveriam ser garantir a biodiversidade e o equilíbrio ecológico, e não, diminuir o sofrimento dos seres sencientes. Uma razão pela qual tal posição normalmente não é percebida como envolvendo julgamentos morais é o fato de por vezes ser defendida por cientistas. O discurso dos cientistas é recebido pelo público como uma descrição objetiva dos fatos e moralmente neutra. Entretanto, como vimos, por vezes contém premissas normativas ocultas.
Em algumas vezes, um juízo moral é intencionalmente disfarçado como descrição, para parecer neutro, pois isso aumenta as chances de ser aceito. Desse modo, os ouvintes incorporam sem perceber todo um conjunto de valores pensando que estão simplesmente a ouvir descrições, e reproduzem esse ciclo quando falam sobre o tema. Isso é algo que acontece, por vezes, por parte dos próprios profissionais e estudantes de áreas científicas. Uma razão pela qual isso acontece é que frequentemente não há disciplinas sobre ética em um curso científico, e então os estudantes não distinguem claramente os domínios descritivo, valorativo e normativo. Além disso, em vários desses cursos geralmente os valores ambientalistas ou antropocêntricos são transmitidos aos estudantes de maneira não explícita, e portanto, não é feita nenhuma discussão sobre se são plausíveis ou não.
A presença dos valores ambientalistas entre os profissionais das ciências da vida pode dar a entender que quem defende que o bem de cada ser senciente importa carece do conhecimento científico apropriado. Mas isso é uma ilusão, que deve-se, em parte, à confusão entre os termos “ecologia” e “ambientalismo”. O ambientalismo é a ideia de que determinadas entidades não sencientes devem receber consideração moral, e que isso importa mais do que o bem dos seres sencientes. Já a ecologia é a ciência que descreve como acontecem as interações nos ecossistemas. Os defensores dos animais defendem uma concepção ética completamente diferente daquela defendida pelo ambientalismo. Entretanto, não rejeitam o conhecimento em ecologia (aliás, dependem de tal conhecimento para conseguir ajudar os animais selvagens de modo seguro).
Dada a predominância do especismo, o conhecimento de áreas como a ecologia têm sido frequentemente empregues com vistas a realizar metas antropocêntricas ou ambientalistas. Entretanto, uma perspectiva centrada na preocupação com os seres sencientes não impede nem diminui, de modo algum, o conhecimento nessas áreas. A única diferença seria que tais conhecimentos seriam utilizados para beneficiar os animais, e não para prejudicá-los. Além disso, a preocupação com os animais poderia até mesmo ampliar bastante tais conhecimentos, pois o interesse em saber como eles são afetados enquanto indivíduos que possuem um bem-estar (e não enquanto componentes de ecossistemas e exemplares de espécies) é algo ainda amplamente negligenciado.
REFERÊNCIAS
ANIMAL ETHICS. Introduction to wild animal suffering: A guide to the issues. Oakland: Animal Ethics, 2020.
CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022a.
ÉTICA ANIMAL. Biologia do bem-estar. Ética Animal: ativismo e investigação em defesa dos animais, 8 jul. 2019b.
FARIA, C.; HORTA, O. Welfare biology. In: FISCHER, B. (org.). The routledge handbook Of animal ethics. New York/London: Routledge – Taylor & Francis group, 2020, p. 455-66.
SORYL, A. A.; MOORE, A. J.; SEDDON, P. J.; KING, M. R. The Case for Welfare Biology. Journal of Agricultural and Environmental Ethics, v. 34, n. 7, 2021.
NOTAS
[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.
[2] Para os fundamentos da proposta de ajudá-los, ver Cunha (2022a) e Animal Ethics (2020).
[3] Sobre biologia do bem-estar, ver Ética Animal (2019b), Faria e Horta (2020) e Soryl et. al. (2021).
A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.
