O que fazer em relação aos animais que vivem na natureza?

Luciano Carlos Cunha[1]

Uma crença comum é a de que, quanto aos animais que vivem na natureza, deveríamos simplesmente parar de prejudicá-los e “deixá-los em paz”, e ajudá-los somente se forem prejudicados direta ou indiretamente por práticas humanas (isto é, se forem vítimas de danos antropogênicos). Por outro lado, se forem vítimas de processos naturais, como desastres naturais, fome, sede e doenças, uma visão comum é a de que devemos “deixar a natureza seguir o seu curso”.

Essa posição tem sido questionada de modo crescente nos últimos anos[2]. Um possível questionamento é acusá-la de especismo, pois quando os humanos são vítimas de fome, sede, doenças e desastres naturais não se diz “deixemos a natureza seguir o seu curso”.

Outro questionamento defende que limitar a consideração aos animais a danos decorrentes de práticas humanas é incompatível com realmente se importar com o bem dos animais. Por exemplo, seria muito estranho dizer, “eu me importo com o bem dela, mas eu só a salvaria de um incêndio causado por humanos; em um incêndio causado naturalmente, eu a deixaria queimando até morrer”. Em outras palavras, o argumento é o de que, se realmente nos importamos com o bem dos animais (e não com um ideal de pretensa “pureza humana” de não fazer o mal mas deixar o mal ocorrer), defenderemos que os animais deveriam ser ajudados independentemente de serem vítimas de práticas humanas ou de processos naturais.

Em outras vezes, é reconhecido que temos razões para nos preocuparmos com danos naturais, mas em menor grau do que com os danos que decorrem de práticas humanas. Entretanto, a crítica aqui seria a mesma: se realmente nos importamos com o bem das vítimas, e não com um ideal de “pureza humana”, nosso critério para determinar a prioridade será baseado na magnitude do dano, e não na origem do dano.

Segundo essa crítica, não é apenas que também temos razões para ajudar vítimas de danos naturais e para prevenir que danos naturais ocorram: a força dessas razões é tão forte quanto seria se fossem danos antropogênicos de mesma magnitude (e são mais fortes do que seriam em comparação a danos antropogênicos de menor magnitude). Esse é, em resumo, o argumento central da proposta de ajudar os animais que são vítimas dos processos naturais.

REFERÊNCIAS

BONNARDEL, Y. Contra o apartheid das espécies. Les cahiers antispécistes, v. 14, 1996.

COWEN, T. Policing nature. Environmental Ethics, v. 25, p. 169-182, 2003.

CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022a.

FARIA, C. Animal Ethics Goes Wild: The Problem of Wild Animal Suffering and Intervention in Nature. Tese (Doutorado em Filosofia). Barcelona: Universitat Pompeu Fabra, 2016.

FARIA, C.; PAEZ, E. (orgs). Animals in Need: the Problem of Wild Animal Suffering and Intervention in Nature. Relations: Beyond Anthropocentrism, v. 3. n. 1, 2015a.

FARIA, C.; PAEZ, E. (orgs). Animals in Need: the Problem of Wild Animal Suffering and Intervention in Nature. Relations: Beyond Anthropocentrism, v. 3. n. 2, 2015b.

HORTA, O. Animal Suffering in Nature: The Case for Intervention. Environmental Ethics, n.39, 2017. p .261–79.

HORTA, O. Debunking the Idyllic View of Natural Processes: Population Dynamics and Suffering in the Wild. Télos, v. 17, p. 73-88, 2010b.

JOHANNSEN, K. Wild Animal Ethics: The Moral and Political Problem of Wild Animal Suffering. Abingdon: Routledge, 2020.

MANNINO, A. Humanitarian Intervention in Nature: Crucial Questions and Probable Answers. Relations: Beyond Anthropocentrism, v. 3, n. 1, p. 109-120, 2015.

MCMAHAN, J. The Moral Problem of Predation. In: CHIGNELL, A.; CUNEO, T.; HALTEMAN, M. C. (org.). Philosophy Comes to Dinner: Arguments About the Ethics of Eating. London: Routledge, 2015. p. 268-294.

PEARCE, D. A Welfare State for Elephants? A Case Study of Compassionate Stewardship. Relations: Beyond Anthropocentrism, v. 3, n. 2, p. 153-164, 2015.

SAPONTZIS, S. F. Predation. Ethics and Animals, v. 5, p. 27-38, 1984.

TOMASIK, B. The Importance of Wild-Animal Suffering. Relations: Beyond Anthropocentrism, v. 3, n. 2. p. 133-152, 2015a.

TORRES ALDAVE, M. The Case for Intervention in Nature on Behalf of Animals. A Critical Review of the Main Arguments against Intervention. Relations: Beyond Anthropocentrism, v. 3, n. 1, p. 33-49, 2015.


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Ver por exemplo Bonnardel (1996); Cowen (2003); Cunha (2022a); Faria (2016); Faria; Paez (2015a, 2015b); Fink (2005); Horta (2010b. 2017); Johannsen (2020); Mannino (2015); McMahan (2015); Pearce (2015); Sapontzis (1984); Tomasik (2015a) e Torres Aldave (2015).


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.