Os animais já não são protegidos pela lei?

Luciano Carlos Cunha[1]

Por vezes, pensa-se que os animais já possuem direitos garantidos pela lei, e que a exploração animal acontece porque as leis são sistematicamente violadas. Entretanto, a realidade não é assim. A exploração animal é legalizada. Ocorre dentro de sistemas legais que a legitimam e garantem que ela possa continuar a existir, protegendo o interesse dos humanos no uso dos animais enquanto recursos.

É importante lembrar que vivemos em sociedades especistas, e os sistemas jurídicos geralmente refletem o pensamento predominante nas sociedades. Assim, o status jurídico no qual os animais são colocados protege o interesse em usar os animais enquanto recursos, pois impede que eles tenham direitos, uma vez que são considerados coisas, itens de propriedade das pessoas. Veremos isso em mais detalhes a seguir:

Direitos são garantias que protegem seus titulares[2] (por exemplo, sua integridade física, sua vida etc.). Direitos podem ser legais ou morais. Os direitos morais são independentes do seu reconhecimento ou não pela lei. Já os direitos legais são proteções garantidas por sistemas jurídicos.

Independentemente do sistema legal que vigore em um país, em termos de status jurídico há normalmente uma clara distinção entre duas categorias: pessoas e objetos. Apenas as pessoas podem ser detentoras de direitos legais. Os objetos são itens de propriedade das pessoas e, como tal, não podem ter direitos. As pessoas possuem, inclusive, o direito de explorarem os seus itens de propriedade.

O status jurídico dos animais não humanos é normalmente o de itens de propriedade[3]. Isso significa, na prática, que enquanto estiverem nessa categoria, não podem ter direitos legais, e então nenhuma proteção realmente significativa aos seus interesses será possível (haja vista que seus proprietários continuariam tendo o direito de explorá-los).

É por essa razão que, a despeito da existência de leis de bem-estar animal, na prática elas não impedem que os animais sejam explorados e vivam um verdadeiro inferno[4].

Uma objeção comum ao reconhecimento de direitos para os animais não humanos é a alegação de que, para alguém possuir direitos, precisa entender a noção de direitos, pois isso seria necessário para respeitar os direitos dos outros e para reivindicar os seus. Contudo, se faz sentido reconhecer direitos para os humanos que não possuem essas capacidades (como as crianças e os adultos que possuem impedimentos cognitivos), então não faz sentido dizer que os animais não humanos não podem ter direitos porque não possuem aquelas capacidades.

Há, portanto, razões para se defender mudar o status jurídico dos animais, retirando-lhes da categoria de coisas e concedendo-lhes o status de detentores de direitos legais[5]. Entretanto, é improvável que isso ocorrerá enquanto a maior parte das pessoas consumir produtos de origem animal, cuja demanda implica a existência de todo um sistema de exploração animal para atendê-la. Por essa razão é necessário, paralelamente à revindicação de mudança no status jurídico dos animais, buscar também que mais e mais pessoas abandonem o uso de animais.

Porém, para se alcançar tal mudança de comportamento, é necessário mudar o modo como as pessoas veem os animais. É por essa razão que é extremamente necessário, seja para fazer com que mais pessoas abandonem o uso de animais, seja para mudar o status jurídico dos animais, divulgar os argumentos que fundamentam a igual consideração por todos os seres sencientes.

REFERÊNCIAS

BRYANT, T. L. Sacrificing the sacrifice of animals: Legal personhood for animals, the status of animals as property, and the presumed primacy of humans. Rutgers Law Journal, v. 39, p. 247-330, 2008.

FEINBERG, J. The rights of animals and future generations. In: BLACKSTONE W. (org.) Philosophy and environmental crisis. Athens: University of Georgia Press, 1974, p. 43-78.

FINSEN, S. Obstacles to legal rights for animals: Can we get there from here? Animal Law Review, v. 3, p. i-vi, 1997.

FRANCIONE, G. L. Animals, property and the Law. Philadelphia: Temple University Press, 1995.

MADDUX, E. A. Time to stand: Exploring the past, present, and future of nonhuman animal standing. Wake Forest Law Review, v. 47, p. 1243-1267, 2012.

MCCARTNEY-SMITH, E. Can nonhuman animals find tort protection in a human-centered common law? Animal Law Review, n. 4, p. 173-210, 1998.

TANNENBAUM, J. Animals and the law: Property, cruelty, rights. Social Research, v. 62, p. 539-607, 1995.

TEUBNER, G. Rights of non-humans? Electronic agents and animals as new actors in politics and law. Journal of Law and Society, v. 33, p. 497-521, 2006.

WENAR, L. Rights. In: ZALTA, E. N. (org.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Spring 2021 Edition.


NOTAS

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Sobre a definição de direito, ver Wenar (2021).

[3] Ver Tannenbaum (1995); Francione (1995); McCartney-Smith (1998); Bryant (2008) e Maddux (2012).

[4] Para uma análise dessa questão, ver Francione (1995).

[5] Sobre isso, ver Feinberg (1974); Finsen (1997) e Teubner (2006).


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.