Importa o que faríamos em uma ilha deserta ou em uma casa em chamas?

Luciano Carlos Cunha[1]

Cenários que envolvem situações catastróficas por vezes são mencionados com o objetivo de justificar o consumo de animais.

Por exemplo, por vezes é dito que, já que a maioria de nós consideraria correto matar um animal se isso fosse necessário para sobreviver em uma ilha deserta, então o consumo de animais está justificado.

Em outras vezes, é dito que, já que a maioria de nós privilegiaria salvar um parente em vez de um animal não humano em uma casa em chamas, então o consumo de animais está justificado.

No entender dos proponentes desses argumentos, isso mostraria por que o critério da espécie não é injusto como são os critérios da raça e do gênero, por exemplo.

Entretanto, há pelo menos três problemas com esses argumentos. Vejamos cada um separadamente:

O primeiro problema é que esses argumentos assumem que aquilo que a maioria de nós faria necessariamente está correto. Mas, não há nenhuma conexão necessária entre uma coisa e outra. Podemos simplesmente estar agindo de maneira errada. Assim, o fato de que agiríamos de certa maneira em certos contextos não mostra que agir dessa maneira é justificado.

A ética é sobre como fundamentar o que deveríamos fazer. Não é sobre o que faríamos. Pensar que o que faríamos fundamenta o que deveríamos fazer é dar um salto injustificado de uma descrição sobre as atitudes das pessoas para uma conclusão que afirma quais atitudes possuem justificativa.

O segundo problema é que, mesmo se o apelo ao que a maioria faria fosse plausível, não fundamentaria o que os proponentes desses argumentos pretendem (isto é, que é certo comer os animais não humanos, mas não é certo comer humanos), pois em situações catastróficas a maioria também salvaria a si próprio ou a entes queridos em vez de salvar outros humanos.

O terceiro, e principal problema, é que, seja lá qual for a ação correta em situações catastróficas, não faz sentido extrapolá-la para outras situações bem diferentes.

Por exemplo, suponha que alguém dissesse que, se estamos justificados a priorizar salvar um ente querido em vez de um desconhecido em uma casa em chamas, ou a comer carne humana se estivermos a morrer de fome em uma ilha deserta, então estamos justificados a escravizar humanos desconhecidos para consumir sua carne.

Diante de uma alegação assim, é muito fácil perceber que os dois tipos de situação são muito diferentes, e que uma coisa não justifica a outra. Pela mesma razão, aquilo que faríamos em uma ilha deserta ou em uma casa em chamas não pode justificar a exploração sobre os animais não humanos. A verdade é essa: não estamos em uma ilha deserta ou em uma casa em chamas.


Notas

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.


A produção deste texto foi financiada pela organização Ética Animal.